Nos últimos tempos, uma das questões que tem gerado mais dúvidas e mal-entendidos entre os fiéis diz respeito ao chamado sacerdócio comum. Há quem pense tratar-se de pura e simples “novidade”, introduzida em tempos recentes como algo totalmente estranho ao conteúdo da sagrada Tradição; outros, pelo contrário, interpretando de forma indevida e exagerada os documentos eclesiásticos em que se fala do assunto, pretendem atribuir aos leigos poderes e prerrogativas que eles, na verdade, jamais exerceram em toda a história da Igreja.

A fim de esclarecer o verdadeiro alcance da expressão “sacerdócio comum dos fiéis”, conforme o sentido autêntico que lhe dá a Igreja, convém transcrever aqui algumas páginas cristalinas em que o Pe. Antonio Royo Marín [1] explica de modo mais do que transparente este tema controvertido, que, longe de ser um detalhe marginal dentro da doutrina católica, tem grandes repercussões práticas na vida espiritual de todos os batizados.

As explicações seguintes servem, antes de tudo, para pôr em relevo o que, no fundo, já está dito com todas as letras no próprio Catecismo da Igreja Católica (cf. n. 1591s), a saber: o sacerdócio comum e ministerial, embora constituam duas participações no único sacerdócio de Cristo, são distintos não apenas em grau, mas essencialmente.


Um princípio teológico fecundíssimo ensina que tudo o que há em Jesus Cristo como cabeça do Corpo místico existe também, proporcionalmente, nos membros desse mesmo corpo, contanto que se trate de perfeições comunicáveis.

Em Jesus Cristo, com efeito, há duas classes de perfeições muito distintas entre si:

  • umas lhe são de tal maneira próprias e exclusivas que são, em si mesmas, incomunicáveis aos demais; tais são, por exemplo, a união hipostática e a plenitude absoluta de graça;
  • e outras que são, por sua própria natureza, comunicáveis aos membros de seu Corpo místico e estão em Cristo como cabeça ou origem primária da qual derivam para os demais; tais são, principalmente, a graça santificante, as virtudes infusas e os dons do Espírito Santo.

A este segundo grupo de graças pertence o seu sacerdócio. Cristo o possui em toda a sua plenitude absoluta e, neste sentido, o sacerdócio lhe é próprio e exclusivo; mas Ele pode comunicar (e de fato comunica) a seus membros uma participação verdadeira e real do seu próprio sacerdócio, ainda que em graus muito diferentes de intensidade e perfeição.

Essa participação do seu sacerdócio constitui a essência mesma do chamado caráter sacramental, que, como se sabe, é como uma marca ou selo indelével que imprimem na alma três dos sete sacramentos instituídos pelo próprio Cristo: o Batismo, a Confirmação e a Ordem sacerdotal.

Por conseguinte, todo aquele que recebe um sacramento que imprime caráter participa, por isso mesmo, do sacerdócio de Jesus Cristo. Essa participação:

  • começa com o caráter do Batismo;
  • aperfeiçoa-se com o da Confirmação;
  • e chega à máxima plenitude que pode alcançar em nós com o caráter do sacramento da Ordem.

De maneira que não é nenhum erro nem sequer um “piedoso exagero” falar de um sacerdócio dos fiéis, não em sentido metafórico, mas num sentido muito real e verdadeiro. O caráter batismal e o da Confirmação conferem aos simples fiéis uma participação muito real e verdadeira do sacerdócio de Jesus Cristo em sentido próprio.

É claro que é preciso entender retamente o verdadeiro alcance desta participação para não incorrer em lamentáveis equívocos e extravios. Existe um abismo entre a participação do sacerdócio de Cristo que recebem todos os fiéis, pelo fato de estarem batizados e confirmados, e a do ministro de Jesus Cristo, que recebeu, além disso, o sacramento da Ordem sacerdotal.

Vamos expor a seguir, com toda precisão e cuidado, numa série de conclusões, o que pertence a um e a outro sacerdócio.

