Seguimos publicando os comentários de São John Henry Newman à Ladainha de Nossa Senhora (ainda dentro do dogma da Assunção da Virgem, que celebramos nestes dias).
Maria é a Turris Davidica: a “Torre de Davi”
Simplesmente considerada, a torre é uma estrutura de defesa contra inimigos. Davi, rei de Israel, construiu com esse fim uma torre notável; e, assim como ele é figura ou tipo de Nosso Senhor, assim também sua torre é uma figura da Virgem Mãe de Nosso Senhor.
Ela é chamada Torre de Davi porque cumpriu de modo significativo o ofício de defender seu divino Filho dos ataques de seus inimigos. Os não-católicos costumam imaginar que as honras que a ela prestamos interferem na adoração suprema que rendemos a Ele; que na doutrina católica ela o ofusca. Mas isso é exatamente o oposto da verdade.
Pois, se a glória de Maria é tão grandiosa, como é possível que não seja ainda maior a dele, que é o Deus e Senhor de Maria? Ele está infinitamente acima de sua mãe; toda a graça de que ela está cheia não são senão transbordos e superabundâncias da incompreensível santidade dele. E a história nos ensina a mesma lição. Vejam-se os países protestantes que, há três séculos, abandonaram por completo a devoção a ela, sob a noção de que, ignorando a mãe, exaltar-se-iam os louvores do Filho. Porventura foi essa a consequência que realmente se seguiu a tal conduta profana em relação a ela? Justamente o contrário — países como Alemanha, Suíça e Inglaterra, que agiram assim, em grande medida deixaram de adorar Jesus e não creem mais na sua divindade, enquanto a Igreja Católica, onde quer que se encontre, adora o Cristo como verdadeiro Deus e verdadeiro homem, tão firmemente como sempre o fez; e seria de fato estranho se as coisas tivessem se passado de outra forma. Desta forma Maria é a “Torre de Davi”.
Maria é a Virgo Potens: a “Virgem Poderosa”
Este imenso universo, que vemos de dia e à noite, ou o que chamamos de mundo natural, é governado por leis fixas, que o Criador lhe impôs, e por essas maravilhosas leis é protegido de qualquer dano ou perda substancial. Uma parte sua pode entrar em conflito com outra e podem lhe ocorrer mudanças internas; mas, visto como um todo, ele foi formado de modo a permanecer para sempre. Daí o dizer do salmista: “[Ele] firmou o universo, que não será abalado” (Sl 92, 1).
Assim é o mundo natural; mas há outro mundo ainda mais maravilhoso. Há um poder capaz de alterar e subjugar este mundo visível, suspendendo e contrariando as suas leis: é o mundo dos anjos e santos, da Santa Igreja e de seus filhos; e a arma pela qual eles dominam essas leis é o poder da oração.
Graças à oração, tudo que é naturalmente impossível pode ser feito. Noé rezou, e Deus lhe prometeu que jamais haveria de novo um dilúvio para afogar o gênero humano. Moisés rezou, e dez pragas terríveis caíram sobre a terra do Egito. Josué rezou, e o sol parou. Samuel rezou, e vieram chuvas e relâmpagos sobre a colheita de trigo. Elias rezou e fez sair fogo do céu. Elizeu rezou, e os mortos ressuscitaram. Ezequias rezou, e o vasto exército dos assírios foi derrotado e pereceu.
É por isso que a Virgem Santíssima é chamada de poderosa — e até toda-poderosa, às vezes: porque ela possui, mais do que qualquer outra pessoa, mais do que todos os anjos e santos, essa grande e poderosa dádiva da oração. Ninguém tem acesso ao Todo-poderoso como sua mãe; ninguém tem méritos como os dela. Nada do que ela pedir seu Filho lhe negará; e aqui está o seu poder. Enquanto ela estiver defendendo a Igreja, nem a altura nem a profundidade, nem os homens nem os espíritos malignos, nem os grandes monarcas, nem as artimanhas humanas, nem a violência popular nos poderá prejudicar; pois a vida humana é breve, mas Maria, Rainha para sempre, reina nas alturas.
Maria é Auxilium Christianorum: o “Auxílio dos Cristãos”
A nossa gloriosa Rainha, desde a sua Assunção aos céus, tem sido a ministra de incontáveis serviços ao povo eleito de Deus na terra e à sua Santa Igreja. Este título de “Auxílio dos cristãos” está ligado a esses serviços, dos quais o Ofício Divino, ao registrar a ocasião em que lhe foi dado, relata cinco, associando-os mais ou menos com o Rosário.
O primeiro foi na instituição da devoção do Rosário por São Domingos, quando, com a ajuda da Virgem Santíssima, ele conseguiu deter e derrubar a tremenda heresia dos albigenses no sul da França.
O segundo foi a grande vitória obtida pela frota cristã sobre o poderoso sultão turco, em resposta à intercessão do Papa São Pio V e às preces das associações do Rosário em todo o mundo cristão — em memória perene de cuja maravilhosa misericórdia o Papa Pio introduziu em sua ladainha o título Auxilium Christianorum, e o Papa Gregório XIII, que o sucedeu, dedicou o primeiro domingo de outubro, dia da vitória, a Nossa Senhora do Rosário [i].
O terceiro foi, nas palavras do Ofício Divino, “a insigne vitória obtida em Viena, sob a proteção da Santíssima Virgem, sobre o crudelíssimo tirano dos turcos, que estava pisando sobre os pescoços do povo cristão; como monumento perene de cujo benefício o Papa Inocêncio XI mandou que se celebrasse o seu dulcíssimo nome, no domingo dentro da oitava de sua natividade” [ii].
