Em 2015, Luís e Zélia Martin, os pais de Santa Teresa de Lisieux e quatro outras religiosas, tornaram-se os primeiros esposos na história da Igreja a ser canonizados enquanto casal. Antes disso, em 2008, o Papa Bento XVI havia estabelecido 12 de julho como a data de sua festa conjunta no calendário litúrgico. Era o aniversário de casamento deles.
Assinalar um dia de festa com base em um matrimônio é algo singular na sacra liturgia, mas não é de todo sem precedentes. De fato, enquanto a família Martin praticava a fé e se santificava, a Igreja mantinha uma festa de séculos em honra à união de outro santo casal: a festa dos Esponsais de Maria e José.
Antecedentes judaicos
O que são exatamente “esponsais”? No século I, um casamento judaico era contraído em dois diferentes estágios. Primeiro se obtinha o consentimento do casal (geralmente implícito), assinava-se o contrato matrimonial e a aliança nupcial era dada à mulher. O kiddushin, como se chamava em hebraico, era muito mais que um compromisso ou noivado (o qual não passa de uma promessa de casamento). De acordo com a lei mosaica, uma mulher cujo “noivo” viesse a óbito era considerada viúva; e era necessário na verdade um divórcio (o mesmo recurso em que pensara São José depois de descobrir que Maria estava grávida) para dissolver o vínculo formado pelo kiddushin. Essencialmente, este constituía um ato de matrimônio.
Depois do kiddushin, o casal continuava a viver em separado, a fim de se preparar para a nova vida que teriam. Às vezes, o esposo tinha de juntar dinheiro para pagar o dote da esposa; outras vezes, como a esposa se casava bem nova, oferecia-se uma oportunidade para que ela amadurecesse mais. Esse período de preparação poderia durar até um ano, mas acreditava-se que o tempo médio girasse em torno de três meses. Quando tudo estava pronto, o marido fazia uma procissão formal até a casa da mulher e a trazia de volta para sua casa, também em procissão.
A consumação tinha lugar depois disso, geralmente, seguida de uma grande celebração — tal como a das bodas de Caná (cf. Jo 2, 1-11). Na parábola das virgens imprudentes (cf. Mt 25, 1-13), dez damas de honra estão esperando pela chegada do esposo à casa da esposa, que é quando acontece uma procissão de luzes até a casa dele.
Portanto, a festa dos Esponsais celebra o aniversário do casamento de facto de José e Maria, porque marca-lhes o kiddushin. A literatura católica mostra uma preferência histórica por “esponsal” e “esposos” em vez de “casamento” e “marido/mulher”, porque tradicionalmente os primeiros dois termos indicam um matrimônio válido ainda não consumado. Mas, dado o uso contemporâneo — e para sublinhar as núpcias completas do santo casal —, são igualmente apropriados os termos “casamento” ou “matrimônio” (que o Cardeal Burke usou numa homilia sobre o tema).
Por que o casamento era assim?
Deve-se admitir: é um arranjo estranho esta antiga prática judaica; de fato, nem mesmo o judaísmo foi capaz de mantê-la. Pela Idade Média, o tempo de espera entre os dois estágios de matrimônio já havia sido eliminado.
Hoje, o casamento judaico é um evento único, consistindo em duas cerimônias consecutivas: o kiddushin (ainda com a assinatura do contrato matrimonial e a entrega da aliança), imediatamente seguido do nissuin, que agora consiste em colocar a esposa e o esposo debaixo de um dossel familiar chamado chuppah (simbolizando seu novo lar), em vez de escoltá-los até a sua casa de verdade. Na tradição ashkenazi, o nissuin é seguido do yichud, um período de mais ou menos dez minutos para que os recém-casados passem tempo um com o outro em total privacidade — tratava-se outrora de um tempo para a consumação física do matrimônio; agora é usado mais para uma “consumação emocional”, ou uma oportunidade para o casal recuperar o fôlego. Em seguida acontece a festa de casamento ou recepção.
Por que razão Deus, em sua Providência onipotente, quis este arranjo antigo, mais complicado, para os casamentos do seu povo eleito?
Talvez não haja outro motivo senão preparar o mundo para entender os estágios do casamento do seu próprio Filho com a Igreja. Como explica Brant Pitre em seu fascinante livro Jesus the Bridegroom [“Jesus, o Esposo”], a Antiga Aliança é o kiddushin de Deus com o seu povo; a entrada de Jesus em Jerusalém no Domingo de Ramos é a procissão; a Cruz é a consumação da aliança nupcial (sendo suas últimas palavras Consummatum est, cf. Jo 19, 30), e o banquete nupcial do Cordeiro presente no Apocalipse é a celebração gloriosa de tudo isso.
