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Christo Nihil Præponere"A nada dar mais valor do que a Cristo"
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Texto do episódio
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Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Mateus
(Mt 17,1-9)

Naquele tempo, Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João, seu irmão, e os levou a um lugar à parte, sobre uma alta montanha. E foi transfigurado diante deles; o seu rosto brilhou como o sol e as suas roupas ficaram brancas como a luz. Nisto apareceram-lhe Moisés e Elias, conversando com Jesus. Então Pedro tomou a palavra e disse: “Senhor, é bom ficarmos aqui. Se queres, vou fazer aqui três tendas: uma para ti, outra para Moisés e outra para Elias”. Pedro ainda estava falando, quando uma nuvem luminosa os cobriu com sua sombra. E da nuvem uma voz dizia: “Este é o meu Filho amado, no qual eu pus todo o meu agrado. Escutai-o!” Quando ouviram isto, os discípulos ficaram muito assustados e caíram com o rosto em terra. Jesus se aproximou, tocou neles e disse: “Levantai-vos e não tenhais medo”. Os discípulos ergueram os olhos e não viram mais ninguém, a não ser somente Jesus. Quando desciam da montanha, Jesus ordenou-lhes: “Não conteis a ninguém esta visão até que o Filho do Homem tenha ressuscitado dos mortos”.

Todos os anos, no 2.º Domingo da Quaresma, nós meditamos sobre o Evangelho da Transfiguração. Trata-se do evangelho de São Mateus, capítulo 17, versículos 1 a 9. Por que a Igreja nos coloca o evangelho da Transfiguração na Quaresma?

Santo Tomás de Aquino, ao se perguntar se foi oportuno que Jesus se transfigurasse, lembra que, quando nós temos um caminho a seguir, principalmente se o caminho for árduo, precisamos ter claro para onde estamos indo e qual é a nossa finalidade — ainda mais se o caminho for difícil e a finalidade última, gloriosa e alegre!

Então, Jesus se transfigura exatamente porque nós, que nesta vida vivemos um caminho quaresmal, carregando a nossa cruz no dia a dia, nós, que temos de viver a luta árdua do dia a dia, precisamos ter sempre diante dos olhos a finalidade última, o porquê de estarmos aqui, sofrendo e lutando, que é a glória do Céu.

Jesus se transfigura no Evangelho porque aqueles discípulos que ali estavam deveriam, com Ele, passar pelo túnel escuro e terrível da paixão e morte. E exatamente porque era árduo o caminho, precisavam contemplar a glória de Cristo porque isso os animaria.

Uma vez que entendemos isso, entendemos perfeitamente por que a Igreja, no meio da Quaresma, nos propõe esse evangelho. Por que o evangelho da Transfiguração é lido hoje? Porque se nós nos cobrimos de cinzas e fazemos penitência durante o tempo da Quaresma, é exatamente para que, um dia, estejamos cobertos de vestes gloriosas, alvejadas no sangue do Cordeiro. Nossas vestes serão brancas como a neve, como as vestes de Cristo na transfiguração, pois estaremos contemplando a Deus na sua glória e seremos também nós gloriosos.

Ora, uma vez que se entende isso, parece que está resolvido o problema e que não temos mais nada que dizer. A realidade é que nós precisamos ainda aplicar isso em nossas vidas; mas nós, infeliz e miseravelmente, estamos vivendo num contexto de Igreja em que se fala muito pouco do Céu, muito pouco da glória.

É exatamente porque se fala pouco da glória do Céu que a vida e a cruz do dia a dia se tornam absurdas. Ora, por que eu estou nesta vida? Por que esta vida não me dá tudo o que quero? Por que fazemos parte dessa “piada” de mau gosto, dessa vida medonha em que não somos felizes?

Basta olhar com sinceridade, coragem e clareza para o que vivemos no dia a dia. Todos nós queremos ser felizes; mas, infelizmente, a felicidade não está disponível. Deus criou o homem para ser feliz.