O quarto exemplo de seu auxílio foi a vitória, na Hungria, sobre as incontáveis forças desses mesmos turcos, no dia de Nossa Senhora das Neves [i.e., a 5 de agosto], em resposta à solene súplica das confrarias do Rosário; ocasião na qual os Papas Clemente XI e Bento XIII concederam nova honra e privilégio à devoção do Rosário.
E o quinto foi quando ela restaurou o poder temporal do Papa, no início deste século, depois que Napoleão I, imperador dos franceses, tomou-o da Santa Sé; ocasião na qual o Papa Pio VII reservou o 24 de maio, dia desta misericórdia, para festa da Auxiliadora dos Cristãos, como ação de graças perpétua [iii].
Maria é a Virgo Fidelis: a “Virgem Fiel”
Este é um dos títulos da Santíssima Virgem que lhe pertencem de modo especial a partir do momento de sua Assunção e gloriosa Coroação à direita de seu divino Filho. Como ele lhe pertence [é algo que] ficará claro quando considerarmos alguns dos outros exemplos em que se menciona fidelidade na Sagrada Escritura.
A palavra fidelidade significa lealdade a um superior, ou exatidão no cumprimento de um dever. Nesse último sentido, aplica-se até mesmo ao próprio Deus todo-poderoso, que, em seu grande amor por nós, dignou-se limitar o próprio poder de ação através de sua palavra de promessa e da aliança com suas criaturas. Ele deu sua palavra: se o tomarmos como porção [de nossa herança] e entregarmo-nos em suas mãos, Ele nos guiará em meio a todas as provações e tentações, e conduzir-nos-á em segurança até o Céu. E para nos encorajar e inspirar, Ele nos recorda em várias passagens da Escritura que é o Deus fiel, o Criador fiel.
Assim, seus verdadeiros santos e servos recebem o título especial de “fiéis”, por serem fiéis para com Ele, assim como Ele o é para com eles; por serem simplesmente obedientes à sua vontade, zelosos de sua honra e observantes dos desígnios sagrados que Ele lhes confiou. Assim, Abraão é chamado o Fiel; Moisés é declarado fiel em toda a sua casa; Davi, por essa razão, é chamado de “homem segundo o coração de Deus” (1Sm 13, 14); São Paulo agradece a Deus por o haver considerado fiel; e, no último dia, Deus dirá a todos que empregaram bem os seus talentos: “Muito bem, servo bom e fiel” (Mt 25, 23).
De modo semelhante, é com eminência que Maria é fiel ao seu Filho e Senhor. Que ninguém suponha por um instante que ela não seja supremamente zelosa por sua honra, ou, como fantasiam os não-católicos, que ao exaltá-la somos infiéis para com Ele. Os verdadeiros servos de Maria são, com ainda mais verdade, servos dele. Assim como ela recompensa seus amigos, àquele que a preferisse a Ele, tê-lo-ia não por amigo, mas por traidor. Assim como Ele é zeloso pela honra dela, também ela o é pela [honra] dele. Ele é a fonte da graça, e todos os dons dela provêm da bondade dele.
Ó Maria, ensinai-nos sempre a adorar o vosso Filho como único Criador, e a vos ser devotos como à mais agraciada das criaturas.
Maria é a Stella Matutina: a “Estrela da Manhã”
Qual seria a abordagem mais próxima, ao modo de símbolos, neste mundo de visão e sentidos, para nos representar as glórias daquele mundo superior que está além de nossas percepções corporais? Quais são, aqui, os sinais e promessas mais verdadeiros — por pobres que sejam — daquilo que um dia esperamos ver no futuro como belo e excepcional? Sejam eles quais forem, a Bem-aventurada Mãe de Deus com certeza os pode reivindicar como seus. E assim o é; dois deles lhe são atribuídos como títulos em sua ladainha — as estrelas em cima e as flores embaixo. Ela é ao mesmo tempo a Rosa Mystica e a Stella Matutina.
E dentre esses dois [títulos], ambos bem adequados a ela, a Estrela da Manhã se torna o melhor, e isso por três razões.
Primeiro, a rosa pertence a esta terra, mas a estrela está posicionada no alto dos céus. Maria não tem mais parte neste mundo inferior. Nenhuma mudança, nenhuma violência por água, fogo, terra ou ar afeta as estrelas no alto; e elas se mostram, sempre brilhantes e maravilhosas, em todas as regiões deste globo e para todas as tribos dos homens.
Além disso, a rosa tem uma existência breve; sua decadência é tão certa quanto ela foi graciosa e perfumada em seu auge. Mas Maria, como as estrelas, permanece para sempre, tão brilhante agora como no dia de sua Assunção; tão pura e perfeita, quando seu Filho vier para o julgamento, quanto o é agora.
Por fim, é prerrogativa de Maria ser a Estrela da Manhã, que anuncia o sol. Ela não brilha para si mesma, nem a partir de si mesma, não sendo senão o reflexo do seu e nosso Redentor, e ela o glorifica. Quando ela aparece na escuridão, [então] nós sabemos que Ele está próximo. Ele é o Alfa e o Ômega, o primeiro e o último, o princípio e o fim. Eis que Ele vem depressa, e com Ele a recompensa, de modo a retribuir a cada um segundo as suas obras. “Certamente venho em breve. Amém. Vem, Senhor Jesus.”
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