Mas, com certeza, outra razão para esse arranjo providencial de Deus era assegurar a total legitimidade da filiação de seu Filho encarnado, vindo do seio virginal de Maria. José e Maria estavam casados por completo quando ela concordou em tornar-se a Mãe de Deus; portanto, Jesus é um membro legítimo da Sagrada Família e da Casa de Davi, com todos os direitos e privilégios (e cumprimentos proféticos) advindos de tal posição. Mas como Ele foi concebido antes de José e Maria “coabitarem” (Mt 1, 18), isto é, viverem juntos debaixo do mesmo teto [i], a concepção virginal profetizada em Isaías 7, 14: “Uma virgem conceberá…”, também ficou garantida.
Eu também me pergunto — mas isto é pura especulação pessoal — se os eventos relativos à Anunciação não acabaram levando os parentes de José e Maria a duvidar de sua castidade, já que eles não conheciam o segredo divino dos dois. O Papa São João Paulo II observa que, “enquanto o casal formado por Adão e Eva tinha sido a fonte do mal que inundou o mundo, o casal formado por José e Maria constitui o vértice, do qual se expande por toda a terra a santidade” (Redemptoris Custos n. 7). Contudo, teria o mundo visto este vértice da santidade, ou não viram antes só duas pessoas que “puseram o carro à frente dos bois”, antes da última etapa formal do matrimônio? Talvez, enquanto levavam sua vida oculta de pureza extraordinária, José e Maria tenham precisado suportar olhares ou risos maliciosos de seus vizinhos. Se foi o caso, sua humilhação foi vivida por causa de Cristo, um sofrimento que só contribuiu para a santificação dos dois. E, quando viam os outros rindo e zombando, quem sabe eles não olhavam um para o outro e trocavam também um leve sorriso, um sorriso próprio deles, a irradiar o grande mistério guardado mutuamente em seus corações!
O cortejo do santo casal
São poucas as certezas que temos sobre a vida oculta da Sagrada Família em Nazaré, e tampouco as Sagradas Escrituras revelam algo a respeito do primeiro encontro entre José e Maria.
Há uma tradição antiga, comemorada na liturgia em 21 de novembro e corroborada por uma revelação privada, de que a Bem-aventurada Virgem Maria foi apresentada no Templo com três anos de idade e aí viveu até os quatorze. Durante esse tempo, acredita-se que Maria tenha feito um voto de virgindade — raridade para uma donzela hebreia, especialmente numa época em que a falta de filhos era tida por maldição.
Mas a resposta dela ao anjo Gabriel confirma, de modo implícito, a existência deste voto. Quando o anjo lhe diz (depois de seu esponsal com José) que ela será a Mãe de Deus, sua resposta é: “Como se fará isso, se eu não conheço homem?” (Lc 1, 34). Ora, Maria não teria ficado confusa se planejasse levar uma vida conjugal ordinária com seu esposo; sua declaração “não conheço homem” indica com grande probabilidade não o mero momento presente, mas um estado permanente (cf. STh III 28 4c.).
Antes de deixar o Templo, Maria estava prometida em casamento a José. Segundo uma visão mística da Venerável Maria de Ágreda, Maria tinha um grande número de pretendentes, que entraram em disputa por sua mão. Simeão, o sumo sacerdote, deu a cada um deles um bastão, e quando eles rezaram o de José milagrosamente floresceu (cf. Mística Cidade de Deus, I, 22, n. 755-764). Para um casamento ser válido, o consentimento era tão necessário na época como hoje; então, sejam quais forem os detalhes do encontro entre os dois, José escolheu Maria e ela o escolheu.
E mais cedo ou mais tarde era necessário que Maria falasse de seu voto a José. De acordo com Maria de Ágreda, Maria nada lhe contou até que eles se casassem em Jerusalém e mudassem para Nazaré [ii].
Por outro lado, em seu livro The Mystery of Joseph [“O Mistério de José”], o Pe. Marie-Dominique Philippe afirma que Maria o teria avisado “desde o momento mesmo em que José a escolheu e amou”.
Seja como for, José certamente a amou bastante para consentir neste consórcio especial — ainda que, como aponta Maria de Ágreda, José também tivesse um voto de celibato desde a sua juventude, e ambos ficassem aliviados ao saber da consagração virginal um do outro.
Relevância dos Esponsais
Como sugerem estas reflexões, os Esponsais de José e Maria são um evento repleto de significado. Numa homilia recente sobre o tema, o Cardeal Burke identificava duas razões pelas quais é importante uma festa em honra do fato.
Primeiramente, a festa faz referência a uma “compreensão exata do estado civil de São José e da Bem-aventurada Virgem Maria”, crucial “para que, de nossa parte, haja um conhecimento e um amor mais completos do mistério da fé”. Sem isso, não podemos entender o mistério da Encarnação, ou o plano eterno de Deus para a nossa salvação, que dependia do “sim” de uma jovem e da cooperação de seu fidelíssimo esposo.
