Oitenta e seis anos atrás, nesta semana, o Papa Pio XI publicou duas encíclicas condenando dois dos regimes mais brutais da história: a Alemanha nazista de Hitler e a União Soviética de Stálin. Pio XI lançou Mit Brennender Sorge (“Sobre a Igreja e o Reich Alemão”), em 14 de março de 1937 (contrabandeado para a Alemanha e lido nos púlpitos em 21 de março, Domingo de Ramos), e Divini Redemptoris (“Sobre o comunismo ateu”), em 19 de março de 1937 (festa de São José).
Os documentos foram emitidos quando a máquina de guerra de Hitler e o reinado de terror de Stálin estavam a pleno vapor. (Seis anos antes, ele publicou uma encíclica condenando o fascismo italiano). Pio XI deu exemplo de coragem heroica ao falar a verdade ao poder [constituído] numa era de ditaduras.
Em Mit Brennender Sorge, Pio XI confrontou diretamente a ideologia neopagã e racista dos nazistas. Ele escreveu que apenas “mentes superficiais” prendem Deus “dentro dos limites estreitos de uma única raça”. Os cristãos “negam sua fé no Cristo real” se negam que o Antigo Testamento seja “por inteiro palavra de Deus” e uma “parte substancial de sua revelação”.
A Torá mostra que a Criação não foi mero produto de uma força impessoal como a necessidade ou o acaso. Todo e cada ser humano é criado pelo ato livre de um Deus amoroso, que o dota de um espírito capaz de reflexão e de livre-arbítrio. As Escrituras judaicas mostram o desdobramento da promessa de salvação de Deus ao povo escolhido, que se cumpre em Cristo para todos. Em 1938, Pio XI reafirmou que, “espiritualmente, somos semitas”.
Bento XVI viveu nesse mesmo período na Alemanha e, mais tarde, escreveu que o “decisivo não a todo racismo” é o ensinamento do Gênesis de que toda pessoa, sem exceção, é formada com o espírito de Deus, à imagem de Deus e a partir de uma só terra. Como todos são formados da mesma terra, “há apenas uma humanidade em muitos seres humanos”, e “não diferentes tipos de ‘sangue e solo’, para usar um slogan nazista”.
Este ensinamento bíblico também mina a tirania nazista. A alma imortal de cada pessoa sobreviverá a qualquer poder histórico. A Criação de Deus e redenção de cada indivíduo é o maior dom de dignidade pessoal que não pode ser concedido por um regime. Cristo “me amou e se entregou por mim” (Gl 2, 20), não para um coletivo exclusivo como uma raça ou um império. O baluarte final contra o totalitarismo é a promessa de uma ressurreição pessoal, que supera infinitamente qualquer esperança de uma sociedade ideal na terra.
Pio XI advertiu que os nazistas pretendiam uma “guerra de extermínio”, incluindo uma campanha brutal contra a Igreja. Por causa das repetidas advertências da Igreja contra a ideologia nazista ao longo de vários anos, Pio XI concluiu que nenhuma pessoa honesta “poderia atribuir à Igreja e ao seu Supremo Chefe a culpa” da devastação causada pelo regime de Hitler.
Em Divini Redemptoris, Pio XI diagnosticou violações semelhantes à dignidade humana no império de Stálin. Uma vez que o comunismo sustenta que a humanidade é determinada apenas pela matéria e um inevitável conflito de classes na história, “não há lugar sequer para a ideia de Deus”, de modo “que a alma não sobrevive depois da morte, nem há outra vida depois desta” (DR 9). Os soviéticos desdenharam a esperança cristã no Céu porque ela eclipsou a versão comunista de uma sociedade perfeitamente justa na história.
A tradição social católica sustenta que a vida interior do indivíduo é a origem do desenvolvimento social autêntico, e não entidades coletivas como uma classe, um Estado ou um processo histórico cego.
Em Centesimus Annus, São João Paulo II ensinou que o “primeiro e maior trabalho” para construir uma sociedade “realiza-se no coração do homem”. O principal modelador do coração não é o sistema político ou econômico de uma sociedade. É na cultura que a Igreja dá o seu “contributo específico e decisivo” (CA 51). A preocupação vital da Igreja pela vocação das almas individuais é o fundamento do desenvolvimento social.
Há certo “individualismo” no pensamento social católico. Em Populorum Progressio, Paulo VI ensinou que, embora a comunidade mais ampla possa ajudar na realização pessoal, em última análise é dever do indivíduo ser o “artífice principal” de seu sucesso, autorrealização e salvação. Esses objetivos não são forjados pelo “eu” da pessoa, mas são inspirados pelo desejo de cada um de autorrealização no sentido mais profundo.
Como disse Bento XVI em sua homilia antes da eleição ao papado:
Todos os homens querem deixar vestígios duradouros. Mas o que permanece? O dinheiro não. Também os edifícios não permanecem; os livros também não. Depois de certo tempo, mais ou menos longo, todas estas coisas desaparecem. A única coisa que permanece eternamente, é a alma humana, o homem criado por Deus para a eternidade. O fruto que permanece é, portanto, [tudo] quanto semeamos nas almas humanas.
Em Caritas in Veritate, Bento XVI ensinou que servir às necessidades materiais dos outros “faz parte” da evangelização, porque a Cristo “interessa o homem inteiro” (CV 15). Servir ativamente às necessidades materiais e espirituais de nossos semelhantes é indispensável para a fé que, de outra forma, está “morta” (Tg 2, 16).
Não há dualismo de corpo e alma. Prover às necessidades básicas de uma pessoa também toca sua alma. O trabalho bem feito, por iniciativa e caridade próprias, em colaboração gratuita com os outros, presta um serviço material e espiritual. O bom trabalho, por mais mundano que seja, semeia bondade nas almas humanas e frutos que perduram.
