Teodiceia é o nome que se dá a um dos enigmas centrais da fé. “Se Deus é sumamente bom e onipotente, por que existe o sofrimento? Se ele é sumamente bom, deseja acabar com o sofrimento. Se é onipotente, é capaz de pôr fim ao sofrimento. Portanto, não deve ser sumamente bom nem onipotente”.
Do ponto de vista de uma lógica de Ensino Fundamental, isso sem dúvida parece razoável. Além disso, sempre me surpreendeu o fato de alguns filósofos e teólogos ainda gastarem energia com esse raciocínio. Por isso, suspeitei que, na verdade, eles não quebram a cabeça com o assunto: trata-se, antes, apenas de uma birra adolescente por terem decidido que não gostam de Deus.
A questão permanece, todavia: “Como um Deus bom pode permitir o sofrimento? Deus provoca o sofrimento como punição pelo pecado? O novo coronavírus é o juízo de Deus sobre a humanidade?”
Para responder à pergunta, temos de analisar, em primeiro lugar, o que é “sofrimento”. Ele poderia ser definido como uma dor de qualquer espécie, e a dor nem sempre é algo ruim — embora faça nos sentir mal. Se você encostar a mão num forno quente, sentirá dor, uma resposta natural para fazê-lo tirar a mão do forno. A dor que você sente em alguma parte do corpo é um sinal de que algo não está bem. Se a parte dianteira do seu carro apresentar alguma oscilação ou ruído, você terá de levá-lo a uma oficina para conserto. Uma dor física é um indicativo de algo semelhante. Algo está errado e precisa ser reparado. Embora esse tipo de dor seja realmente penoso, não se trata de algo mau em si.
Um segundo tipo de sofrimento é aquele que causamos em nós mesmos. Se você beber alguns litros de uísque todos os dias, provavelmente terá uma doença no fígado e outras desordens dolorosas. Da mesma forma, se você fumar ou comer porcaria em excesso, poderá desenvolver doenças físicas decorrentes de suas más escolhas. Se mantiver relações sexuais perigosas, não se surpreenda se contrair alguma doença terrível. Escolhas têm consequências, e boa parte do nosso sofrimento vem de nossas próprias más escolhas. Podemos até nos arrepender, mas não faz sentido queixar-se muito se os únicos culpados somos nós mesmos.
Um terceiro tipo de sofrimento é a dor causada por outras pessoas. Por meio do crime, do abuso, da violência, da ganância e da luxúria nós não fazemos mal somente a nós, mas também a outras pessoas. Deus não pode ser culpado por isso. Ele poderia acabar com o sofrimento que causamos em nós ou nos outros? Tecnicamente, sim, Ele poderia fazê-lo; mas, na realidade, não está obrigado a fazê-lo, pois isso violaria a nossa liberdade. Ele vê todo o sofrimento que causamos em nós e nos outros e o detesta, mas não o evitará sempre e necessariamente. Ele pode, de algum modo, interferir? De algum modo, sim, mas voltarei a esse ponto adiante.
O quarto de tipo de sofrimento é causado por atos desonestos corporativos. Um governo, uma empresa ou qualquer outro grupo de pessoas pode causar sofrimento por meio de sua legislação ou de suas decisões. Isso pode, em alguns casos, provocar um sofrimento que não se pode especificar e imputar a um agente causal ou resultado particulares. Assim, por exemplo, uma companhia de eletricidade pode instalar linhas elétricas em um bairro e, ao fim e ao cabo, descobrir que viver perto delas aumenta a probabilidade de ter câncer. Outro exemplo é o de uma empresa de alimentos que põe aditivos ou conservantes em seus produtos (algo que parece seguro), quando, na verdade, acumular tais produtos no organismo causa problemas de saúde inesperados. Neste caso, o sofrimento é mais geral, e nós nos expusemos a ele, mas sem malícia ou intenção de cometê-lo. Trata-se do efeito colateral de alguma ação que realizamos, de forma individual ou coletiva.
