Quando, em resposta à sua mãe e seus parentes mais próximos que o procuravam, Nosso Senhor disse: “Minha mãe e meus irmãos são aqueles que ouvem a Palavra de Deus, e a põem em prática” (Lc 8, 21), era inaugurada uma nova família, formada não já por laços de sangue, como o antigo povo de Israel, mas unida por um vínculo espiritual. Essa família é a Igreja e, assim como o Cristo, também ela foi prenunciada no Antigo Testamento. Veja-se o que escreve, por exemplo, o profeta Malaquias (“oráculo do Senhor”):
Vá, antes, um de vós e feche as portas. Não acendereis mais inutilmente o fogo no meu altar. Não tenho nenhuma complacência convosco — diz o Senhor dos exércitos — e nenhuma oferta de vossas mãos me é agradável. Porque, do nascente ao poente, meu nome é grande entre as nações e em todo lugar se oferecem ao meu nome o incenso, sacrifícios e oblações puras. Sim, grande é o meu nome entre as nações — diz o Senhor dos exércitos (Ml 1, 10-11).
Como se pode ver, é uma profecia a respeito não só da Igreja, mas também da Eucaristia; mais propriamente, do fato de que Ecclesia de Eucharistia vivit, isto é, “a Igreja vive da Eucaristia” [1]. O sacrifício antigo cessou, e o novo passou a ser oferecido em todos os lugares, assim como a salvação se estendeu de Israel para todo o orbe — porque “grande é o meu nome entre as nações”, diz o Senhor. As Missas oferecidas ao redor do mundo são esses “incenso, sacrifícios e oblações puras” de que fala o profeta. Também em tempos de pandemia é válido recordar isso, pois, mesmo com as igrejas fechadas e o culto público suspenso em muitos lugares, os sacerdotes católicos não deixaram de oferecer a Deus, ainda que em privado, “a hóstia pura, hóstia santa, hóstia imaculada, o pão santo da vida eterna e o cálice da eterna salvação” [2].
Essa família, porém, que se reúne em torno do Cordeiro tanto na fé quanto na liturgia, é apresentada por Nosso Senhor na perícope do Evangelho acima de modo abrupto e, alguém seria tentado a dizer, quase inconveniente. Os protestantes chegam a usar o versículo em questão para combater a veneração católica a Nossa Senhora, como se perguntassem: se o próprio Cristo a tratou com tanta “rispidez”, por que deveríamos fazer diferente?
A verdade é que o Deus que promulgou o quarto mandamento não é diferente do que se fez homem no seio da Virgem Maria. Por isso, está fora de cogitação que Jesus tenha querido destratar, ou tenha efetivamente desonrado a sua Mãe. Admiti-lo seria questionar a própria perfeição do Verbo feito carne. Ao contrário do que sugere essa interpretação tendenciosa protestante, a lição que precisamos extrair das palavras de Jesus é bem outra.
Voltemos à ideia inicial de que Nosso Senhor veio inaugurar um novo tipo de família, pois é o que expressam mais duas passagens do Evangelho:
- Em resposta a uma mulher do meio do povo que exclama: “Bem-aventurado o ventre que te trouxe, e os peitos que te amamentaram!”, Nosso Senhor replica: “Antes bem-aventurados aqueles que ouvem a palavra de Deus e a observam!” (Lc 11, 27-28). Isto é, o que importa, agora, não é simplesmente o amor natural de uma mãe que dá a luz o seu filho e o amamenta, dando-lhe sustento físico. Isso é bom, sem dúvida, mas também os animais o podem fazer. Contam mais, a partir da Nova Aliança, a paternidade e a maternidade espirituais, de quem gera almas para Deus.
- Na mesma linha, em discussão com os fariseus, Nosso Senhor diz que, embora sejam “a raça de Abraão”, pelas obras que praticam o pai deles é o diabo (cf. Jo 8, 37-40). Isto é, pelo sangue, eles podem até ser descendentes de Abraão, mas o que importa, agora, não é mais a geração carnal. Somos mais filhos de quem imitamos do que de quem nascemos.
Isso tem uma importância, para nós, muito maior do que podemos imaginar num primeiro momento. Ao lembrar a superioridade da fé, da obediência e das virtudes sobre a carne, o sangue e os laços humanos, Jesus queria alertar a todos os seus discípulos, de todos os tempos, que, se for preciso escolher, um dia, entre a amizade do mundo e a de Deus, não devemos hesitar em voltar as costas para os mais próximos a nós, mesmo que estes sejam membros de nossa própria família!
É claro, pode ser que, em alguns casos, não precise ser assim. Com Nosso Senhor, no seio da Sagrada Família, não precisou, pois São José e Maria Santíssima foram os pais mais perfeitos que jamais existiram. Os santos que tiveram pais igualmente santos, como Teresinha do Menino Jesus, também gozaram em sua casa de uma tranquilidade invejável. Mas em muitos lares não é assim. Na verdade, poderíamos até dizer que a regra é que não o seja. A norma dentro das famílias é esta, anunciada pelo próprio Senhor: “Não julgueis que vim trazer a paz à terra. Vim trazer não a paz, mas a espada. Eu vim trazer a divisão entre o filho e o pai, entre a filha e a mãe, entre a nora e a sogra, e os inimigos do homem serão as pessoas de sua própria casa” (Mt 10, 34-36).
Note-se o peso desta frase: por causa de Cristo, “os inimigos do homem serão as pessoas de sua própria casa”. Sim, as pessoas mal casadas imediatamente se reconhecem na descrição, mas Nosso Senhor não está falando disso [3]. Trata-se de algo mais profundo: cônjuges também, mas pais e filhos, irmãos e irmãs, quando não há concórdia, isto é, quando não têm os corações (corda) no mesmo lugar, podem se comportar como verdadeiros estranhos, mesmo morando debaixo do mesmo teto.
