No dia 30 de março de 1962, foram concluídas as filmagens de um thriller de espionagem intitulado “007 contra o Satânico Dr. No”. 

O filme foi baseado num romance do autor britânico Ian Fleming, que fazia parte de uma série cujo herói é James Bond.   

O orçamento reduzido do filme (pouco mais de 1 milhão de dólares), a ausência de uma estrela no papel principal e a inexistência de recorde de bilheteria para thrillers de espionagem indicavam que o estúdio tinha uma expectativa de sucesso tão baixa quanto o orçamento do filme.  

Após o lançamento em outubro de 1962, “007 contra o Satânico Dr. No” não foi apenas um sucesso de bilheteria em todo o mundo, mas provocou um fenômeno mundial que, por sua vez, deu origem ao culto duradouro a James Bond. Este culto não dá sinais de que perderá seguidores tão cedo, já que em 2021 foi lançado “007 — Sem Tempo para Morrer”, o 25º filme da franquia; e, a julgar pelos rumores de um novo 007, esta década não termina sem que estreie mais um longa [i].    

Daniel Craig, o último ator a interpretar James Bond nos cinemas.

A personagem literária de Fleming apareceu pela primeira vez em seu romance de 1953: Cassino Royale. Antes da morte do autor em 1964, foram publicados outros grandes romances e duas coletâneas de contos protagonizados pelo Agente 007. 

Porém, dentre aqueles que já afluíram aos cinemas, de todas as partes do mundo, para assistir à encarnação cinematográfica de Bond, são poucos os que leram os romances. Na verdade, muitos frequentadores de cinema não têm ideia de que Bond existia em livros antes de aparecer em celuloide. No entanto, podem ficar tranquilos, pois embora os filmes como um todo tenham “envelhecido bem”, poucas pessoas diriam o mesmo sobre a versão literária de Bond. Da pena de Fleming nasceu um inglês esnobe, que menospreza cinicamente aqueles que carecem de sua formação privilegiada. Uma resenha contemporânea de Dr. No classificou-o como uma obra de “sexo, esnobismo e sadismo”, de tipo especificamente inglês. Desde o início, os produtores do filme descartaram muitos preconceitos da versão literária de Bond que estavam se tornando cada vez mais antiquados na nova ordem social que surgia então. Em vez disso, fizeram do herói do filme algo muito mais próximo de uma figura igualitária contemporânea, embora tenham se certificado de que ele continuasse mergulhado em sexo e sadismo.        

Sean Connery como James Bond.

Foi uma iniciativa sagaz. Além disso, os produtores tiveram uma boa dose de sorte na escolha de um ator escocês relativamente desconhecido: Sean Connery. De acordo com Fleming, Bond era um ex-oficial da marinha de classe alta; Connery, por outro lado, era um escocês da classe operária que havia sido entregador de leite antes de se tornar um simples marinheiro. É desnecessário dizer que Fleming ficou assustado com a escolha do ator para representar seu herói — de qualquer maneira, ao menos no início. Logo ele mudaria de opinião em relação ao protagonista, principalmente quando viu a reação das plateias e tomou conhecimento dos números de bilheteria.    

Na verdade, nos romances posteriores Fleming ajustou a biografia de Bond como uma espécie de aceno à identificação de Connery com James Bond: a escola particular onde estudou o espião passou a ser localizada na Escócia.  

Connery conferiu carisma ao papel. Os atores sugeridos por Fleming — por exemplo, Rex Harrison e David Niven (que interpretou 007 em “Cassino Royale”, uma paródia de espionagem de 1967) — teria proporcionado à série de espionagem no máximo uma breve memória cinematográfica. Até hoje seria possível argumentar que Connery, o catalisador inicial do sucesso do filme, ainda é a causa do ímpeto contínuo da série. 

Cerca de sessenta anos depois, é difícil imaginar o impacto desses filmes após seu lançamento na década de 1960 e a influência que eles exerceram na consciência popular. A mistura de aventura escapista, locais exóticos e promiscuidade sexual estava em perfeita sintonia com as mudanças na moral e nas atitudes que ocorreram na nova década e, aparentemente, nas décadas seguintes. 

O escritor britânico Ian Fleming, que criou a personagem de James Bond.

Bond era um herói autossuficiente que não se subordinava a ninguém e que aparentemente tinha uma habilidade preternatural de vencer os homens (as mulheres). Desde 1962, Bond dominou o mundo do cinema como um colosso, e o público jamais deixou de observar com atenção o seu glamour vazio.

