A história abaixo, assim como muitas outras extraídas da Legenda Áurea, não constitui um “artigo de fé católica” [1]. É preciso saber colher, em meio aos floreios do autor medieval, as lições espirituais que também os católicos de gerações passadas colheram ao ler linhas como essas. É válido notar, de qualquer modo, que o livro chama-se “legenda” não por ser uma coleção de mitos ou contos de fantasia; a expressão vem do verbo latino lego, “ler”, e significa simplesmente “coisas a serem lidas”. 

E porque é para serem lidas que as divulgamos, convencidos de que não é justo sonegar aos católicos de agora esses piedosos relatos da vida dos santos, só porque não se adequam aos critérios atuais de historiografia

Não nos esqueçamos que o primeiro a realizar milagres foi Jesus de Nazaré; os Evangelhos, que contam inúmeros de seus prodígios, foram escritos muito tempo antes da Legenda Áurea; e nenhum dos seus milagres têm algo a temer ante a moderna “crítica científica”. Além do mais, Ele mesmo disse, de seus discípulos, que fariam obras muito maiores que as que Ele realizou (cf. Jo 14, 12).

Além do mais, Santo Apolinário foi, segundo a Tradição, discípulo de ninguém menos que São Pedro, chefe dos Apóstolos. Estamos falando, portanto, de um contemporâneo dos primeiros seguidores de Nosso Senhor.

Sua memória deixou de pertencer ao Calendário Romano Geral com a reforma litúrgica do Papa Paulo VI, ficando reservada apenas aos calendários particulares. A razão é que, apesar da antiguidade de seu culto, Apolinário não era considerado hoje um santo de “importância universal” [2]. Por meio de um decreto de 18 de dezembro de 2001, no entanto, da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos [3], este santo voltou a ocupar lugar no Calendário Romano Geral, no dia 20 de julho.


Apolinário deriva de pollens, “poderoso”, e de ares, “virtude”, significando “poderoso em virtude”; ou pode derivar de pollo, “admirável”, e de naris, que pode ser entendido como “discrição”, significando “homem de admirável discrição”; ou pode derivar de a, “sem”, de polluo, “manchar”, e de ares, “virtude”, e assim equivaleria a “virtuoso sem mancha de vícios”.

Apolinário, discípulo de Pedro, foi por ele enviado de Roma a Ravena, onde curou a esposa de um tribuno e batizou-a juntamente com o marido e a família. Quando isso fez, foi denunciado ao juiz, este ordenou que Apolinário fosse levado ao templo de Júpiter para ali sacrificar. Como ele dissesse aos sacerdotes que seria melhor dar aos pobres o ouro e a prata pendurados diante dos ídolos, em vez de ali permanecerem diante dos demônios, foi agarrado, espancado a pauladas e deixado semivivo; mas alguns discípulos o levaram até a casa de uma viúva, onde ficou sete meses em recuperação. 

“Apoteose de Santo Apolinário”, por Guercino.

Dali partiu para a cidade de Classe a fim de curar um mudo de nobre ascendência. Quando ele entrou na casa, uma jovem possessa por um espírito imundo exclamou, dizendo: “Sai daqui, servo de Deus, senão te farei ser expulso da cidade de pés e mãos amarrados”. Apolinário, reprendendo-a, forçou imediatamente o demônio a sair. Como, pois, tivesse invocado sobre o mudo o nome do Senhor e este fosse curado, mais de quinhentos homens acreditaram.

Os pagãos, por sua vez, o proibiram, espancado a pauladas, de pronunciar o nome de Jesus. Ele, porém, lançado ao chão, clamava: “Ele é o verdadeiro Deus!” Então os pagãos lhe tiraram os calçados e o fizeram ficar de pé sobre brasas; mas, como ele continuasse a pregar a Cristo sem cessar, o lançaram fora da cidade.

Naquela época, Rufo, um patrício de Ravena, estava com a filha enferma e mandou chamar Apolinário para curá-la. Tão-logo ele entrou na casa, a menina morreu. Então Rufo lhe disse: “Oxalá não tivesses entrado em minha casa. Os deuses ficaram muito irados e não quiseram curar minha filha. Que lhe poderá fazer tu?” Apolinário respondeu: “Não temas. Jura-me que, se a jovem ressuscitar, não lhe proibirás de modo algum seguir seu Criador”. Rufo jurou, Apolinário fez uma oração, e a jovem ressuscitou e, proclamando o nome de Cristo, recebeu com a mãe e uma multidão o batismo e permaneceu virgem.