Olhemos para o projeto originário de Deus. Quando criou Adão e Eva, Deus os pôs no paraíso, mas num paraíso terrestre. Adão e Eva estavam aqui para ser felizes. De fato, todos nós fomos criados por Deus para ser felizes na terra. Por isso, de alguma forma, continuamos buscando aqui a felicidade. Afinal, era esse o projeto originário.

Acontece que, miseravelmente, nós jogamos fora essa felicidade, ou seja, jogamos fora a felicidade desta vida na terra; e o que sobrou para nós foi um mundo cheio de cruzes, um mundo que mais parece uma “quaresma” do que uma “páscoa” gloriosa. A vida é um caminho de viajante, de viator, de homem caminheiro, de quem tem de passar quarenta anos no deserto para finalmente chegar à terra prometida.

O caminho é desanimador! É desanimador porque, de fato, as agruras, as dificuldades e os sofrimentos do dia a dia são muito pesados para nós e, principalmente, são pesados para quem se esquece do Céu.

Nós, esquecidos do Céu; nós, esquecidos de que existe uma recompensa de glória esperando por nós junto de Deus, o que fazemos? Trocamos a promessa divina de felicidade pelas ilusões do mundo, pelas mentiras do demônio, pelas sensações banais da carne.

Meus queridos, o tempo da Quaresma é tempo de acordar, de dar um chacoalhão na vida e de dizer: “Escute! Acorde, cara! Acorde e caia na realidade!”.

Por exemplo, suponhamos que você esteja se preparando para casar. Você acha que será feliz? “Ah! padre… É claro que eu vou ser feliz”. Mas espere um pouco… Você conhece dezenas de pessoas casadas, e nenhuma delas tem felicidade perfeita no próprio casamento. Ora, o que leva você a ser tão presunçoso, soberbo e arrogante, a ponto de achar que, se com o resto da humanidade não dá certo, com você, “espécie única”, vai dar certo?

Suponhamos que você esteja estudando na universidade. Ora, você conhece centenas de profissionais infelizes. Mas não… Com você vai dar certo… Você, sim, será um profissional realizado, sem defeitos… Você conhece centenas de pessoas que lutam para recuperar a saúde com médicos, mas pensa que só você nunca terá doenças. Você conhece dezenas de pessoas fechadas no próprio egoísmo, mas acha que só você estará livre disso.

Ora, há alguma coisa errada com você! Você está fora do mundo real. Você precisa, sim, tomar a cruz. Jesus mostra sua glória aos discípulos Pedro, Tiago e João, não para que eles armem tendas e morem no Monte Tabor, vivendo a glória já aqui neste mundo. Jesus mostra-lhes sua glória para que eles, no fim, se levantem e, com Ele, sigam o duro caminho em direção à cruz.

Eis aí o nosso projeto de vida, exposto com muita clareza pelo Evangelho. Precisamos acordar das ilusões e tomar a cruz. Mas como isso, evidentemente, é desanimador, precisamos professar nossa fé com toda a clareza na glória futura que nos espera.

Uma vez que se enxergou isso, ou seja, o fato de que, no fundo, já não esperamos a glória futura, mas vivemos na ilusão de que o paraíso está na terra; uma vez que se varre essa ilusão: “Não, essa vida será dura, será um desafio, por isso preciso me entregar, preciso viver a vida sem egoísmo, tomar a cruz no dia a dia e caminhar para a glória no Céu”; uma vez, ia dizendo, que temos tudo isso muito claro, há alguns pequenos pontos que podemos acrescentar à nossa meditação.

