A literatura pode iluminar de forma penetrante as trevas da época em que vivemos. Podemos pensar em obras de ficção distópica como “O Senhor do Mundo”, de Robert Hugh Benson; “Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley; e “1984”, de George Orwell. Estas obras “futuristas” projetam tendências contemporâneas num futuro imaginário a fim de refletir o que pode suceder, se tais tendências não forem abandonadas ou modificadas. Portanto, podem servir como profetas — ou mesmo profetas da desgraça. 

Outras obras literárias podem ajudar a denunciar ou até a derrubar regimes tirânicos. Por exemplo, “Um Dia na Vida de Ivan Denisovich”, de Aleksandr Solzhenitsyn, um poderoso retrato da brutalidade e da desumanidade dos campos de trabalho soviéticos, ajudou a colocar o comunismo soviético em descrédito aos olhos do mundo.

Embora esses títulos venham à mente assim que pensamos em obras literárias capazes de lançar luzes sobre as trevas e a loucura da modernidade, não é provável que o romance de Oscar Wilde, “O Retrato de Dorian Gray”, seja considerado uma obra com tal capacidade. Não é um retrato distópico de um futuro tenebroso nem um relato detalhado, sombrio e realista da tirania e da corrupção políticas de hoje. Ao contrário, trata-se de uma fantasia com sugestões sobrenaturais ambientada na Londres da época de Wilde. Ainda assim, a obra é um impressionante reflexo de nossa atual cultura narcisista, pois nos mostra quem somos e, portanto, serve como parábola a nos alertar para os perigos do Orgulho e suas consequências, decadentes e destrutivas. 

A história gira em torno de Dorian Gray, um jovem impressionável que é corrompido pela filosofia relativista de tendência niilista e cínica pregada por Lord Henry Wotton, um homem mais velho. O retrato epônimo é pintado pelo terceiro personagem principal, Basil Hallward, um artista que se apaixona pela beleza física de Dorian. Ao ver o retrato, Dorian Gray fica enamorado de sua própria aparência física, assim como nas “Metamorfoses” de Ovídio o mítico Narciso se apaixona por seu reflexo na água. Depois que Lord Henry seduz Dorian com a ideia de que a beleza física da juventude é a única coisa que importa, Dorian percebe que a pintura sempre refletirá sua beleza jovial, ao passo que ele está destinado a ficar velho e feio. Após um ataque de raiva decorrente da consciência de sua própria mutabilidade e mortalidade, ele deseja (ou talvez “reza”) que sua boa aparência jovial seja preservada e que o retrato porte o fardo de sua idade, envelhecendo em seu lugar. O desejo (ou “oração”) é atendido, e Dorian passa a desfrutar dos frutos envenenados de seu pacto faustiano

Basil Hallward e Henry Wotton observando o retrato de Dorian Gray. Gravura de Eugène Dété.

O resto do romance é um catálogo dos pecados de Dorian, que se torna cada vez pior e mais perverso à medida que afunda no lamaçal de sua própria decadência viciante. A cada pecado que comete, o retrato fica mais horrível e feio, zombando dele com crueldade. Dorian percebe que o retrato é o espelho de sua própria alma, reflexo da feiúra oculta sob a casca sempre bela de sua beleza física imutável. Às vezes, o impávido realismo metafísico da terrível realidade de seu ego oculto mas verdadeiro o impele ao arrependimento. Porém, a cada vez que isso acontece ele retorna ao seu antigo caminho perverso. Ao fim e ao cabo, ele tenta se libertar do olhar lascivo do retrato, que ele identifica com sua própria consciência. Se ele puder se libertar da presença dele, poderá se libertar da presença de sua consciência. Essa libertação lhe permitiria pecar com mais liberdade, sem a menor sugestão de autorrepreensão. Ao tentar destruir o retrato, ele só consegue destruir a si mesmo, já que sua consciência é inseparável de sua alma.

Esta é a história ficcional, mas como ela reflete a realidade factual em que nos encontramos hoje?

Se enxergarmos Dorian Gray como homo superbus, o Homem do Orgulho que procura fazer o que bem entende, sem qualquer tipo de autocontrole ou de limites morais impostos pela sociedade, ele aparece como a figura do homem comum, forjado à imagem de nossa época deplorável, o qual nos mostra o estado de nossa cultura niilista e decadente. Dorian Gray é o advogado do Orgulho. Mantém as aparências em público, mas sua vida privada é uma bagunça que leva desordem para as vidas de todas as outras pessoas. Quanto mais tenta ser a imagem autocriada de si mesmo, menos ele sabe quem é. Quanto mais acredita que é livre de limites morais, mais se torna um escravo dos próprios vícios autodestrutivos. Quanto mais tenta matar a consciência, mais ele mata a si mesmo. 

Por ora basta de Dorian Gray, o Homem do Orgulho. Mas e o retrato dele? É a arte que mostra a Dorian Gray a verdade terrível sob a casca cosmética de sua superfície orgulhosa. O papel que o retrato ficcional desempenha na história ficcional é o mesmo que esta desempenha no mundo real. O romance de Wilde é em si um espelho que nos mostra um retrato da cultura decadente e orgulhosa que ele tão bem conhecia, a qual produziu nele e nos outros um enorme prejuízo.

“O Retrato de Dorian Gray” nos revela a verdadeira face do Orgulho. Mostra-nos que aqueles que escolhem a vida de Orgulho estão se condenando a uma existência autoilusória e autodestrutiva. Enganados pela mentira niilista do relativismo, passam seus dias cada vez mais vazios de sentido, imersos na perturbação de Dorian.

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