Este tem sido o ensinamento das tradições judaica e cristã. O comentário da Conferência dos Bispos Católicos dos Estados Unidos a Ap 14, 13 sustenta que, “de acordo com o pensamento judaico, os atos das pessoas seguem-nas como testemunhas ante o tribunal de Deus”. Essas ações incluem o trabalho para o desenvolvimento econômico.
Pio XI também refutou os soviéticos em seu desejo de erradicar o direito à propriedade privada. Este direito é concedido por Deus para capacitar o indivíduo a viver concretamente sua vocação a servir aos outros. Cria incentivos para trabalhar de forma diligente e criativa, resultando em “uma intensa atividade de toda a vida econômica” (DR 51).
Em Mater et Magistra, São João XXIII viu a propriedade privada não apenas como um incentivo para o bom trabalho, mas também como “garantia” da liberdade, porque sua negação suprime as “expressões fundamentais da liberdade” (MM 109).
Para um regime controlar a economia, deve também controlar a vida política e cultural. Todos devem contar com o Estado para obter trabalho e meios para garantir as necessidades básicas. O Estado nega os direitos políticos e culturais que impediriam o poder total do Estado sobre a vida econômica. A subsidiariedade é desconsiderada. O comunismo só permite compartilhar bens materiais. Entretanto, não se pode dar o que só se pode compartilhar. Só se pode dar o que é próprio. Quando um governo inibe essa dinâmica de doação, o resultado é a estagnação econômica.
Em contraste, a propriedade privada permite que os indivíduos ganhem, possuam e usem bens para sustentar a família, criar riqueza para a comunidade, apoiar a Igreja, contribuir para uma cultura mais humana e participar da política de maneira significativa. Dar o que se ganhou com os próprios talentos, tempo e esforço no trabalho é uma maneira fundamental de dar a si mesmo aos outros. Ter o direito e o dever de administrar os recursos da Criação de Deus é uma grande honra. A propriedade privada não deve ser acumulada, mas usada para criar oportunidades e recursos para outros. Esse é o significado da natureza da “hipoteca social” da propriedade privada.
O paradoxo divino é que, quando se trata de frutos duradouros, nós recebemos o que damos.
Quem visitou Leningrado ou Moscou na década de 1980 pôde testemunhar como a negação da propriedade privada é devastadora. As pessoas faziam fila e curvavam-se ao longo das ruas frias, à espera de poder comprar alimentos básicos. No trabalho, não havia oportunidades ou recompensas por tomar iniciativas criativas. O controle das autoridades locais minou o espírito dos indivíduos; só os desgastou. Eles não tinham esperança de possuir absolutamente nada que pudesse ser investido, guardado, usado e dado livremente.
O Papa advertiu que os soviéticos não seriam capazes de alcançar seus objetivos “nem sequer no campo econômico”. Simplesmente não iria funcionar. Stálin poderia aumentar temporariamente o PIB com trabalho escravo em massa; mas, sem fomentar a iniciativa privada, o resultado seria a estagnação econômica. Pio XI pressagiava em 45 anos o discurso do presidente norte-americano Ronald Reagan em 1982, ao prever o colapso econômico da União Soviética.
Pio XI pôs a luta da Igreja contra o comunismo sob a proteção de São José (cf. DR 81). Agora, em vez de o 1.º de maio ser marcado por desfiles militares soviéticos, é mais conhecido como a festa de São José Operário, dia em que a Igreja reafirma o valor transcendente de todas as pessoas e de seu trabalho em harmonia com a Criação. A seu tempo, o “homem justo”, São José, derrotou o “homem de aço”, Joseph Stálin [i].
Embora as democracias ocidentais tenham sido poupadas de ditaduras políticas, Bento XVI advertiu que adotaram uma “ditadura do relativismo”, um relativismo que considera a pessoa apenas com seu “eu” e seus desejos.
Eventualmente, essa ideia enfraquece a atividade econômica. Quando não se reconhece a profundidade espiritual do trabalho diário, o desejo de realizações duradouras fica insatisfeito. A falta de coragem para trabalhar, sacrificar-se pelos outros e alcançar bens maiores toma conta. Se o “eu” é mais importante, há menos motivos para uma pessoa (como afirma a Gaudium et Spes, 35) sair de si e elevar-se sobre si mesma no trabalho.
Que ética fará a maior parte das pessoas doar-se generosamente no trabalho e em associações voluntárias? Sacrificar incansavelmente muitos bens na vida para, com paciência, criar a próxima geração em virtudes? A geração americana da Segunda Guerra Mundial merece todos os nossos elogios e muito mais. No entanto, talvez a grande geração tenha sido a que criou a geração da II Guerra com suficientes virtudes, coragem e amor ao país para derrotar as potências do Eixo.
Em sua Mensagem para a Quaresma de 2010, Bento XVI observou que o erro das ideologias modernas é afirmar que a injustiça vem exclusivamente “de fora” e, portanto, “para que reine a justiça é suficiente remover as causas externas que impedem a sua atuação”. A alegação é que a justiça perfeita é possível apenas com reformas legais, políticas e econômicas.
De fato, os cristãos são chamados a buscar diligentemente essas reformas. Mas “a origem” da injustiça está no coração humano e na vontade de afirmar-se “acima e contra os outros”. Por causa da liberdade humana, o egoísmo não pode ser totalmente e definitivamente extinto, seja qual for o nível da reforma social que se faça.
A gênese do desenvolvimento social autêntico não está em uma raça, classe, ditadura ou processo histórico. Começa com a reforma do coração de cada um, que é o objetivo da Quaresma; na verdade, o objetivo de toda a vida cristã.
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