Se eu tivesse uma máquina do tempo, que pudesse me transportar a qualquer tempo e lugar, escolheria o “pub” Eagle and Child, em Oxford, numa noite de terça-feira, em 1950, com C. S. Lewis lendo trechos de seu livro “As Crônicas de Nárnia”. Ele estaria lá, diante de uma lareira, com J. R. R. Tolkien e os outros Inklings, reunidos para beber cervejas, fumar cachimbos e ler excertos de suas obras. O autor de “O Senhor dos Anéis” escutaria tudo calmamente e depois daria sua contribuição com críticas inteligentes e certeiras.
Infelizmente, para isso, eu precisaria não apenas de uma máquina que viajasse ao passado, mas de uma que o mudasse também: contam-nos os estudiosos que os Inklings seguiram cada um o seu próprio caminho a partir de 1949, e que as histórias de Lewis sobre Nárnia jamais foram lidas àquele grupo de amigos. De qualquer modo, Tolkien mantinha uma posição bem sólida a respeito das histórias infantis de seu amigo. Ele não gostava delas.
Mas por que não? Seria por inveja, como na história da raposa e as uvas? Em meados dos anos 1950, quando os contos de Nárnia estavam sendo publicados, Lewis era um escritor bastante popular. Tolkien, ao contrário, que acabara de publicar sua obra-prima, levaria dez anos para ver seus livros deslancharem. Foi também mais ou menos nessa época que a famosa amizade entre os dois arrefeceu.
Será que Tolkien achava que Lewis estava copiando suas próprias ideias (como as referências a Númenor e ao mito de Tolkien em “Uma Força Medonha”) e vulgarizando-as? Pensava ele talvez que seu amigo estivesse se beneficiando de seu próprio trabalho? Teria ele se ressentido de Lewis soltar com tanta rapidez e facilidade suas histórias de fantasia para crianças, enquanto sua obra-prima foi o doloroso parto de uma vida inteira?
Alguns desses elementos talvez expliquem parte da antipatia de Tolkien por Nárnia e de seu afastamento de Lewis. Havia outras questões pessoais envolvidas no esfriamento da amizade dos dois, mas Tolkien não gostava das histórias de Nárnia por outras razões, mais profundas e profissionais.
O autor de “O Senhor dos Anéis” ficava incomodado com o uso inconsistente que “As Crônicas de Nárnia” faziam das figuras mitológicas. Personagens da mitologia clássica eram simplesmente jogadas na história, juntamente com outras do folclore moderno e da literatura infantil. Tolkien não podia entender como uma história podia conter, ao mesmo tempo, faunos e Papai Noel, dríades e dragões, ninfas e animais falantes. Tudo parecia muito “forçado”, sem originalidade, uma espécie de bagunça mal pensada e malfeita.
Além disso, Tolkien não partilhava com Lewis o amor pela literatura infantil enquanto tal. Ele apreciava mitos e contos de fadas, mas não achava que devessem ser relegados à literatura para crianças. Também não gostava de truques de sonho (como Lewis usou em “O Grande Abismo”) para transportar pessoas a mundos alternativos, e desconfiava de recursos literários mágicos que fizessem crianças visitar outros mundos através de espelhos, guarda-roupas ou tocas de coelhos.
Em suma, o autor de “O Senhor dos Anéis” levava a mitologia mais a sério. Ele construiu seu mundo alternativo do zero. Começando com o idioma dos elfos, Tolkien criou a raça que falava o idioma; concebeu depois e criou cuidadosamente não apenas as outras raças e seus próprios idiomas, mas todo o mundo no qual elas viviam, com sua geografia, sua história e as mitologias correspondentes. Tolkien desdenhava da rapidez e da facilidade com que Lewis criava suas histórias não só porque as obras eram produzidas rápido, mas porque qualquer um podia percebê-lo.
As objeções reais de Tolkien a Nárnia, no entanto, iam ainda mais longe. Tolkien não era fã de alegorias, e “As Crônicas de Nárnia” eram alegóricas demais para o seu gosto. Lewis protestava, dizendo que não se tratava de alegoria (ele já havia escrito uma em “O Regresso do Peregrino”), mas sim de analogia. Ainda que as personagens em Nárnia não tenham, de fato, um relacionamento pessoal alegórico com verdades abstratas, elas apontam claramente para verdades e personagens maiores na história do cristianismo. Tolkien, porém, objetava.
O autor de “O Senhor dos Anéis” rejeitava assim tão intensamente as alegorias porque ele as considerava didáticas demais, não deixando margem para a existência de outros níveis de sentido em uma obra. Tolkien entendia o artista, criado à imagem de Deus, como um “subcriador” — que produziria tanto melhor um trabalho de fantasia quanto mais fiel fosse ao próprio ato complexo da criação divina.
Para fazer isso com sucesso, um mundo completamente alternativo tinha de ser criado, no qual uma obra de redenção pudesse se desenrolar, coerentemente, dentro de seus próprios limites lógicos. Não era suficiente criar um mundo com indicadores simbólicos de Jesus Cristo e da cruz; esse mundo deveria ter toda uma história e uma dinâmica interna própria, que encarnasse verdades universais de um modo completamente novo.
A diferença entre Nárnia e a Terra Média aponta para a diferença fundamental entre a imaginação protestante de Lewis e a imaginação católica de Tolkien. Para um protestante, a verdade é essencialmente dialética, consistindo em proposições abstratas a ser declaradas, defendidas, confirmadas ou negadas. Para um católico, porém, a Verdade em essência, ainda que possa ser tratada dialeticamente, é algo a ser não discutido, mas experimentado; a Verdade está sempre ligada ao mistério da Encarnação, sendo algo, portanto, com que devemos nos encontrar.
Muitos protestantes arguirão, por exemplo, que a principal revelação de Deus é a Sagrada Escritura, enquanto os católicos mantêm que a principal revelação de Deus é Jesus Cristo. Que C. S. Lewis tenha produzido obras profundas, válidas e belas, mas não plenamente “encarnadas”, enquanto Tolkien produziu uma obra-prima que encarnava as mesmas verdades de uma maneira completa, sutil e misteriosa, é algo que só reflete as profundas diferenças teológicas existentes entre os dois.
Longe de mim “atirar pedras” em Lewis ou em Nárnia. Eu continuo a apreciar minhas próprias visitas a Nárnia e assisto a seus filmes com grande entusiasmo. Entretanto, como muitos outras pessoas, eu admiro mais a Terra Média. Minha admiração por Tolkien e seus feitos deve-se não somente à profundidade de sua obra, mas ao fato de que tudo o que ele produziu é inseparável de sua personalidade humilde e de sua devotada fé católica.
Nárnia está povoada de personagens extraordinárias, intuições inspiradoras e verdades admiráveis, mas na Terra Média a magia penetra em um nível mais profundo. Quando eu visito Nárnia, minha mente fica atenta e meu espírito se eleva como se visitasse uma galeria de arte; quando eu visito a Terra Média, meu coração fica atento e meu espírito se eleva como se visitasse uma grande catedral. No primeiro, há muito para admirar; no segundo, há muito para adorar.
Para expressar melhor essa diferença, permitam-me servir não de um argumento, mas de uma experiência que eu tive. Alguns anos atrás, depois de tomar um bom banho quente e reler “As Duas Torres”, um belo e verdadeiro detalhe da obra me marcou. Eu sentei-me, então, e disse bem alto: “Isso só podia ter sido escrito por um católico de Missa diária!”
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