Quando o César soube disso, escreveu ao prefeito do pretório que forçasse Apolinário a sacrificar ou que o mandasse para o exílio. O prefeito, não podendo forçá-lo a sacrificar, fê-lo espancar a pauladas e mandou que o torturassem estendido no potro. Como ele continuasse a pregar o Senhor, o prefeito mandou que jogassem água fervendo sobre as feridas e o mandassem para o exílio preso a pesadas correntes.

Vendo tanta impiedade, de ânimo exaltado, os cristãos lançaram-se sobre os pagãos e mataram mais de duzentos dentre eles. Vendo isso, o prefeito se escondeu e ordenou que prendessem Apolinário num cárcere estreitíssimo; depois mandou levá-lo, acorrentado a três clérigos, a um navio que os conduziria ao exílio. Houve uma tempestade, da qual escaparam apenas ele, dois clérigos e dois soldados, a quem batizou.

Depois voltou a Ravena, foi preso novamente pelos pagãos e conduzido ao templo de Apolo, cuja estátua amaldiçoou, e ela subitamente veio abaixo. Vendo isso, os pontífices o levaram diante do juiz Tauro, juiz este que, porque Apolinário lhe devolvera a vista a um filho cego, acreditou e por quatro anos o manteve em uma propriedade sua.

Depois disso, como os pontífices o acusassem diante de Vespasiano, mandou Vespasiano que todos os que ofendessem os deuses ou sacrificassem ou fossem expulsos da cidade, pois “não é justo”, dizia, “que vinguemos os deuses; eles mesmos poderão vingar-se de seus inimigos, se ficarem irados”.

Então, o patrício Demóstenes não conseguiu fazer Apolinário sacrificar e o entregou a um centurião que já era cristão, o qual lhe rogou que se refugiasse numa aldeia de leprosos, onde poderia viver longe do furor dos gentios. Mas a multidão que o perseguia alcançou-o e o espancou durante muito tempo, deixando-o quase morto. Ali sobreviveu por ainda sete dias e, tendo instruído os discípulos, entregou o espírito e foi honradamente sepultado na época de Vespasiano, que começou a reinar por volta do ano 70 do Senhor.

Sobre este mártir diz Santo Ambrósio:

Apolinário, digníssimo bispo, foi enviado pelo príncipe dos Apóstolos, Pedro, a Ravena para anunciar o nome de Jesus aos incrédulos. Enquanto ali fez admiráveis sinais de virtudes para os seus, que acreditavam em Cristo, foi muitas vezes açoitado e teve o corpo já senil submetido pelos ímpios a horrendas torturas. Mas para que os fiéis não vacilassem vendo-lhe os sofrimentos, pela virtude do Senhor Jesus Cristo aperfeiçoou os sinais apostólicos: após os tormentos, ressuscitou uma menina morta, devolveu a vista a um cego e restaurou a voz a um mudo, livrou uma mulher possessa pelo demônio, limpou o contágio de um leproso, curou membros dissolutos por uma doença pestífera, fez ruir junto com o templo a imagem de um ídolo. Oh, digníssimo pontífice, merecedor de admiração, que com dignidade de pontífice mereceu receber o poder apostólico! Ó fortíssimo atleta de Cristo, que, já resfriando o calor da idade, em meio às penas, pregou constantemente a Jesus Cristo, redentor do mundo!

Referências

  1. O texto acima é uma tradução (adaptada aqui e ali pela Equipe CNP) do capítulo 92 da Legenda Áurea (São Paulo: Cia. das Letras, 2003, pp. 555-557).
  2. Cf. Calendarium Romanum. Typis Polyglottis Vaticanis, 1969, p. 131.
  3. Cf. Notitiae 432-433, vol. 39, 2002, pp. 313-314. (Agradecemos a um leitor pela vigilância e observação. Nesse mesmo decreto, juntamente com S. Apolinário, resgataram seu lugar nos livros litúrgicos reformados as festas dos Santíssimos Nomes de Jesus e Maria, em 3 de janeiro e 12 de setembro, respectivamente, e a grande S. Catarina de Alexandria, em 25 de novembro.)

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