Não à toa, tantas pessoas se sentem mais acolhidas e chegam a estimar mais os seus irmãos de fé que os seus de sangue. E não, não é “ódio” à própria família, não é “renegar” as próprias origens, não é “achar-se superior” aos de sua casa. É simplesmente o movimento sobrenatural de quem sabe que há uma família, que se reúne aqui na Terra e que se reunirá para sempre no Céu, e que vale a pena desprezar todo o resto para fazer parte dela.
E, muitas vezes, aqueles que estão mais próximos não nos deixarão outra alternativa, a não ser dizer, com suas atitudes e comportamentos: “Ou nós ou o seu Cristo”. Só para dar um exemplo: uma família recém-formada, que quer educar os filhos na fé, não conseguirá frequentar as festas da família maior no final do ano, quando se reúnem em torno da mesa de Natal xingamentos e músicas indecentes, e às vezes até depravação sexual e embriaguez. Ressoarão nos ouvidos do casal católico as palavras de Nosso Senhor: “Quem ama o seu pai e a sua mãe mais do que a mim, não é digno de mim” (Mt 10, 37). Será doloroso apartar-se dos que lhe deram a vida física, mas se isso for necessário para que eles mantenham em suas almas a vida sobrenatural, assim será.
Sim, isso é muito duro. Mas um teólogo contemporâneo já havia advertido: La solitudine della fede sarà tremenda, “A solidão da fé será tremenda” [4]. A solidão da fé será tremenda, quando o filho católico precisar trancar-se no próprio quarto e isolar-se do convívio com os seus para preservar a própria pureza, porque na sala toda a família está a assistir a um filme ou uma novela indecentes; a solidão da fé será tremenda, quando a mãe de família tiver de suportar o abandono do marido infiel e tiver de criar os próprios filhos sozinha, porque quer ser fiel ao próprio casamento; a solidão da fé será terrível, quando uma pessoa se converter a Cristo e ver os mais próximos se precipitando no Inferno e fazendo de sua vida, já aqui, um Inferno.
Só que, concluamos, trata-se de uma solidão ilusória. Pois, se seu pai ou sua mãe, seu filho ou sua filha, seus irmãos ou seus primos não reconhecem mais você, Cristo Nosso Senhor não só o conhece, como o chama de pai, de mãe, de irmão, de irmã. Nós, católicos, devemos ser muito gratos a nossos familiares, especialmente a nosso pai e nossa mãe, que nos deram a vida natural — não sem razão temos o quarto mandamento para cumprir [5]! —, mas o nosso coração deve alargar-se muitíssimo mais de pensar na família a que fomos incorporados pelo Batismo e pela fé em Jesus! Ainda que pareça, não estamos sozinhos jamais, pois Jesus é o nosso primeiro companheiro fiel, nosso primeiro familiar. Depois dele, há uma multidão de santos e anjos, incontável, que podemos invocar a todo tempo em nossas provações familiares e em nossas dificuldades interiores.
Na Missa, nós experimentamos poderosamente esse mistério, que é chamado no Credo de “comunhão dos santos”. Ali, em torno do altar do Senhor, daquele que se fez nosso parente, nosso familiar, nosso irmão, estão a bem-aventurada Virgem Maria, São Miguel Arcanjo, os Apóstolos São Pedro e São Paulo, desde o início da Missa, quando lhes confessamos os nossos pecados e pedimos sua intercessão [6]. Os anjos são invocados constantemente, para levar nossas orações até Deus — e eles o fazem.
Portanto, se é verdade que “a solidão da fé será tremenda” nesse nosso mundo, cada vez mais pagão e apóstata; se, de fato, ao nosso redor todos parecem não ter fé e mesmo os que a tinham parecem perdê-la, devem inspirar-nos sempre confiança as palavras de Nosso Senhor: “Não temais, pequeno rebanho, porque foi do agrado de vosso Pai dar-vos o Reino” (Lc 12, 32). Não deve nos assustar o fato de os fiéis se reduzirem a um punhado. De fato, o rebanho é pequeno (pusillus grex), e não é de agora. Mas, ao mesmo tempo, somos filhos do Deus dos exércitos (Deus sabaoth), o Deus das legiões de anjos que, invisíveis, engrossam o coro dos bem-aventurados e tornam o número dos eleitos muito maior do que parece a um primeiro olhar. Agora nos encontramos dispersos, e a solidão da fé, muitas vezes, parece que nos vai engolir. Mas Deus nos fez “sacerdotes e povo de reis, e iremos reinar sobre a Terra” (cf. Ap 1, 6).
Isso significa também que, já aqui, teremos a graça de ver muitos de nossos próximos se converterem, graças à nossa oração, ao nosso testemunho e ao nosso apostolado. Afinal de contas, porque amamos os nossos, queremo-los junto de nós, queremo-los junto de Cristo. E trabalharemos para isso, com a ajuda da graça de Deus!
Mas não nos assustemos com o mistério da iniquidade, com o abuso que tantos fazem do livre-arbítrio. Porque também nós, não fosse a grande misericórdia de Deus, estaríamos no mesmo caminho do mundo. Por isso, não só pelos que não crêem, mas também por nós, não tardemos a invocar, especialmente agora, a intercessão do Arcanjo São Miguel: como diz o Alleluia de sua Missa no rito tridentino, Sancte Michael Archangele, defende nos in praelio, ut non pereamus in tremendo judicio — “São Miguel Arcanjo, defendei-nos no combate para que não pereçamos no tremendo juízo”.
Sim, tremenda será não só a “solidão da fé”, mas também o julgamento de Deus. De nossa perseverança, até o fim desta vida, depende a nossa salvação por toda a eternidade.
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