Lamentando com toda a cristandade os males que afligiam o mundo no início do século passado, em especial a difusão do comunismo e de doutrinas antirreligiosas, quando não aberta e agressivamente ateias, o Papa Pio XI concluía sua Encíclica “Caritate Christi” recordando que o “Coração divino de Jesus não poderá deixar de se comover com as súplicas e sacrifícios de sua Igreja, e acabará por dizer à sua esposa que geme a seus pés sob o peso de tantas dores e males: ‘Grande é a tua fé. Faça-se como queres’ (Mt 15, 28)”.

Isso, é claro, sob a condição de que os fiéis recorressem o mais possível à oração e à prática de penitência cristã, que chegam ao seu ponto máximo quando se convertem naquela reparação satisfatória que o doloroso Coração de Jesus, saturado de tantas injúrias, espera de todos os membros da Igreja.

Como meio de estimular em nossos leitores o desejo de unir-se a esse espírito de reparação ao Sagrado Coração de Jesus, é conveniente recordar um pouco, a partir das lições sempre acessíveis do Padre Antonio Royo Marín [i], em que consiste esta preciosa devoção, que nas palavras do Papa Pio XII não só não se opõe à reta fé católica como constitui, antes, “a mais completa profissão da religião cristã”.


Quase todos os modernos tratados teológicos De Verbo incarnato reservam um capítulo, muito oportunamente, à doutrina sobre a devoção e o culto ao Sacratíssimo Coração de Jesus.

Esta devoção tão entranhável e este culto tão legítimo, de qualquer ponto de vista, foram alvo de duros ataques em diferentes épocas da história, sobretudo por parte dos jansenistas; mas sempre recebeu as bênçãos e recomendações da Igreja. Em nossos dias, o imortal Pontífice Pio XII publicou sobre esta grande devoção uma maravilhosa encíclica que tem por título Haurietis aquas. Nela, o Pontífice resolveu algumas questões discutidas, precisou com exatidão seu verdadeiro sentido, pôs em evidência sua soberana excelência e sua perene atualidade e deu a esta preciosíssima devoção um impulso definitivo como uma das mais mais importantes e fundamentais do cristianismo.

As principais conclusões teológicas que se depreendem da encíclica Haurietis aquas, de Pio XII, e da Miserentissimus Redemptor, de seu imediato predecessor, Pio XI, são as seguintes:

O objeto final ou terminativo do culto ao Sacratíssimo Coração de Jesus é a pessoa do Verbo divino, à qual está hipostaticamente unido. Por isso, o Coração de Jesus deve ser adorado com rigorosa adoração de latria.

Ouçamos a Pio XII:

Portanto, neste assunto tão importante como delicado, é necessário ter sempre presente que a verdade do simbolismo natural, que relaciona o Coração físico de Jesus com a pessoa do Verbo, repousa toda na verdade primária da união hipostática. Quem isto negasse renovaria erros mais de uma vez condenados pela Igreja, por serem contrários à unidade da pessoa de Cristo em duas naturezas íntegras e distintas (n. 59).

O culto de latria, com efeito, não pode ser oferecido senão a uma pessoa divina. Por isso, a pessoa do Verbo encarnado deve ser o objeto final ou terminativo sobre o qual recaia o culto tributado a seu Sacratíssimo Coração.

O objeto material próximo ou imediato é o Coração físico de Jesus, enquanto expressão natural do amor divino e humano do mesmo Cristo.

O próprio Cristo mostrou seu divino Coração a S. Margarida Maria de Alacoque enquanto lhe dizia: “Eis aqui o Coração que tanto amou os homens”. O Coração físico como natural expressão de seu imenso amor: esse é o objeto material sobre o qual recai imediatamente o culto ao Coração de Jesus.

Nada, portanto, proíbe que adoremos o Coração Sacratíssimo de Jesus Cristo, enquanto é participante, símbolo natural e sumamente expressivo daquele amor inexaurível em que ainda hoje o divino Redentor arde para com os homens (n. 42).

Como se sabe, o coração não é o órgão do amor espiritual (que procede da vontade racional), nem mesmo do amor sensível (que é uma paixão do apetite sensitivo). Mas sobre o coração físico repercute ordinariamente nossa vida afetiva e sentimental. Isto basta para considerá-lo como expressão natural do amor, conforme o uso consagrado e o costume universal dos homens.

O venerável Papa Pio XII.

O objeto formal, ou seja, o motivo ou a razão principal do culto ao Coração de Jesus é a divina excelência da pessoa do Verbo encarnado com especial atenção a seu tríplice amor por nós: divino, humano-espiritual e humano-sensível.

Ouçamos a Pio XII explicando tudo isso em diferentes passagens de sua encíclica:

É preciso entender bem o motivo pelo qual a Igreja tributa ao Coração do divino Redentor o culto de latria. Duplo, veneráveis irmãos, como bem sabeis, é tal motivo: o primeiro, que é comum também aos demais membros adoráveis do corpo de Jesus Cristo, funda-se no fato de, sendo o seu Coração parte nobilíssima da natureza humana, estar unido hipostaticamente à pessoa do Verbo de Deus, e, portanto, dever-se-lhe tributar o mesmo culto de adoração com que a Igreja honra a pessoa do próprio Filho de Deus encarnado. Trata-se, pois, de uma verdade de fé católica, solenemente definida no concílio ecumênico de Éfeso e no II de Constantinopla (n. 12).