Em segundo lugar, “nós vemos no casamento de Maria e José, de maneira notável, a beleza do casamento, estabelecido por Deus na Criação e restaurado à sua perfeição original por Deus Filho encarnado na Redenção”. E o esplendor do sacramento do Matrimônio refulge nesse consórcio, ainda que ele não tenha envolvido o abraço conjugal.
Como explica Fulton J. Sheen em O Primeiro Amor do Mundo, a união carnal é um símbolo da consumação espiritual, e esta é um antegozo da união com Deus. “Se há exaustão e esgotamento no matrimônio”, ele observa, “é porque ele fica aquém do que deveria revelar, ou porque não se viu, no ato, o mistério divino que está dentro”. Porém, no caso de Maria e José, não havia necessidade de uma ratificação carnal da união, uma vez que eles já possuíam a Deus:
Por que perseguir a sombra se eles já tinham a substância? Maria e José não tinham necessidade da consumação carnal, pois, na bela linguagem de Leão XIII, “a consumação de seu amor estava em Jesus”. Por que se preocupar com as velas tremeluzentes da carne, quando a Luz do mundo era o seu amor? Jesus é, verdadeiramente, voluptas cordium — “o deleite dos corações”.
Tomando por base essa “posse da substância”, Fulton Sheen também conclui que “nenhum marido e mulher jamais amaram um ao outro tanto quanto José e Maria”. As grandes “torrentes de amor” que passavam por seus corações levam-nos à terceira lição que podemos tirar da festa dos Esponsais: a fé tremenda que tinha o santo casal, não só em Deus todo-poderoso, mas um no outro.
Em geral, acredita-se que José tivesse 33 ou 36 anos quando casou com Maria. Teria sido fácil para um homem de sua idade descartar o voto de virgindade de Maria como sendo os delírios de uma carola esquisita ou as racionalizações inconstantes de uma adolescente neurótica. Mas não: ele acreditou nela. Mesmo quando descobriu depois que Maria estava grávida, ele não pressupôs infidelidade da parte dela, mas pensou que, por ela ser uma virgem fiel, o que quer que lhe tivesse acontecido fôra obra da mão de Deus e, por isso, seria melhor para ele sair de cena. Se pensasse ser traição a causa de sua gravidez, a coisa justa a se fazer — e José era um homem justo (cf. Mt 1, 19) — seria expô-la publicamente como adúltera.
Quanto a Maria, demandou coragem de sua parte confiar-se a um homem mais velho e mais forte, que ela mal conhecia, especialmente à luz do voto que fizera.
A festa dos Esponsais
Não obstante suas muitas riquezas, uma festa litúrgica em honra à união matrimonial entre a mãe e o pai adotivo de Nosso Senhor levou um longo tempo para desenvolver-se, e em certos aspectos seu desenvolvimento ainda está incompleto.
Foi só no início do século XIV que o Padre Jean Gerson, um pioneiro da piedade josefina, compôs um Ofício dos Esponsais de José. Apesar da exclusividade do nome, o objetivo de Gerson era promover uma festa votiva especial em honra tanto de José quanto de Maria, na Quinta-feira das Têmporas do Advento. Permanece incerto, porém, se ou quando a festa foi celebrada.
Definitivamente, a primeira festa em honra dos Esponsais foi celebrada em 22 de outubro de 1517, pelas religiosas francesas da Ordem da Anunciação (fundada por Santa Joana de Valois). Todavia, a festa honrava unicamente a Santíssima Virgem e, portanto, não correspondia ao ideal de Gerson. O mesmo pode ser dito de uma festa dos Esponsais de Maria que os franciscanos celebravam a 7 de março, depois de terem recebido em 1537 a permissão para fazê-lo, e que os servitas começaram a celebrar mais ou menos na mesma época, [só que] a 8 de março [iii].
Em 1556, a diocese de Arras, na França, estabeleceu no dia 23 de janeiro os Esponsais de Maria e, graças ao compositor litúrgico dominicano Pierre Doré, sua celebração seguia a ideia de Gerson de honrar tanto a esposa quanto o esposo. A ideia e a data deram certo, embora também fossem utilizadas outras datas, como 18 de julho, na Morávia (atual República Tcheca).
As revisões posteriores ao Concílio de Trento, no entanto, tornaram-na de novo uma festa só de Maria. A partir do século XVIII, só por um privilégio especial São José podia ser comemorado na Missa, nas Vésperas e nas Laudes. Felizmente, com a reforma de São Pio X, uma comemoração de São José (tomada de sua festa em 19 de março) tornou-se parte obrigatória da Missa, e seu título oficial finalmente reincorporou o santo Patriarca: Desponsatio Beatæ Mariæ Virginis cum Sancto Joseph.