Olhemos de mais perto a narrativa da Transfiguração do Senhor: “Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João”. É assim que começa o Evangelho. Mas a pergunta é: — Por que Jesus levou consigo esses três, e não levou logo os Doze? Melhor ainda: — Por que Jesus levou consigo esses três, mas não levou toda a multidão de discípulos? Por que não levou todo o mundo? Não seria mais fácil? Não seria melhor que Jesus se mostrasse a todos e, assim, todos vissem a glória futura, pronto e acabou: “Vamos carregar a cruz”? Por que Jesus não nos aparece glorioso a nós, já que assim nos seria mais fácil crer. Por que só a esses poucos escolhidos?

Pois bem, os três foram escolhidos por suas qualidades especiais. Pedro foi escolhido pelo amor que tinha a Cristo; João, porque era amado por Cristo; e Tiago, porque seria o primeiro a pagar com o martírio o preço do amor. É o amor de Cristo a razão por que progredimos na vida espiritual.

Esses três Apóstolos nos mostram que, se queremos verdadeiramente, já nesta vida, crescer na fé a tal ponto que, ainda encobertos pelo véu da fé, vejamos a glória que nos foi prometida, então precisamos crescer no amor.

Pedro tinha um amor rompante por Jesus, um amor até um pouco estabanado e afoito. Ele diz a Jesus: “Senhor, que isso não aconteça! Que tu não vás para a morte em Jerusalém”. Mas Jesus diz: “Afasta-te, Satanás”. Sim, foi por amor a Cristo que Pedro disse isso. Ao ver o Cristo aproximar-se da barca, Pedro diz: “Senhor, ordena que eu caminhe na tua direção sobre as águas”, e foi o amor que o levou a lançar-se na água. Foi esse mesmo amor que Pedro quis declarar na Última Ceia: “Senhor, eu irei contigo até a morte”.

Foi esse amor que fez Pedro cortar a orelha ao servo do sumo sacerdote. Foi esse mesmo amor a Deus que o fez, arrependido, chorar o seu pecado e a sua miséria. Pedro é exemplo para nós, exemplo de amor fervoroso. Pedro é homem de amor ardente, de amor fervoroso. Nós, nesse sentido, precisamos imitá-lo. Se queremos atravessar esta vida carregando a cruz, sabendo que o Céu espera por nós, precisamos de um amor como o de Pedro.

Mas não somente isso. O amor também tem de saber pagar o preço do amor. Tiago, de todos os Apóstolos, foi o primeiro a pagar o preço do amor ao ser martirizado. Herodes mandou matar Tiago, dizem os Atos dos Apóstolos, e quando viu que isso agradava aos judeus, continuou a perseguir a Igreja.

O Apóstolo São Tiago, martirizado, o primeiro dos Apóstolos a derramar o sangue, nos mostra que o amor fervoroso de Pedro tem de saber pagar as consequências porque, se você não quer sofrer, é porque você, no fundo, não ama de forma profunda, de forma madura e arraigada. Enfim, quem não quer sofrer por ninguém não ama ninguém. Nós que amamos a Cristo precisamos saber que Jesus não vai nos deixar no nosso comodismo burguês.

Há certa ideologia que quer que sejamos cristãos, mas não quer que paguemos o preço de ser cristão, ou seja, quer um Deus cristão falsificado: “Deus é bonzinho, Deus é meu amiguinho e, porque Ele é bonzinho, Ele não quer que eu sofra”.

Ora, Deus é Pai, e o Pai e permite, sim, que nós soframos porque quer que nós entremos na escola do amor, e não é possível sair do seu egoísmo e começar a amar sem sofrer. Tiago foi levado para o alto da montanha. Com isso, nós precisamos aprender a pagar o preço de amar Jesus.

Finalmente João, o discípulo amado; João, o predileto; João é levado para o alto da montanha para ver Jesus transfigurado porque ele é, para nós, um sinal de que todos somos prediletos de Deus. Deus nos ama de forma muito especial.

Quando ler os Evangelhos, recorde-se de que Jesus está pensando em você o tempo todo, amando você o tempo todo. Quando você, por exemplo, abrir essa página da Transfiguração, pergunte-se por que Jesus se transfigurou.