O outro motivo concerne de maneira especial ao Coração do divino Redentor, e, pela mesma razão, confere-lhe um título inteiramente próprio para receber o culto de latria. Provém ele de que, mais do que qualquer outro membro do seu corpo, o seu Coração é o índice natural ou o símbolo da sua imensa caridade para com o gênero humano (n. 12).

E, assim, do elemento corpóreo, que é o Coração de Jesus Cristo, e do seu natural simbolismo, é legítimo e justo que, levados pelas asas da fé, nos elevemos não só à contemplação do seu amor sensível, porém a mais alto, até à consideração e adoração do seu excelentíssimo amor infuso, e, finalmente, num vôo sublime e doce ao mesmo tempo, até à meditação e adoração do amor divino do Verbo encarnado; já que à luz da fé, pela qual cremos que na pessoa de Cristo estão unidas a natureza humana e a natureza divina, podemos conceber os estreitíssimos vínculos que existem entre o amor sensível do Coração físico de Jesus e o seu duplo amor espiritual, o humano e o divino. Em realidade, não devem esses amores ser considerados simplesmente como coexistentes na adorável pessoa do Redentor divino, mas também como unidos entre si com vínculo natural, já que ao amor divino estão subordinados o humano, o espiritual e o sensível, os quais são uma representação analógica daquele (n. 58).

O culto ao Coração de Jesus tem por finalidade a perfeição de nosso amor a Deus e aos homens.

Ouçamos de novo a Pio XII:

Assim sendo, facilmente deduzimos que, pela própria natureza das coisas, o culto ao Sacratíssimo Coração de Jesus é o culto ao amor com que Deus nos amou por meio de Jesus Cristo, e, ao mesmo tempo, o exercício do amor que nos leva a Deus e aos outros homens; ou, dito de outra forma, este culto dirige-se ao amor de Deus para conosco, propondo-o como objeto de adoração, de ação de graças e de imitação; e tem por fim a perfeição do nosso amor a Deus e aos homens mediante o cumprimento cada vez mais generoso do “mandamento novo”, que o divino Mestre legou como sagrada herança aos seus Apóstolos quando lhes disse: “Um novo mandamento vos dou: que vos ameis uns aos outros, como eu vos amei… O meu preceito é que vos ameis uns aos outros, como eu vos amei” (Jo 13, 34; 15, 12) (n. 60).

Os elementos essenciais do culto ao Coração de Jesus são os atos de amor e de reparação tributados ao amor de Deus, em desagravo das ofensas que Ele recebe dos homens.

Santa Margarida M.ª Alacoque, visitada pelo S. Coração.

Pediu-o expressamente o mesmo Cristo à sua fiel confidente Santa Margarida Maria de Alacoque e o confirmaram plenamente Pio XI e Pio XII. Eis aqui os textos:

Cristo: Então, descobrindo-me seu divino Coração, disse-me: “Eis aqui este Coração que tanto tem amado os homens, que tudo perdoou até esgotar-se e consumir-se, a fim de lhes mostrar seu amor; e, como agradecimento, não recebe da maior parte deles senão ingratidões, com suas irreverências e sacrilégios e com a frieza e os desprezos que têm para com Ele no sacramento de seu amor… Tu, ao menos, dá-me esta satisfação: de suprir suas ingratidões tanto quanto te seja possível [ii].

Pio XI: E, efetivamente, o espírito de expiação ou reparação sempre teve o primeiro e principal lugar no culto que se presta ao Sacratíssimo Coração de Jesus; e, como se confirma pela história, os costumes, além da Sagrada Liturgia e os decretos dos Sumos Pontífices, nenhum outro é mais adequado à origem, à natureza, à eficácia e às práticas próprias desta particular forma de devoção (n. 9).

Pio XII: Desde quando se promulgaram os primeiros documentos oficiais relativos ao culto do Coração Sacratíssimo de Jesus, tem sido constante persuasão da Igreja, mestra da verdade para os homens, que os elementos essenciais desse culto, quer dizer, os atos de amor e de reparação tributados ao amor infinito de Deus para com os homens, longe de estarem contaminados de materialismo e de superstição, constituem uma forma de piedade em que se põe plenamente em prática aquela religião espiritual e verdadeira que o próprio Salvador anunciou à samaritana: “Já chega o tempo, e já estamos nele, em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade” (Jo 4, 23-24) (n. 56).

Em razão disso tudo, a veneração e o culto ao Coração Sacratíssimo de Jesus constitui a mais completa profissão da religião cristã.

Pio XII o diz expressamente com essas mesmas palavras:

Essa verdade fundamental permite-nos entender como o Coração de Jesus é o Coração de uma pessoa divina, quer dizer, do Verbo encarnado, e que, por conseguinte, representa e nos põe ante os olhos todo o amor que ele nos teve e ainda nos tem. E aqui está a razão por que, na prática, o culto ao Sagrado Coração é considerado como a mais completa profissão da religião cristã. Verdadeiramente, a religião de Jesus Cristo funda-se toda no Homem-Deus Mediador, de maneira que não se pode chegar ao coração de Deus senão passando pelo Coração de Cristo, conforme o que Ele mesmo afirmou: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Ninguém vem ao Pai senão por mim” (Jo 14, 6) (n. 60).

Referências

  1. Cf. Antonio Royo Marín, Jesucristo y la vida cristiana. Madrid: BAC, 1961, pp. 205-208, nn. 185-191.
  2. S. Margarida Maria de Alacoque, Vie et œuvres. Paris, 1920, t. 2, p. 27.

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