Em primeiro lugar, é falso e herético dizer que todos os cristãos são sacerdotes no mesmo sentido em que o são os que receberam devidamente o sacramento da Ordem.

Esta conclusão consta expressamente das declarações do Concílio de Trento contra os reformadores protestantes, que afirmavam semelhante disparate.

No entanto, os simples fiéis recebem, sim, uma participação verdadeira e real do sacerdócio de Jesus Cristo em virtude do caráter do Batismo e da Confirmação.

Esta conclusão consta claramente dos lugares teológicos tradicionais. Eis aqui as provas.

a) A Sagrada Escritura. — Os textos alusivos ao sacerdócio de todo o povo fiel são abundantíssimos. Já no Antigo Testamento se vai insinuando progressivamente esta sublime realidade, cuja plena revelação estava reservada para a lei evangélica. Oferecemos a seguir uma seleção de textos extraídos dos dois Testamentos bíblicos.

Ao promulgar a Lei no Sinai, Deus disse ao povo por boca de Moisés:

Agora, pois, se obedecerdes à minha voz, e guardardes minha aliança, sereis o meu povo particular entre todos os povos. Toda a terra é minha, mas vós me sereis um reino de sacerdotes e uma nação consagrada. Tais são as palavras que dirás aos israelitas (Ex 19, 5-6).

O profeta Isaías renova esta promessa, aplicando-a aos tempos messiânicos:

O espírito do Senhor repousa sobre mim, porque o Senhor consagrou-me pela unção […]; virão estrangeiros apascentar vosso gado miúdo, gente de fora vos servirá de lavradores e vinhateiros; a vós chamar-vos-ão sacerdotes do Senhor, de ministros de nosso Deus sereis qualificados (Is 61, 1-6).

O Apóstolo São Pedro escreve taxativamente em sua primeira epístola dirigindo-se a todos os cristãos:

[…] quais outras pedras vivas, vós também vos tornais os materiais deste edifício espiritual, um sacerdócio santo, para oferecer vítimas espirituais, agradáveis a Deus, por Jesus Cristo (1Pd 2, 5).

E um pouco mais abaixo:

Vós, porém, sois uma raça escolhida, um sacerdócio régio, uma nação santa, um povo adquirido para Deus, a fim de que publiqueis as virtudes daquele que das trevas vos chamou à sua luz maravilhosa (1Pd 2, 9).

São Paulo alude claramente ao sacerdócio dos fiéis, sobretudo quando os exorta a se oferecerem a Deus em sacrifício:

Eu vos exorto, pois, irmãos, pelas misericórdias de Deus, a oferecerdes vossos corpos em sacrifício vivo, santo, agradável a Deus: é este o vosso culto espiritual (Rm 12, 1).

São João insiste repetidas vezes no Apocalipse:

[…] da parte de Jesus Cristo […],  que nos ama, que nos lavou de nossos pecados no seu sangue e que fez de nós um reino de sacerdotes para Deus e seu Pai (Ap 1, 5-6).

Cantavam um cântico novo, dizendo: Tu és digno de receber o livro e de abrir-lhe os selos, porque foste imolado e resgataste para Deus, ao preço de teu sangue, homens de toda tribo, língua, povo e raça; e deles fizeste para nosso Deus um reino de sacerdotes, que reinam sobre a terra (Ap 5, 9-10).

Na Sagrada Escritura, portanto, se encontra claramente expressa a doutrina do sacerdócio real dos simples fiéis.

b) Os Santos Padres. — É muito frequente nos Santos Padres a alusão ao sacerdócio dos fiéis. Eis aqui, a título de exemplo, um texto muito expressivo de São Leão Magno dirigindo-se ao povo de Roma por ocasião do aniversário de sua eleição papal:

Tendes motivos para celebrar este aniversário se fosse vosso. Porque, embora a Igreja de Deus esteja constituída por diversos graus, a integridade de seu sagrado corpo resulta da união de todos os seus membros. Como diz o Apóstolo, “todos somos um em Cristo” (Gl 3, 28), e não há um só membro tão separado do ofício de outro que não esteja unido com ele na unidade da cabeça.