Ora, não é pretensão você dizer que Jesus se transfigurou por “sua” causa? Não, pelo contrário! É a verdade. Jesus pensava em nós o tempo todo.

A Tradição da Igreja nos recorda que, embora Jesus tenha sido igual a nós em tudo e tenha sofrido nossa vida de peregrinos na terra, Ele recebeu uma missão especialíssima de Deus, a de amar a cada um de nós individualmente.

A Tradição sempre admitiu que, no núcleo da alma de Jesus, havia a experiência da visão beatífica, por isso Ele enxergava cada um de nós individualmente e amava cada um de nós de forma especialíssima. Por isso, quando lemos o Evangelho, vemos Jesus que ama; mas Ele não ama a humanidade “em geral”. Não é isso. Ele está amando você. Logo, você pode, com toda a clareza e com toda a certeza, ao olhar para o Menino Jesus no presépio, dizer: “Ele estava pensando em mim” porque, de fato, estava. Pela visão beatífica, Ele via você em Deus individualmente.

Quando Cristo escolhe três Apóstolos para subirem o Monte Tabor, Ele pensava em você. Pensava em você como seu predileto, por isso levou João; pensava em você como quem deveria amá-lo, por isso levou Pedro; pensava em você como quem deveria pagar o preço do amor, por isso levou Tiago. Jesus, justamente porque tinha, no íntimo da alma, a visão beatífica, pôde fazer a glória aparecer e transbordar da forma como Ele aparece glorioso no Monte Tabor.

A Transfiguração é expressão clara daquilo que já estava em Cristo desde sempre.

Para entender Jesus, ou seja, entender como era Jesus, imagine uma alta montanha, tão alta, que as nuvens só chegam à metade da montanha. Mas essas nuvens são nuvens de uma grande tempestade. Imagine agora essa tempestade a desabar em chuvas, em trovões, em relâmpagos, em raios, enfim numa enxurrada a molhar os pés das montanhas.

No entanto, o pico da montanha, elevadíssimo, acima da tempestade, está na luz, perto do Sol. Assim era a alma de Cristo. A parte mais elevada da alma de Cristo estava vendo a Deus face a face, e Jesus via a Deus face a face exatamente porque precisava amar você.

Se você acha que Jesus era um simples homem sem qualquer missão especial, portanto sem privilégios para cumpri-la, então, meu irmãozinho, tire o cavalo da chuva e o burro da lama: se for assim, Jesus não amou você, amou a humanidade “em geral” (na melhor das hipóteses) tanto quanto a fragilidade de uma alma humana pode amar…

Mas, se Deus deu ao seu próprio Filho que se fez homem, a missão de nos amar, então precisava dar a Ele os meios para cumprir essa missão. Deus não dá uma missão sem dar os meios para cumpri-la.

Os santos e os místicos, os santos teólogos e o próprio Magistério da Igreja sempre admitiram tradicionalmente que Jesus tinha a visão beatífica, portanto o “topo da montanha” estava ensolarado, ou seja, o núcleo da alma de Cristo estava vendo a Deus face a face.

Você talvez pense assim: “Ah! padre, se Ele tivesse a visão beatífica, como Ele poderia sofrer na paixão?” Porque a “base da montanha” estava debaixo das nuvens, o que não só não diminui o sofrimento de Cristo como o aumenta. Por quê? Porque Ele podia ver toda a ingratidão da humanidade pela visão beatífica. Ele via os nossos pecados. Ele via tudo por que iria sofrer, portanto Ele também sofreu por você.

Moisés e Elias aparecem a Cristo e falam sobre a paixão que Ele deverá sofrer em Jerusalém. Pedro, que não queria que Jesus sofresse, vê os três conversarem sobre a paixão, a mesma paixão que Pedro negara pouco antes.

