Ao escrever as encíclicas papais, muitos pontífices assumiram posições corajosas contra o espírito ou os poderes de sua época. Títulos como Rerum Novarum, Pascendi e Humanae Vitae logo vêm à mente.

Há uma encíclica papal, no entanto, que se destaca tanto por sua oposição ousada ao mal quanto pelos meios dramáticos escolhidos para apresentá-la ao público pretendido. Publicada por Pio XI em 1937 como uma resposta ao demoníaco regime nazista de Hitler, ela foi chamada de Mit brennender Sorge.

Nos tempos modernos, muitos se mostram dispostos a acreditar em tudo e qualquer coisa negativa que guarde relação com a Igreja Católica, independentemente do quão bizarra a lenda ou a teoria da conspiração possa ser. Uma dessas teorias é a suposta cumplicidade do Vaticano e de outros católicos influentes com o regime nazista de Hitler — posição que se torna absolutamente insustentável diante do peso das sólidas investigações históricas, realizadas em livros tais como The Myth of Hitler's Pope: Pope Pius XII and His Secret War Against Nazi Germany (“O mito do Papa de Hitler: o Papa Pio XII e seu segredo de guerra contra a Alemanha nazista”), do rabino David G. Dalin; Hitler, the War, and the Pope (“Hitler, a Guerra e o Papa”), de Ronald Rychlak; e Bearing False Witness: Debunking Centuries of Anti-Catholic History (“Levantando falso testemunho: desbancando séculos de história anticatólica”), de Rodney Stark (todos sem tradução para o português).

Na palavra e na ação, ambos os papas, Pio XI e Pio XII, se opuseram fortemente ao nazismo, e a publicação de Mit brennender Sorge escrita em grande parte pelo futuro Pio XII e publicada durante o reinado de Pio XI — foi a marca filosófica dessa oposição. Em 1937, Pio XI queria tratar a situação diretamente com os católicos alemães. Uma vez que isso seria completamente impossível, ele fez a segunda melhor coisa que podia fazer: publicou essa encíclica, cujo título traduzido para o português seria “Com ardente preocupação”.

Havia vários aspectos singulares na encíclica. Primeiro, sua autoria única e original em alemão foi um sinal de solidariedade aos fiéis católicos da Alemanha e um lembrete de o que exatamente a encíclica estava condenando. Segundo, Mit brennender Sorge exibiu algo raramente visto em um documento papal: raiva. Considere-se, por exemplo, a seguinte passagem:

A experiência dos últimos anos põe a claro as responsabilidades: revela intrigas que, desde o princípio, armavam guerra de extermínio. Nos sulcos onde nos esforçamos por lançar a semente da verdadeira paz, outros semearam — como o inimicus homo da Sagrada Escritura (cf. Mt 13, 25) — o joio da desconfiança, do desprazer, da discórdia, do ódio, da difamação, da hostilidade profunda, ora velada, ora clara, contra Cristo e contra a sua Igreja, desencadeando uma luta que se alimentou em fontes diversas sem conta e se serviu de todos os meios. Esses e só esses, com os seus cúmplices, são hoje os responsáveis se, em vez do arco-íris da paz, a tormenta de lutas religiosas escurece o céu da Alemanha.

Nas linhas seguintes, o Papa Pio continua a ilustrar a inerente contradição entre nazismo e cristianismo:

Na vossa terra, veneráveis irmãos, ouvem-se vozes, em coro cada vez mais forte, que incitam a sair da Igreja. Entre os mentores, há alguns que, por sua posição oficial, tentam divulgar a impressão que tal afastamento da Igreja, e por conseguinte a infidelidade a Cristo Rei, constitui prova particularmente convincente e meritória de fidelidade ao Estado atual.

Se raiva era algo raro em encíclicas, desprezo e escárnio eram muito mais. Pio XI continua:

Só espíritos superficiais podem cair no erro de falar em Deus nacional ou em religião nacional, e empreender a louca tarefa de incluir nos limites dum só povo, ou na estreiteza étnica duma só raça, a Deus, Criador do mundo, rei e legislador de todos os povos, diante do qual “as nações são como uma gota que cai dum balde” (Is 40, 15).

Ronald Rychlak escreve que a encíclica de Pio XI “foi uma das mais fortes condenações a um regime nacional já feitas pela Santa Sé”.

Sua Santidade, o Papa Pio XI.

Mas houve outra coisa que fez de Mit brennender Sorge um documento único: o método de divulgação. Do latim, a palavra “encíclica” significa “circular”, isto é, trata-se de algo que deve ser abertamente distribuído. Mas, embora todas as encíclicas devam ser distribuídas em toda parte, nenhuma na história foi tão bem divulgada quanto Mit brennender Sorge. Pio XI e seus conselheiros perceberam que não podiam simplesmente imprimir esta carta encíclica e enviá-la casualmente para as inúmeras igrejas católicas da Alemanha sem que as autoridades tomassem conhecimento disso. Se encontrasse o documento, a Gestapo não permitiria jamais que ele fosse entregue a seus destinatários.

Então, o documento foi preparado em Roma, clandestinamente enviado à Alemanha e distribuído para tipógrafos católicos. Aproximadamente 300 mil cópias foram impressas e, na calada da noite de 11 de março, Mit brennender Sorge foi enviada às igrejas católicas nação afora.

Na manhã seguinte, Domingo de Ramos, 1937, padres em toda a Alemanha leram a encíclica a suas congregações. Os números são surpreendentes. Como escreveu David Dalin, a encíclica “foi lida na íntegra dos púlpitos de todas as igrejas católicas da Alemanha…” Estima-se que mais de 20 milhões de católicos alemães tinham ouvido a encíclica naquela manhã. Isso deve ter sido uma experiência surreal para todos os envolvidos. Ler a encíclica do púlpito foi um ato chocante de aberta oposição a Hitler e seu regime. Qualquer envolvido — padres, tipógrafos, mensageiros — corriam risco de morte ou detenção. De fato, alguns foram presos por aquele “crime”.

Talvez mais surpreendente ainda seja o fato de os nazistas não terem previsto nada disso. Rychlak escreve: “A única razão para Mit brennender Sorge ter sido lida para todos foi que os nazistas foram pegos de surpresa. Assim que a Missa do Domingo de Ramos acabou, os oficiais da Gestapo já se encontravam à porta das igrejas para confiscar as cópias.” Sim, elas foram confiscadas, mas não antes de milhões de católicos alemães terem ouvido aquela mensagem. O envio de Mit brennender Sorge foi um dos grandes e heróicos esforços clandestinos contra Hitler, tanto antes quanto depois da Segunda Guerra.

Embora tenha sido escrita em um período e para um lugar particulares, Mit brennender Sorge contém uma bela e poderosa defesa da verdade. Muitos heróis anônimos sacrificaram suas carreiras e comprometeram suas vidas para torná-la conhecida. Essa história deveria não somente nos inspirar a ler tal documento hoje, mas também a ler mais as encíclicas que os papas publicaram ao longo dos anos. Nas muitas encíclicas da Igreja, uma riqueza de conhecimento e de sabedoria espera por nós.

O que achou desse conteúdo?

2
0
Mais recentes
Mais antigos