Na unidade da fé e do Batismo formamos uma sociedade indivisível e participamos todos de uma comum dignidade, conforme aquelas palavras do Apóstolo São Pedro: “Quais outras pedras vivas, vós também vos tornais os materiais deste edifício espiritual, um sacerdócio santo, para oferecer vítimas espirituais, agradáveis a Deus, por Jesus Cristo”. E pouco depois: “Vós, porém, sois uma raça escolhida, um sacerdócio régio, uma nação santa, um povo adquirido” (1Pd 2, 5 e 9).

Porque a todos os regenerados em Cristo, o sinal da cruz os faz reis, e a unção do Espírito Santo os consagra sacerdotes, para que, à parte este especial serviço de nosso ministério (sua dignidade papal), todos os cristãos espirituais e razoáveis saibam ser de régia dignidade e partícipes do ofício sacerdotal.

De fato, o que há de mais régio do que, tendo a alma submetida a Deus, ser governante do próprio corpo? E que outra coisa é mais sacerdotal do que oferecer a Deus uma consciência pura e oferecer no altar do coração as hóstias imaculadas da piedade?

E sendo tudo isso, pela graça de Deus, comum a todos, é justo e razoável que vos alegreis no dia de nossa eleição como se se tratasse de vossa própria honra. Com efeito, em todo o corpo da Igreja não existe mais do que um só pontificado (o de Cristo), cuja graça misteriosa, embora se derrame com maior abundância sobre os membros superiores (o Papa, os bispos, os sacerdotes), nem por isso deixa de fluir sem parcimônia até os membros inferiores [2].

c) O Magistério da Igreja. — O ensinamento oficial da Igreja a respeito do sacerdócio dos fiéis foi exposto com extraordinária precisão e claridade em nossos dias pelos imortais pontífices Pio XI e Pio XII. Vejamos alguns textos.

Pio XI, em sua Encíclica Miserentissimus Redemptor, escreve [3]:

Não gozam da participação deste misterioso sacerdócio e deste ofício de satisfazer e sacrificar somente aqueles de quem Nosso Senhor se serve para oferecer a Deus a oblação imaculada, do nascente ao poente em todo lugar (cf. Ml 1, 11), senão que toda a família cristã, chamada com razão pelo Príncipe dos Apóstolos “raça escolhida, um sacerdócio régio” (1Pd 2, 9), deve, tanto por si mesma como por todo o gênero humano, oferecer sacrifícios pelos pecados, quase da mesma maneira que todo sacerdote e pontífice, “escolhido entre os homens e constituído a favor dos homens como mediador nas coisas que dizem respeito a Deus” (Hb 5, 1).

Pio XII, em sua magnífica Encíclica Mediator Dei, expõe amplamente a natureza do sacerdócio dos fiéis, rechaçando as imprecisões e exageros que sobre ele vêm-se difundido ultimamente e proclamando com rigor e exatitude a doutrina verdadeira. Transcrevemos alguns parágrafos particularmente representativos [4]:

Com clareza não menor, os ritos e as orações do sacrifício eucarístico significam e demonstram que a oblação da vítima é feita pelos sacerdotes em união com o povo.

De fato, não somente o sagrado ministro, depois da oferta do pão e do vinho, voltado para o povo diz explicitamente: “Orai, irmãos, para que o meu e o vosso sacrifício sejam aceitos junto a Deus-Pai onipotente”, mas ainda as orações com as quais é oferecida a vítima divina são, além do mais, ditas no plural, e nelas se indica que também o povo toma parte como ofertante neste augusto sacrifício.

Diz-se, por exemplo: “Pelos quais nós te oferecemos, e que eles mesmos te oferecem… Por isso te suplicamos, ó Senhor, aceitar aplacado esta oferta dos teus servos e de toda a tua família… Nós, teus servos, como ainda o teu povo santo, oferecemos à tua excelsa majestade os dons e dádivas que tu mesmo nos deste, a hóstia pura, a hóstia santa, a hóstia imaculada”.