Ora, por que eles conversavam sobre a paixão? Jesus, Moisés e Elias conversavam sobre a morte e o amor de Cristo por você. Você estava lá, você era o assunto da conversa. Ele amou você como amou, de forma privilegiada e especialíssima, a São João.

Por isso, meus queridos, neste 2º domingo da Quaresma, subamos o Monte Tabor e vejamos a glória que Cristo manifesta, lembrando a glória que nos espera no Céu.

Que o esplendor da Transfiguração nos anime a atravessar esta vida carregando a cruz do dia a dia. A cruz tem um sentido — é a cruz do amor. Amemos como Pedro, paguemos o preço do amor como Tiago e saibamos que somos amados, infinitamente amados, como João.

COMENTÁRIO EXEGÉTICO

1. Circunstâncias (Mt 17,1; Mc 9,2; Lc 9,28). — V. 1. Seis dias depois do colóquio com os discípulos em Cesaréia de Filipe, Jesus tomou consigo a Pedro, Tiago e João, seu irmão, os mesmos que admitira como testemunhas da ressurreição da filha de Jairo (cf. Mc 5,37; Lc 8,51) e havia de admitir na agonia do Horto (cf. Mt 26,37). Quanto ao número de dias, estão de acordo Mt e Mc, Lc porém escreve: Passados uns oito dias, o que alguns explicam dizendo que o evangelista numera o termo a quo e o ad quem, enquanto os outros não. Talvez o mais adequado seja dizer com Maldonado que Lc não indica o tempo de maneira precisa, mas confusa, por isso diz uns, i.e., ‘cerca de’.

— E os levou a um lugar à parte, sobre uma alta montanha, para que Ele se entregasse à oração (em Lc), e os três contemplassem sua glória.

Discutem os autores sobre o monte em que se deram estes acontecimentos. — 1) Tabor: Uma antiga tradição, de que são testemunhas Orígenes (cf. In Ps. 88, 13: ML 12,1547), Santo Epifânio (cf. De gemmis), São Cirilo de Jerusalém (cf. Catech. 12, 16: ML 33,744), São Jerônimo (Epist. 46, 12; 108, 13: ML 22,491) etc., afirma que se trata do monte Tabor (hoje Djebel el-Tor, a 320 m acima da planície circundante e 662 m acima do Mediterrâneo), opinião defendida ainda por bons autores. [i]. — 2) Outro monte: Há no entanto quem rejeite essa tradição como infundada e opine que o monte da Transfiguração foi algum cômoro do Antilíbano ou, mais provavelmente, o grande Hérmon (hoje Djebel el-Sheikh) [ii]. As principais razões em que se baseia a última sentença, defendida desde o séc. XIX sobretudo por católicos, são as seguintes: a) segundo Políbio (cf. Hist. 5.70.6), no tempo de Antíoco, o Grande, em 218 a.C., havia no monte Tabor (Itabyrium ou Atabyrium) uma cidade que Antíoco mesmo conquistara e fortificara. Embora não seja certo que ela ainda existisse no tempo de Cristo, Flávio Josefo (cf. Bell. jud. 4.1.8) afirma que em 67 d.C. havia ali uma planície amuralhada e habitantes que ‘não tinham outra água além da chuva’. Isso porém não parece concordar com a narração evangélica, que supõe um lugar deserto. — b) Os evangelistas situam a Transfiguração imediatamente após o colóquio em Cesaréia de Filipe, sem fazer menção alguma a um possível retorno à Galiléia; sinal, portanto, de que tanto uma coisa com outra aconteceram na mesma região.