O quinto tipo de sofrimento é semelhante ao anterior. É o sofrimento causado por um grupo ou nação como resultado de alguma outra intenção. Assim, um país pode enviar soldados para derrotar um ditador e restaurar a liberdade, mas o preço dessa justiça é o sofrimento generalizado, muitas vezes de inocentes.
Em todos os exemplos acima, o sofrimento não é causado por Deus, mas por seres humanos de um modo ou de outro. Resta, no entanto, outra categoria de sofrimento: os desastres naturais. Um epidemia, um terremoto, um tsunami ou deficiências congênitas parecem fazer parte da ordem natural. Por que Deus não resolve esses problemas e elimina esse tipo de sofrimento? A resposta cristã sempre foi que o mundo inteiro está “quebrado”. Há nele uma fratura profunda. A ordem natural se encontra decaída, sofre com a desordem e confusão, e nós participamos desta condição desordenada.
Logo, Deus enviou-nos o coronavírus como uma punição? Penso que não. Ao contrário, Ele se aproveita das ocasiões de desastres e catástrofes que ocorrem ao longo da história para nos dar um alerta: lembrarmo-nos da verdadeira natureza da realidade. Quando o sofrimento decorre do pecado, há uma punição, por assim dizer, natural decorrente do próprio pecado; quando o desastre ocorre por meio das vidas desordenadas que levamos, coisas ruins acontecerão. Deus planejou o sistema para funcionar de determinada maneira, e quando nos desviamos do plano original as consequências são terríveis, mas não acho que lá do alto Deus envie raios como castigo.
O que devemos pensar, então, das passagens do Antigo Testamento que parecem retratar um Deus “vingativo”, que envia deliberadamente catástrofes como punição? Creio que a resposta não esteja tanto no caráter de Deus quanto na percepção que nós temos dele. Nos primórdios da nossa relação com Deus, era natural entender esses desastres como castigos intencionais devidos ao pecado. Jesus, no entanto, cumpre a Lei e os Profetas e ensina que essa forma de compreender Deus é parcial. Ele é um Deus de justiça, mas também um Deus de misericórdia, e Jesus revela ao mesmo tempo a justiça e a misericórdia de Deus. Ele de fato julga a humanidade, mas o faz por meio da lei da misericórdia, que é cumprida na justiça dispensada por Ele.
Isso me leva de volta à questão: Deus de algum modo “interfere” em situações de sofrimento? Sim, interfere. Creio que, muitas vezes, Ele interfere para impedir o sofrimento pelo auxílio dos nossos anjos da guarda e pela nossa participação na vontade divina com as nossas orações e sacrifícios. Creio que, muitas vezes, Deus usa nossas orações, de modo que a sua graça é dispensada em situações de sofrimento para nos aliviar e libertar delas. Note-se, contudo, que Ele não viola o nosso livre-arbítrio ao agir assim, porque, neste caso, é o nosso próprio livre-arbítrio que se une à sua vontade onipotente para trazer bondade e graça ao mundo.
Mas há um nível mais profundo de interferência. A cruz nos ensina que, às vezes, Deus não impede o sofrimento humano e nem sempre nos liberta dele. Em vez disso, Ele mesmo mergulha no sofrimento. Não nos tira dele; enfrenta-o conosco. Quando os três jovens judeus foram jogados na fornalha incandescente, o rei viu junto deles uma quarta pessoa. Foi uma “epifania” de Cristo e uma lição sobre a profundidade do sofrimento do próprio Deus encarnado. Ele sente a nossa dor. Suporta as nossas iniquidades. É um homem de dores acostumado à tristeza.
Que resposta, enfim, temos de dar perante a crise do coronavírus? Com certeza, jejuar e rezar para que Deus nos livre desta situação; ajudar todos os que sofrem, caso tenhamos possibilidade; fazer tudo o que está ao nosso alcance para evitar a disseminação da doença, o sofrimento e a morte, mas também rezar e pedir a Deus força para caminharmos pelo vale da sombra da morte, sabendo que Ele caminha atrás de nós.
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