Nem é de admirar que os fiéis sejam elevados a uma tal dignidade. Com a água do Batismo, com efeito, os cristãos se tornam, a título comum, membros do Corpo místico de Cristo sacerdote, e, por meio do caráter que se imprime nas suas almas, são delegados ao culto divino, participando, assim, de modo condizente ao próprio estado, do sacerdócio de Cristo.

d) A razão teológica. — Pio XII destacou com toda precisão no texto que acabamos de citar a razão teológica fundamental do sacerdócio dos fiéis: o caráter sacramental do Batismo, completado pelo caráter do sacramento da Confirmação [5].

Com efeito, como explica Santo Tomás e é doutrina comum em teologia, o caráter sacramental não é outra coisa que um sinal ou um distintivo que fica impresso na alma de maneira indelével e que nos configura a Cristo sacerdote, dando-nos uma participação física e formal do seu próprio sacerdócio eterno. Escutemos o Doutor Angélico:

O caráter é, de modo geral, um certo selo com que se marca uma pessoa com o fim de ordená-la a um determinado fim, assim como se marca o dinheiro, para usá-lo no câmbio, ou o soldado, para associá-lo ao batalhão.

Pois bem, o cristão está destinado a duas coisas. A primeira e principal é a fruição da glória eterna, e para isto ele é marcado com o selo da graça. A segunda é receber ou administrar às outras pessoas as coisas que pertencem ao culto de Deus, e para isto ele é marcado com o caráter sacramental.

Ora, todos os ritos da religião cristã derivam do sacerdócio de Cristo. Por isso, é claro e evidente que o caráter sacramental é o caráter de Cristo, a cujo sacerdócio se configuram os fiéis segundo os caracteres sacramentais, que não são outra coisa que certas participações do sacerdócio de Cristo derivadas do mesmo Cristo [6].

Esta participação no sacerdócio de Cristo começa com o simples caráter batismal, é ampliado e aperfeiçoado com o da Confirmação e chega à sua plena perfeição com o da Ordem sagrada. Com relação à Igreja, o batismo nos faz cidadãos seus; a Confirmação, soldados; a ordem sacerdotal, ministros. Com relação à fé, o batizado a professa, o confirmado a defende e o sacerdote ordena as coisas que lhe dizem respeito.


No próximo artigo, veremos com mais detalhe quais são os atos e funções que competem ao sacerdócio comum dos fiéis, por contraposição ao que é próprio e exclusivo da sacerdócio sagrado e ministerial dos padres e dos bispos.

Referências

  1. Cf. Antonio R. Marín, Jesucristo y la Vida Cristiana. Madrid: BAC, 1961, pp. 566-570, nn. 552-554.
  2. S. Leão Magno, Serm. IV, De natali ipsius IV, c. 1 (PL 54, 148-149). Os parênteses explicativos são do Pe. Antonio Royo Marín, bem como as restantes notas abaixo.
  3. Pio XI, Encíclica “Miserentissimus Redemptor”, de 8 mai. 1928 (AAS 20 [1928] 172).
  4. Pio XII, Encíclica “Mediator Dei”, de 20 nov. 1947, nn. 78-79 (AAS 39 [1947] 555-556).
  5. Que o Batismo, a Confirmação e a Ordem sacerdotal imprimam caráter na alma de quem recebe validamente estes sacramentos é uma verdade de fé expressamente definida pelo Concílio de Trento.
  6. S. Th. III, q. 63, a. 3, co. Precisamente porque o caráter é uma mera participação do sacerdócio de Cristo, o mesmo Cristo não tem caráter sacerdotal. O seu sacerdócio pleno e absoluto está para o caráter assim como o perfeito e próprio está para o imperfeito e participado.

O que achou desse conteúdo?

Mais recentes
Mais antigos