Inicialmente, a Santa Sé relutou em aprovar a difusão da festa (mariana) dos Esponsais, negando-a para a Espanha em 1655, por exemplo. No entanto, gradualmente Roma se flexibilizou, concedendo a festa à Áustria (1678), à Espanha e ao Império Germânico (1680), à Terra Santa (1689), aos cistercienses (1702), à Toscana (1720), aos Estados Papais (1725), aos Estados Unidos (1840), e assim por diante. Em suma, a Igreja passou a conceder a festa a qualquer diocese ou comunidade religiosa que o solicitasse. 23 de janeiro era a data mais comum, mas a França e o Canadá observavam a festa em 22 de janeiro, e os países hispanófonos, a 26 de novembro, para evitar conflito com as festas de Santo Ildefonso e de São Raimundo de Peñafort. Ainda que nunca tenha figurado no calendário geral ou universal do rito romano, a festa era bastante comum antes do Concílio Vaticano II.
A política relativamente aberta da Santa Sé continuou até 1961, quando, como um prenúncio do que estava por vir, a Sagrada Congregação dos Ritos removeu a festa dos calendários particulares, a menos que as comunidades locais demonstrassem alguma ligação especial para com ela.
Esta lei continua em vigor. Por exemplo: em 1989, os Oblatos de São José obtiveram permissão para celebrar, em 23 de janeiro, “Os Santos Esposos Maria e José”, mas só por causa de sua espiritualidade josefina já consolidada. Como resultado dessa política, a vasta maioria dos católicos hoje nunca ouviu falar da festa dos Esponsais.
O dia 23 de janeiro
No relato da Venerável Maria de Ágreda, o milagre do bastão de José aconteceu no aniversário de 14 anos de Nossa Senhora (celebrado na liturgia em 8 de setembro), mas ninguém sabe ao certo quando o santo casal se uniu em matrimônio. A tradição hispânica de celebrar a festa no final de novembro tem a vantagem de mirar os Esponsais uma semana antes que a Igreja contemple, durante o tempo do Advento, o início da vida da Sagrada Família. Mas o final de janeiro também é um momento oportuno para comemorar a união nupcial de Maria e José, tanto como princípio quanto como fim.
Como princípio, os Esponsais dão início a uma meditação sobre a vida da Sagrada Família destinada a durar o ano inteiro. 23 de janeiro acontece quase dois meses antes da Anunciação (25 de março): se o kiddushin tivesse sido nessa data — e supondo um intervalo de três meses entre os dois estágios do casamento —, Maria teria concebido do Espírito Santo cerca de um mês antes de sua procissão para a casa de José. A Anunciação interrompeu tais planos; de acordo com Lc 1, 39 e 1, 56, Maria foi apressadamente à região montanhosa da Judeia para ajudar sua prima em idade avançada, Santa Isabel, e só retornaria após o nascimento de São João Batista (e sua circuncisão, provavelmente). Quando José a viu de novo, no começo de julho (supondo que João nasceu a 24 de junho), ela já dava sinais claros de gravidez. A confusão de José, que se deu a seguir, foi resolvida graças a um anjo (cf. Mt 1, 20-25), e logo depois disso ele “recebeu sua esposa” (Mt 1, 24), isto é, conduziu Maria em procissão até a sua casa — ou, talvez, ele se mudou para a casa dela. O Menino Jesus então nasceu em 25 de dezembro (pelo menos de acordo com essa útil linha do tempo litúrgica).
Como fim, os Esponsais aparecem, muito oportunamente, perto do fechamento do ciclo do Natal — seja ele percebido como a festa da Purificação, em 2 de fevereiro, ou o sábado anterior ao Domingo da Septuagésima. Tendo vivido liturgicamente a espera pelo Messias (Advento), o seu nascimento (Natal), a fuga para o Egito e o massacre dos inocentes (28 de dezembro), a circuncisão do Senhor (Oitava de Natal), a visita dos Magos (Epifania), a vida escondida de Jesus, Maria e José em Nazaré (Festa da Sagrada Família), convém que lancemos um último olhar à jovem mãe de Cristo e a seu pai adotivo, só que agora enquanto esposa e esposo. Quando vistos como uma parte do ciclo do Natal, os Esponsais funcionam como uma sequência de flashback perto das cenas finais de um belo filme.
Conclusão
É mais do que tempo de abandonar a política de 1961 que impede a celebração desta festa. Na verdade, os Esponsais deveriam mesmo ser colocados nos calendários universais do rito romano, tanto na forma antiga quanto na nova. Uma celebração universal dessa festa traria muitas bênçãos e ensinamentos para um mundo cada vez mais confuso sobre a natureza e a vivência do matrimônio. E, como um pequeno bônus, o aniversário de casamento de São Luís e Santa Zélia Martin deixaria de ser um evento isolado no calendário da Igreja.
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