Pouco mais de quatro séculos se passaram desde o falecimento de São Roberto Belarmino, com quase 79 anos de idade. Uma inscrição memorial fixada no local de seu nascimento o elogia como “glória da Igreja, da Itália e de seu lugar de nascimento, pela santidade de vida e a vasta doutrina que fizeram dele um atleta invencível nas controvérsias dogmáticas, morais e bíblicas”.
Nascido a 4 de outubro de 1542, na província de Siena, “em Montepulciano do bom vinho” [i], entrou em 1560 para a Companhia de Jesus em Roma. Estudou filosofia no Colégio Romano e teologia em Pádua e Lovaina. Foi professor em algumas cidades e depois se tornou diretor espiritual e reitor do Colégio Romano. Em Nápoles foi provincial dos jesuítas e, ao retornar a Roma depois de ter ocupado diversos cargos prestigiosos, em 1599 foi criado cardeal pelo Papa Clemente VIII, que disse: “Escolhemos este homem, porque não há, na Igreja de Deus, nenhum semelhante a ele em doutrina, e porque ele é sobrinho do excelente e santíssimo Pontífice Marcelo II” [ii].
Em 1602, tornou-se arcebispo de Cápua, na região da Campanha, no sul da Itália, mas depois de três anos intensos o Papa o queria nos organismos da Cúria Romana e na mais importante das congregações romanas. Ele morreu em Roma, a 17 de setembro de 1621, já sendo reverenciado como santo pela maioria das pessoas. No pontificado de Pio XI, foi beatificado em 1923, canonizado em 1930 e proclamado Doutor da Igreja em 1931.
Belarmino não é só o odiado “martelo” dos hereges que todos conhecemos em maior ou menor grau. E não é apenas o amado defensor da Sé Apostólica e da doutrina da fé que talvez poucas pessoas conheçam. Em sua extraordinária obra como teólogo da Reforma Católica e restaurador da liturgia, Belarmino também lidou com música, para a qual (junto com a poesia) sempre demonstrou excepcional aptidão. Constatamos isso quando observamos o período que ele passou como estudante em Montepulciano, sua cidade natal, e depois no noviciado dos jesuítas, em Roma como professor e reitor do Colégio Romano, mais tarde como provincial de Nápoles, arcebispo de Cápua e finalmente cardeal.
Em sua autobiografia, Roberto relata que na juventude aprendeu com facilidade a cantar e tocar vários instrumentos [iii]. Quando foi reitor daquela escola, que Santo Inácio fundara sem custo algum para as crianças romanas desde fevereiro de 1551, Belarmino as instruiu em música:
O Colégio Romano é uma obra musical e o número de coros que há nele é igual ao de ocupações e deveres. De fato, cada um, em seu coro particular, canta a parte que lhe é designada. O resultado disso é a concórdia perfeita, porque todos, por meio da harmonia consoante que os une, estão em conformidade com a divisão das regras próprias a cada um ou comuns a todos. Portanto, que todos continuem cantando no coro completo; que cantem na observância da disciplina comum; ou que possam cantar num coro reduzido, no qual um atua como professor, outro como aluno e assim sucessivamente com outras funções especiais; ou mesmo que possam cantar sozinhos em suas ações individuais. Quanto ao reitor, sua função será sustentar as vozes, marcar o tempo, indicar o compasso; o momento de iniciar, continuar e parar. Desta forma, tudo será feito com medida e harmonia. Porém, considerando que o reitor foi posto numa função sem prática prévia, alguns erros podem lhe escapar e danificar a harmonia. Logo, é permitido que cada um advirta o outro sobre seus respectivos erros e todos ficarão gratos pelo favor recebido [iv].
Num depoimento durante o processo de beatificação, um jesuíta relatou o testemunho contemporâneo segundo o qual Belarmino, quando foi provincial em Nápoles por mais de dois anos,
alegrava-se muito com a música. Durante o período de recreação, cantava em harmonia com outros de nós que tinham boas vozes; o mesmo acontecia em Capodimonte, onde fazíamos as nossas refeições na varanda. Ele mesmo não tinha uma boa voz, mas executava a sua parte com talento; compunha poemas, adaptava-os a textos musicais e fazia então que fossem cantados [...]. Ele dizia que, graças a esse entretenimento, as pessoas evitavam a fofoca e outras condutas negativas durante o tempo de lazer [v].
Em seus três anos como arcebispo de Cápua, Belarmino foi não só um farol da doutrina e do zelo apostólico, mas também o defensor e organizador da música em sua catedral. Ele queria que “os ritos sagrados fossem celebrados com grandeza e devoção”, pensando em “manter a música boa e sóbria, capaz de despertar e elevar os homens para as coisas espirituais, penetrando os louvores divinos com mais facilidade através dos sentimentos da alma, quando estes são temperados com a doçura da harmonia” [vi].
Nas monumentais Controversiæ — sua obra capital, que sintetiza a ortodoxia tridentina nas controvérsias com os hereges protestantes em especial — também há regras para o uso de canções e da música na liturgia: De cærimoniis, quæ fiunt in Missa et in actione consistunt — “Das cerimônias que se fazem na Missa e que consistem em atos” (Tomo III, Controv. III, Livro VI, Cap. XV); Defenditur cantus qui in officio divino adhiberi solet — “Defende-se o canto que se costuma empregar no Ofício Divino” (Tom. IV, Controv. Principal III, Livro I, Cap. XVI); Solvuntur obiectiones adversariorum — “Solucionam-se as objeções dos adversários” (Tom. IV, Controv. Principal III, Livro I, Cap. XVII).
A 28 de agosto de 1608, o Santo Doutor foi apontado como membro de uma comissão composta por três cardeais, criada pelo Papa Paulo V com a finalidade de revisar o repositório de canto gregoriano. Segundo a bula da comissão, os músicos romanos, presididos por Felice Anerio (1560–1614), teriam a tarefa de corrigir os erros que ao longo do tempo poderiam desfigurar as melodias. No entanto, aqueles músicos, tão imbuídos da polifonia do século XVI, e não do canto gregoriano, não souberam executar a tarefa de modo algum, e seu infeliz Gradual Mediceano foi publicado em 1614 sem o entendimento adequado do cantochão. Porém, valendo-se de seu conhecimento musical, o Cardeal Belarmino assegurou que esse Gradual jamais recebesse aprovação oficial.
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