Resposta. — Estas razões não têm peso suficiente para obrigar-nos a rejeitar a tradição. Com efeito, à 1.ª pode-se responder que Flávio Josefo, na obra citada e em sua Vita (cf. 37), não chama ao Tabor nem ‘cidade’ nem ‘aldeia’, nomes com que designa, na mesma passagem, outros locais habitados, mas ‘monte’. Além disso, não seria de estranhar que, em tempos de rebelião, os habitantes daquela zona tenham se refugiado no topo do monte, nas ruínas de uma antiga cidade. A melhor resposta à 2.ª é que Cristo e seus discípulos poderiam, sem nenhuma dificuldade, ter percorrido o caminho de volta num espaço de seis dias [ii]; de fato, os próprios evangelistas parecem supor que Cristo estava retornando à Galiléia, já que o descrevem, ao descer do monte, rodeado de turbas e escribas (cf. Mt 17,14; Mc 9,14; Lc 9,37) e, ao sair dali, já percorrendo a Galileia (cf. Mt 17,21; Mc 9,28), o que dificilmente poderia ter se dado aos pés do monte Hermón.

2. Cristo se transfigura (cf. Mt 17,2-9; Mc 9,3-9; Lc 9,29-36). — V. 2. E foi transfigurado (μετεμορφώθη) diante deles (Lc diz: Enquanto orava, transformou-se o seu rosto); como tenha sido essa transmutação, declara-se logo em seguida: O seu rosto brilhou como o sol e as suas roupas ficaram brancas como neve (gr. ὡς τὸ φῶς = como luz), i.e., apareceu envolto de claridade celeste. — É mais vívida a descrição de Mc: Suas vestes tornaram-se resplandecentes e de uma brancura tal, que nenhum lavadeiro sobre a terra as pode fazer assim tão brancas.

V. 3. Nisto apareceram-lhes Moisés e Elias, conversando com Jesus. Lc acrescenta: Que apareceram envoltos em glória, e falavam da morte dele (gr. τὴν ἔξοδον αὐτοῦ), quer dizer, do êxodo ou partida dele deste mundo, pela morte, ressurreição e ascensão, que se havia de cumprir em Jerusalém, i.e., falavam da morte de Cristo como fim e complemento da Lei e dos profetas. ‘Por Moisés é significada a Lei, por Elias são significados os profetas, pelo Senhor é significado o Evangelho: Cristo apareceu pois entre Moisés e Elias, como se o Evangelho fora confirmado pela Lei e os Profetas’ (Agostinho, In Ioh. XVII, 3) [iv]. Lc complementa: Entretanto, Pedro e seus companheiros tinham-se deixado vencer pelo sono (donde talvez se possa inferir que tudo sucedera à noite); ao despertarem (gr. διαγρηγορήσαντες, i.e., resistindo ainda ao sono, ou acordados do sono), viram a glória de Jesus e os dois personagens em sua companhia.

V. 4. Então Pedro, sem saber o que dizia (cf. Lc 9,33), i.e., fora de si por causa da grande alegria, tomou a palavra e disse: Senhor, é bom, i.e., grato e prazeroso ficarmos aqui. Se queres, vamos fazer (gr. ποιήσω = vou fazer) aqui três tendas: uma para ti, outra para Moisés, e outra para Elias, para nos deliciarmos sem cessar com este espetáculo, ou para que ponhas neste monte, com Moisés e Elias, o trono de tua glória. De resto, com efeito, não seria difícil construir as tendas com ramos de terebinto e carvalho, abundantes no monte Tabor. — Nota Mc que os Apóstolos estavam sobremaneira atemorizados, i.e., com aquela reverência e pavor de que são tomados os homens ao verem coisas extraordinárias. Tal pavor, contudo, não excluía a alegria e o gozo.

V. 5. Pedro ainda estava falando, quando uma nuvem luminosa, sinal e símbolo da presença divina (cf. Ex 16,10; 19,9.16 etc.), os cobriu, a saber: a Jesus, Moisés e Elias, tirando-os da vista dos Apóstolos, com sua sombra; e da nuvem uma voz dizia: Este é o meu Filho amado [v], no qual eu pus todo meu agrado. Escutai-o, i.e., obedecei-lhe como Legislador e crede nele como Mestre.

