I.

Uma irritante e insistente melodia resgatou Horácio de um sonho confuso. Desnorteado no quarto obscuro, serviu-lhe de farol a luz do celular, de onde esganiçava a canção. 6h da manhã, verificou. Teve ímpetos de apelar ao sistema de sonecas, mas já há semanas, há meses, ensaiava acordar mais cedo, para caminhar na praça, conforme urgente recomendação da medicina. Manteve-se desperto. 

Mas, na verdade, mais do que o propósito cardiovascular, foi um número cinco, numa bolinha vermelha, acima do ícone do Twitter, que lhe deu ânimo e disposição. Cinco notificações? Na sua conta? Ora, ele nunca tinha alcançado semelhante resultado. Lembrou-se vagamente de ter compartilhado a fala de um político folclórico e julgou ter sido essa a bem sucedida publicação. Ansioso, foi conferir. Para sua decepção — diga-se, uma decepção resignada — eram mensagens da própria plataforma informando de uma nova funcionalidade. 

Horácio aproveitou a visita para sapear os assuntos mais celebrados. Ele sempre dizia para si que aquele era o jornal do homem moderno, e que era seu dever, todas as manhãs, demorar-se ali alguns minutos, a fim de manter-se a par dos principais acontecimentos sociais, artísticos e políticos, do Brasil e do estrangeiro. Viu, dessa vez, que nada de muito relevante acontecera, aqui ou em qualquer outra parte. Em destaque: a fala do participante de um reality show que causou comoção e provocou espasmos éticos e humanos nos internautas; a goleada do Corinthians num time da terceira divisão do Mato Grosso; o caso dos vereadores de um pequeno município potiguar que teriam se estapeado, em plena sessão, devido a ofensas que um proferira contra a masculinidade do outro. 

Mesmo assim, para manter-se informado, Horácio fez questão de vasculhar todos os tópicos, sondando opiniões, concordando com uns, discordando de outros, dando likes e shares, bolando ele mesmo, ainda que mentalmente, argumentos e explicações os mais variados para cada assunto que a rede mundial de computadores julgava relevante. Levantou-se às 8h25.

II.

Horácio banhou-se rápido e dejejuou mal. De novo atrasado. Funcionário público há duas décadas, acostumado com o trânsito paulista e a fina sociologia do tribunal, o homem ficou desgraçadamente confinado ao home office, desde o início da pandemia, e agora precisava bater o ponto no computador do seu escritório improvisado, no quarto de visitas do apartamento — atividade aparentemente banal que ele nunca conseguia realizar com excelência.  

Entrou no sistema, se deparou com uma lista de tarefas acumuladas e decidiu-se a colocar o serviço em dia. Não era desses que viam a estabilidade do cargo como escora para fazer corpo mole. Sentou-se na sua cadeira, arrebatada da cozinha, sentiu algum desconforto lombar e lembrou-se que precisava de uma nova, mais confortável, de couro. Acessou a Amazon e notou que já havia colocado a peça no carrinho. A cadeira e mais uma centena de produtos: eletrônicos, bugigangas orientais, livros, conhaques e ceroulas. Cogitou fechar a compra, excluindo aquilo que já lhe parecia inútil, mas, pelo contrário, foi clicando em sugestões, pulando de departamento em departamento, dos alimentos aos calçados, e terminou acrescentando ao pejado carrinho mais uns vinte e cinco itens.

Foi aí que um certo ruído estomacal lhe informou que se aproximava o almoço. Tomou o celular e, como de hábito, deixou-se entreter com o cardápio variadíssimo do iFood. Fez uma odisséia gastronômica: foi à China, ao Peru, dali à Índia, depois às Arábias — onde se demorou enfeitiçado — e, qual Eneias, terminou na Itália. Pediu o conchiglione de uma cantina famosa e distante e pôs-se a aguardar — aproveitando o meio-tempo, já que desconcentrado pela fome, para assistir, na ESPN, aos gols da rodada dos campeonatos inglês, espanhol, argentino e alemão. Quando o prato enfim chegou, abocanhou distraidamente dois tecos da massa, largou o restante no micro-ondas, e foi-se ao trabalho.

III.

Digo, tentou, esforçou-se. Mas algo o inquietava diante daquelas petições, daqueles acórdãos. Não podia lê-los por dois minutos sem que lhe abatesse um enfado tremendo, um invencível desânimo. Era isso todos os dias, nos últimos meses. Estaria ele em crise vocacional? Bem que o coração lhe dizia que o seu tino era para música. Agora estava ali, quarentão, beirando os cinquenta, fazendo algo que no fundo detestava em troca de salário garantido e aposentaria gorda. Em contrapartida, nunca antes o serviço lhe pesara. Sempre foi bom funcionário e conquistou, por mérito, invejada posição no gabinete. Seria burnout? Muitos colegas haviam parado na psicóloga por causa da síndrome. Sim, burnout. O nome sugestivo e a memória dos amigos o levaram a admiti-lo como a hipótese mais plausível. 