Poucos anos antes (na década de 1950, por exemplo), um personagem de cinema como esse teria sido considerado desprezível. Curiosamente, o ator irlandês Patrick McGoohan foi sondado para interpretar o papel. Católico devoto, ele se recusou a fazê-lo por causa da imoralidade da personagem. Antes disso, o autor Paul Johnson (também católico) criticou os romances de Fleming por satisfazerem os leitores com o que há de pior neles.  

Eclipsando rapidamente sua origem literária, o James Bond cinematográfico feriu suscetibilidades ao fazer apenas isso; e continua a fazê-lo desde então. No início da década de 1960, o mundo estava preparado para o herói pelo qual ansiava — alguém que fosse livre de quaisquer restrições, sejam elas sociais, morais ou religiosas. 

Alguns conseguiram perceber isso na época. Em um artigo de 7 de outubro de 1962 intitulado sobriamente “O Caso James Bond”, um escritor do L’Osservatore Romano condenou a primeira jornada cinematográfica de Bond como uma “perigosa mistura de violência, vulgaridade, sadismo e sexo”. Naquela época, o jornal oficial do Vaticano não era conhecido por resenhas de filmes. No entanto, estava interessado nas almas.  

Essa resenha de “007 contra o Satânico Dr. No” não era um comentário sobre a atuação, a perspectiva do diretor ou o orçamento do produtor, mas sobre o produto de celuloide finalizado — o que ele continha, o que representava e, acima de tudo, que impacto poderia ter na vida de seus expectadores. 

Esse impacto viria a moldar os sonhos e fantasias das gerações vindouras (das décadas de 1970, 1980; seguintes) — estimulando os homens que queriam emular Bond a viver como ele vivia. O fato chamou a atenção da publicidade, e continua a fazê-lo a cada novo lançamento da série, à medida que o mito de James Bond é continuamente retrabalhado e perpetuado. 

Violência, vulgaridade, sadismo e libertinagem sexual: a moralidade do espião se tornou a norma para muitos. Ele vive para si. Sua lealdade não está voltada para os outros seres humanos que ele está supostamente sempre salvando, nem mesmo para a rainha ou para o país; ele só é leal ao “Número 1”, ainda que tenha dois 0s e um 7. Ele tampouco nutre qualquer lealdade (que dirá amor) pelas mulheres que encontra (exceto por um instante em “007 — A Serviço Secreto de Sua Majestade”).

Há uma passagem em “007 contra o Satânico Dr. No” na qual Bond reflete sobre os estágios de um relacionamento como a “parábola convencional” do sentimento, que flui inevitavelmente da libertinagem sexual ao tédio, antes “das lágrimas e da amargura final”. Fica claro que, ao fim e ao cabo, todas as mulheres serão tratadas com frieza pelos afetos do espião. É de se suspeitar que suas emoções nunca tenham sido verdadeiramente afetuosas. Ao mesmo tempo, ele mata e mutila por meio do abandono. Não sente piedade nem remorso e, certamente, não tem nenhum estresse pós-traumático — é um caso de “viva e deixe viver”; porque só vivemos duas vezes ou, no caso de 007, vive-se para sempre na tela.    

Após décadas de presença nas telas, James Bond se tornou um ídolo para muitos. Ele é o mascote de um mundo que não precisa de Deus. Seu modo de vida é o novo credo; seu comportamento deriva de qualquer sistema de valores que esteja na moda; seu culto está completamente atrelado ao brilhante reflexo de sua própria imagem, nitidamente projetada. Em suma, ele representa alguma forma de nova religião — ou de uma muito antiga? 

Porque se há uma frase que poderia sintetizar esse eterno super-homem nietzscheano, enquanto lhe servem mais um martini (batido, não mexido), é esta: Non serviam! — “Não servirei!”


K. V. Turley é jornalista, produtor de filmes e correspondente do site National Catholic Register. Escreve a partir de Londres. Este texto foi publicado originalmente no dia 1.º de maio de 2022.

Notas

  1. O texto original foi escrito em 2022, um ano após o lançamento de “007 — Sem Tempo para Morrer”. Acrescentamos aqui a informação mais recente, de um novo filme da franquia, e adaptamos algumas partes do texto que falavam do filme de 2021 ainda nos cinemas. (N.T.)

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