“A turnê que [sic] as pessoas precisavam” [i]. Assim definiu uma colunista internacional o Eras Tour, série de shows da cantora americana Taylor Swift, que fez as últimas apresentações no início de dezembro, em Vancouver, Canadá.
Desde a estreia, no início de 2023, o espetáculo passou por diversos países, num total de 149 concertos. Com uma megaprodução preparada para estádios, Taylor Swift ofereceu ao público não apenas entretenimento, mas, segundo a crítica especializada, “fervor curativo”. A cantora permaneceu no palco, em cada apresentação, por volta de 3h30min para interpretar mais de 40 canções, embaladas por coreografias, efeitos especiais e até ritual mágico. A turnê, no fim das contas, foi pensada para ser algo catártico, logo após a pandemia, porque, como disse a cantora, “as pessoas precisam de uma fuga de como a vida pode ser brutal” [ii].
De fato, o entretenimento é uma necessidade da alma, em vista das preocupações do dia a dia, sempre cheios de atividades exigentes, que realmente podem ser brutais para o espírito humano. Por isso, Santo Tomás de Aquino aconselha a, de vez em quando, lançar mão de boas recreações como “remédio à fadiga da alma” (STh II-II 168 2c.).
Esse talvez fosse o desejo da jovem Ana Clara Benevides, de 23 anos, quando, em 17 de novembro de 2023, saiu de casa, em Rondonópolis (MT), para participar do primeiro show de The Eras Tour no Rio de Janeiro. Mas o sonho da jovem foi ceifado brutalmente. Ana Clara acabou falecendo por exaustão térmica, ainda no início da apresentação, enquanto Taylor Swift cantava Cruel Summer (em inglês, “Verão cruel”), com sensação térmica de 60 graus dentro do estádio do Engenhão. Outras milhares de pessoas passaram mal naquela noite, por uma série de negligências diante da forte onda de calor.
A situação exigiria, no mínimo, uma demonstração clara de empatia, como se costuma dizer nos dias de hoje. Quando a realidade se impõe, por mais brutal que seja, não é possível fugir dela; deve-se corresponder às exigências do momento, e só depois descansar o corpo e a alma, para recuperar a disposição e voltar à lida. De outra forma, o entretenimento converte-se em desordem que fere o ser humano, ao invés de curá-lo. Torna-se uma fuga irresponsável de quem não está realmente comprometido com o bem-comum, mas com a própria satisfação.
A equipe de Taylor Swift, no entanto, preferiu ir por essa via: a fuga da realidade brutal. O episódio caracterizou apenas uma “nota de rodapé” dentro do grandioso contexto da turnê. Taylor mesmo se contentou em manifestar, num mísero story no Instagram, o quão “devastada” estava pelo ocorrido. Há quem fale, por isso, em estratégia de comunicação, a fim de blindar a imagem da artista. Seja como for, um ano após a tragédia, a morte de uma fã tornou-se completamente irrelevante à imprensa e à opinião pública, que celebra o encerramento de The Eras Tour como a “conclusão significativa de um capítulo importante na história da música moderna” [iii].
Não deixa de ser escandaloso, por outro lado, como a organização de um espetáculo pensado para “curar” a depressão pós-pandemia, causada especialmente pela morte de milhões de pessoas, lidou com este drama. Neste ponto, fica evidente a diferença entre o que é entretenimento saudável, remédio às fadigas corporais e espirituais, e o que não passa de “pão e circo”. Sem contar os inúmeros pontos ofensivos à moral presentes em The Eras Tour — músicas, figurinos e coreografias sensuais —, problemáticos por si sós [iv], o comportamento alheio da produção do evento face a uma tragédia leva a questionar se era essa mesmo a turnê de que o mundo precisava.
O divertimento é um bem, até necessário, mas com ordem e moderação. Citando um autor antigo, Santo Tomás ensina que “podemos nos dar ao divertimento e ao jogo; mas, como ao sono e aos demais descansos, só quando tivermos satisfeito às coisas graves e sérias” (STh II-II 168 2c.). A falta de virtude leva a abusar nessa matéria, resultando em excessos que facilmente redundam, como observa o Doutor Angélico, em obscenidades ou prejuízo para si mesmo e o próximo, “quando se buscam os divertimentos em tempos ou lugares impróprios, ou fora da conveniência da matéria ou da pessoa” (STh II-II 168 3c.).
Há poucos meses, vimos algo assim se repetir em terras cariocas. No mesmo final de semana em que o Rio Grande do Sul estava submerso pela chuva, mais de um milhão de pessoas foram assistir ao espetáculo da famigerada Madonna, na praia de Copacabana (RJ). Conhecida pela perversidade artística, a cantora não economizou em escândalos, blasfêmias e bizarrices em palco, apresentando não um concerto, mas um bacanal a céu aberto. Tudo com a anuência e o incentivo da grande mídia, que deu mais destaque à cantora que ao caos das enchentes no sul.
Sem dúvida, há uma necessidade de “recristianizar as festas e os costumes populares”, como pedia São Josemaria Escrivá, por meio de um “apostolado da diversão”, evitando “que os espetáculos públicos se vejam nesta disjuntiva: ou piegas ou pagãos” (Caminho, n. 975). Se a Igreja é perita em humanidade, os católicos também devem embrenhar-se neste campo da produção artística, do cinema, dos espetáculos e da música, anulando “o trabalho selvagem daqueles que pensam que o homem é uma besta” (Caminho, n. 121).
“Vinde a mim, todos os que estais cansados e carregados de fardos, e eu vos darei descanso”, prometeu Nosso Senhor (Mt 11, 28). A história testemunha o quanto a fé católica é capaz de produzir cultura e arte elevadas, que oferecem alento às almas, quando os homens batizados se dispõem a essa tarefa. Foi o que demonstrou René Chateaubriand na sua célebre obra O gênio do cristianismo, em resposta às acusações absurdas dos revolucionários franceses. Chateaubriand provou que a Revelação cristã, “longe de acanhar o pensamento, se presta maravilhosamente aos voos da alma, e pode encantar o espírito tão divinamente como os deuses de Virgílio e Homero” [v].
Na literatura, talvez encontremos o exemplo perfeito do verdadeiro entretenimento num trecho das “Crônicas de Nárnia”, de C. S. Lewis. No ato final do terceiro livro, A viagem do Peregrino da Alvorada, o leão Aslam explica a Lúcia e Edmundo que os trouxe àquele mundo a fim de que aprendessem a reconhecê-lo no mundo deles. “Em seu mundo eu tenho outro nome”, disse-lhes. Em Nárnia, os dois irmãos se fortaleceram no espírito, na virtude e no caráter para lidar com a vida adulta sem fugir da realidade. Nessa dinâmica, sim, se vive um “fervor curativo” que realmente oferece descanso às almas. É dessa arte que as pessoas realmente precisam.
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