Burnout”, escreveu ele no YouTube. Nos filtros, escolheu os vídeos curtos, já que, por força do dever, ainda precisava resolver as pendências do dia. Assistiu a um, viu trechos de vários, pegou o Instagram de um doutor que lhe pareceu mais competente e mudou de plataforma. Ali, vasculhou o perfil do médico, anotou mentalmente uma vintena de informações — para esquecê-las em seguida —, curtiu postagens, se identificou com a audiência e concluiu que, sem sombras de dúvidas, era burnout. No dia seguinte, pediria férias. 

Eram 16h30.

IV.

Certo de que estava doente, Horácio sentiu-se remido e não mais se afligiu com o trabalho. A ideia de novas férias, e em época inédita, o excitou. Ele merecia, era para o seu bem. Mas, para onde? Orlando já não lhe apetecia; a França, dizia, não tinha o mesmo glamour; a Itália ele considerava um cemitério de igrejas tão belas quanto inúteis. Buscou inspiração em sites de companhias de viagens e após longa cogitação ficou entre a Indonésia e o Nepal — encorajando-se para o exótico. Voltou então ao YouTube para ver, conforme a opinião dos vlogs de mochileiros, qual dessas terras asiáticas lhe seria mais benfazeja.

V. 

Às 20h, quando ele enfim se decidiu por Katmandu, seu filho mais novo veio contar, com grande entusiasmo, algo que lhe sucedera na escola. Como, porém, a narrativa fosse longa e complexa, o pai ouviu apenas opacamente e deu ao menino uma resposta protocolar: “É assim mesmo. Veja o que sua mãe diz”. Na verdade, tinha urgência em dispensar o pequeno pois era noite de futebol e, embora seu time não jogasse, ele precisava cumprir seu papel e secar todos os adversários. Como de costume, abriu vários streamings e deixou as partidas rolando simultaneamente. Ao mesmo tempo, tinha que comentar cada lance no grupo do society, no WhatsApp — grupo que só se reunia virtualmente —, e terminou, no fim das contas, não vendo jogo nenhum.          

VI.

23h45 lhe apareceu a mulher. Vinha ela em trajes diáfanos, exalando perfume doce. Perguntou se o marido não estava cansado, se já não era tempo de largar a máquina. O homem olhou-a de esguelho, disse estar bem, e prometeu deitar-se dali a pouco, pois ainda carecia entregar um relatório. A mulher enervou-se e teve ímpetos de dizer alguma coisa que, sabia ela, desencadearia uma discussão longa e infrutífera. Cansada, foi deitar-se sozinha, com a mágoa lhe espicaçando o peito.

Horácio entreviu o mal-estar no rosto da esposa e cogitou ir falar-lhe. Mas concluiu que ele é quem deveria se chatear, pois era um homem doente, que trabalhava o dia inteiro para levar conforto àquela família e a família lhe fazia pouco caso. Ia pensando tudo isso enquanto deslizava a tela do Instagram. De repente, apareceu-lhe uma loira bonita em biquíni pouco cristão. A imagem sugou-lhe a atenção e refreou sua lamúria. Clicou e viu que no perfil da jovem havia muitas e muitas fotos semelhantes. 

Como se demorasse ali, a plataforma, amigavelmente, passou a lhe sugerir moças do mesmo viés. Viu uma, e outra, e outra. Dali um tanto, os biquínis e a falta de criatividade nas poses começaram a lhe parecer inconvenientes. Então, como de hábito, trancou a porta do escritório, apagou as luzes e tratou de visitar sites cujo conteúdo, digamos, mais franco, lhe dava maior alegria. Vasculhou página por página, sessão por sessão. Abriu outro site congênere e realizou ali, diligentemente, a mesma ritualística. De si para si, criticou a decadência da indústria, asseverando que as peças já não lhe davam o mesmo prazer. Teve nostalgia, mas mesmo assim insistiu. Resolveu, pois, entrar em outros canais, de sessões mais proibitivas, até criminosas, e a novidade o manteve aceso e interessado. Deve ter clicado — inconscientemente, é preciso dizer —, em duas centenas de filmetes. 

Então lhe bateu um cansaço e ele consumou a atividade — pois, segundo a sua filosofia, endossada por alguma sexóloga da TV, só assim podia dormir bem e acordar disposto. Ato contínuo, logo após o pico de euforia, sentiu-se profundamente apático. Não digo arrependido, pois não lhe angustiavam as contraindicações morais. Sentiu-se mesmo triste, vácuo, enfraquecido, dominado por força que ele desconhecia, mas desgostava. Teve ânsia de chorar. Tanto mais quando se deu conta do horário: 4h15. 

VII. 

Um pouco frustrado pelo dia que passou tão breve — colocou a culpa na época, “hoje em dia o tempo voa” —, foi à cozinha e comeu em rápidas colheradas o conchiglione gelado, que desceu goela abaixo empurrado por meio litro de Coca-Cola e um trago de conhaque. Com olhos irritados e ombros caídos, Horácio arrastou-se ao banheiro, lavou-se rapidamente e foi à cama. Deu uma última passada pelo Twitter, a ver que novos males teriam abalado o mundo, e viu que o mundo seguia exatamente o mesmo. Enfim, decidiu-se por um novo rumo, por uma nova vida, e, mesmo já alta madrugada, colocou o celular para despertar às 7h, para o exercício. Fechou os olhos com a mente um pouco atordoada, dormiu rápido, e nunca mais acordou.

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