V. 6ss. Aterrorizados pela aparição da nuvem e pelo som da voz celeste, caíram os Apóstolos com o rosto em terra, até que Jesus se aproximasse e os tocasse com a mão, como também nós fazemos quando desejamos acordar alguém sonolento. Tendo os discípulos voltado a si, desapareceu a visão celeste e, olhando eles logo em derredor, já não viram ninguém, senão só a Jesus com eles. Os Apóstolos então ergueram os olhos e não viram mais ninguém, a não ser somente Jesus.

V. 9. Ao descerem do monte, Jesus lhes ordenou que, antes da ressurreição (até que o Filho do Homem tenha ressuscitado dos mortos), não contassem a ninguém, provavelmente nem aos demais Apóstolos, nada do que viram. A proibição de divulgar o fato tem o mesmo motivo que outras ordens semelhantes de Cristo após a realização de um milagre, qual seja: para não acirrar ainda mais o ânimo de seus inimigos e evitar que o povo o procure mais pelo desejo de ver maravilhas que pela doutrina da salvação.

Mc nota que os discípulos não entenderam o que queria dizer ser ressuscitado dentre os mortos, como tampouco haviam entendido outras vezes as predições da paixão.

Reflexão. — 1. Por que Cristo quis transfigurar-se? a) Para corroborar em nós a fé na ressurreição; b) para erguer e confirmar nossa esperança; c) para acender em nós o fogo da caridade divina; d) para consolar com a luz da glória sua Igreja, peregrina pelas trevas do mundo; e) para mostrar-nos quem de fato Ele é: Deus encarnado; f) para dar a seu Corpo místico ocasião de festa e alegria espirituais, muito distintas dos excessos e bacanais do mundo. — 2. As quatro transfigurações do homem: a) a desfiguração, do estado de graça para o de pecado; b) a recriação, do estado de pecado para o de graça; c) a condenação, dos prazeres do mundo para os suplícios da geena; d) e a glorificação, das misérias desta vida para o descanso da pátria celeste [vi].

Notas

  1. Na Igreja grega, a festa da Transfiguração (6 de ago.) é conhecida como τὸ θαβώριον.
  2. Assim pensavam Calmet, Patrizi, Fillion, Le Camus, Plummer etc.
  3. Cf. *G. Dalman, Les Itinéraires de Jésus. Trad. fr. de J. Marty. Paris, 1930, p. 269: ‘Podia-se ir a pé de Jerusalém a Cesareia de Filipe (165 km) em seis dias, sem maiores delongas’; em linha reta, Cesareia dista 80 km do monte Tabor.
  4. Já o dissera Orígenes (cf. In Matth. XII 38: MG 13, 1069s). Mas como Elias não profetizou nada sobre o Messias nem é contado entre os escritores proféticos, alguns autores mais recentes se perguntam qual teria sido o verdadeiro motivo de sua aparição. Alguns confessam simplesmente não sabê-lo, enquanto outros o veem nas semelhanças entre Jesus e Elias quanto à virtude, às obras, aos frutos do Espírito Santo etc. 
  5. Cristo é Filho de Deus não somente κατ’ εξοχήν, i.e., por excelência ou mais do que os outros (pela plenitude infinita da graça habitual), mas também por ser Filho único, unigênito, por consubstancialidade, como sempre entendeu a Tradição e claramente se deduz da aposição de ‘o amado’, com art. (lt. dilectus, gr. ὁ ἀγαπητός = caríssimo, termo com que a LXX frequentemente traduz o hebraico יָחִיד, ‘único’ (cf. Gn 22,2.12.16; Jr 6,26; Am 8,10; Zc 12,10; Pr 4,3); é portanto Filho natural, eterno, único, coigual.
  6. Tradução levemente adaptada de H. Simón, Prælectiones Biblicæ. Novum Testamentum. 4.ª ed., iterum recognita a J. Prado. Marietti, 1930, vol. 1, pp. 403–405, n. 280–281.

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