Em 1997, em uma livraria, deparei com uma obra que me impactou e deixou horrorizado. Uma teóloga feminista havia escrito um livro no qual argumentava que as duas grandes “cruzes” que as mulheres católicas tinham de carregar eram — você já pode suspeitar — a oposição da Igreja à ordenação de mulheres e ao aborto. Eu mal podia acreditar que o pecado de blasfêmia pudesse chegar a tal nível, mas aquilo estava ali, diante dos meus olhos, e não era um pesadelo.
Não muito tempo depois, alguém me falou de uma mulher no Canadá que se referia ao aborto como algo “sacramental”. O abuso linguístico não é nada menos que luciferino. Na verdade, não pode haver nada de sagrado ou santificante no pecado, na destruição da vida e na autodestruição, assim como não pode haver nada de belo no demônio depois de sua rebelião. Os sacramentos existem para trazer vida aos homens. O aborto, por sua vez, deve ser chamado mais propriamente de o “antissacramento” por excelência, já que priva o ser humano não nascido da oportunidade de vir à luz, tanto natural quanto sobrenaturalmente.
“O demônio é o macaco de Deus”, diz um provérbio antigo. O demônio realmente tem uma religião organizada — organizada pelo menos a ponto de trazer os inimigos de Cristo para dentro das mais rígidas e eficientes estruturas políticas, psicológicas e culturais que ele é capaz de inventar com sua inteligência sobre-humana. Tudo o que é feito pela Igreja Católica é parodiado pela “igreja” do diabo, e nessa paródia nós encontramos uma explicação para as blasfêmias das pessoas mencionadas acima, cujo uso das palavras “cruz” e “sacramento” constitui nada menos do que um ataque frontal à própria santidade e misericórdia divinas.
O único modo de se afastar da infinita misericórdia de Deus é afrontando-a diretamente: “Em verdade, vos digo: tudo será perdoado às pessoas, tanto os pecados como as blasfêmias que tiverem proferido. Aquele, porém, que blasfemar contra o Espírito Santo nunca será perdoado, mas será réu de um pecado eterno” (Mc 3, 28-29). Se as pessoas se arrependerem de seus pecados — quaisquer pecados! — e procurarem a misericórdia de Deus, Ele lhas dará, ainda que com uma justa punição, nesta vida ou na outra. Mas se as pessoas ofenderem diretamente a divina misericórdia, demonstrada ou comunicada na ordem da criação e na ordem superior da redenção, e forem para seus túmulos nesse estado de rebelião contra o Espírito Santo, como Ele poderá ajudá-las? É justamente esse o dom rejeitado por tais pessoas.
As pessoas escolhem o inferno para si mesmas, eis a dura verdade; e eu acrescentaria que esse inferno é sempre fruto do próprio pecador. Sua prisão é sua mente, e sua punição é ficar aprisionado eternamente em seu “ego” obscurecido e transtornado. Só isso já é um inferno suficiente, antes mesmo de falarmos de chamas de fogo ou quaisquer dos tormentos magistralmente descritos no “Inferno” de Dante.
Eu costumo pensar no que C. S. Lewis diz em seu livro “O Grande Abismo”: o inferno é como um subúrbio onde as casas vão se distanciando cada vez mais, com aqueles que moram nelas se isolando e se isolando, à medida que o tempo passa. E não poderíamos associar essa imagem com a convicção de Ratzinger de que o inferno já está irrompendo em nosso mundo moderno, penetrando em suas rachaduras? Os subúrbios da terra, “livres” de crianças, evacuados pela contracepção e o aborto, são precursores dos subúrbios do Hades, “livres” de Deus, habitados pelo vazio.
O aborto é o crime de quem odeia radicalmente a si próprio e desesperou de um sentido para sua vida. Se as pessoas amassem quem são e enxergassem sentido em suas existências, acolheriam cada nova vida como uma continuação do que elas amam, uma confirmação do grande sentido que tem a vida, um prenúncio de esperança, um investimento no futuro.
O crime de extinguir e descartar um filho é o fundo do poço, o declínio completo da vida e da existência; é a morte do instinto social e do próprio coração humano, o suicídio do senso comum, o assassinato brutal da compaixão e da misericórdia, uma paródia doentia do verdadeiro amor. Visto dessa forma, é o pior ato possível, pois é como matar a inocência, a vida, Deus e o futuro, tudo de uma vez só. O aborto é, tanto literal quanto simbolicamente, o estágio final de decadência metafísica e perda de sentido.
Nós sabemos, a partir da teologia moral, que há alguns pecados piores em espécie do que o aborto — por exemplo, profanar a Santa Eucaristia ou cometer suicídio. Mas, como Santo Tomás costuma dizer, nada impede que um pecado seja o pior em certo sentido, ainda que não seja o pior absolutamente falando. Nenhum crime pode ser mais abominável do que o aborto em pelo menos um sentido: ele é totalmente contrário ao bem natural e fundamental da vida, bem como à afeição profundamente enraizada que os seres humanos nutrem para consigo, especialmente os inocentes e indefesos.
Não pode haver nenhuma desculpa satisfatória para esse crime; todo o mundo sabe que uma mulher grávida é uma mulher com um filho; que o seu abdômen está arredondado porque uma criança está em seu ventre crescendo e se mexendo; que desde o momento da concepção está presente ali um novo ser humano, além da mulher. É impossível que uma pessoa em pleno uso de suas faculdades mentais não o saiba.
Tudo isso leva a uma conclusão assustadora: a “onipresença” do aborto no mundo moderno é um sinal das trevas espirituais extremas que se abateram sobre a humanidade, uma escuridão diferente de todas que a história jamais experimentou. Para o aborto ser “aceito” por uma pessoa (antes mesmo de ser escolhido), sua inteligência — sua alma inteira, na verdade — precisa se afastar da realidade, do autoconhecimento, do amor à vida, da humanidade básica — até mesmo do princípio da não-contradição e, com ele, da possibilidade do pensamento lógico.
Conflitos entre os homens são uma coisa: enquanto continuarmos sendo presas da avareza, da libido dominandi e do nacionalismo exacerbado, guerras serão incentivadas e alimentadas. Mas uma guerra tecnologicamente refinada e lucrativa contra crianças não nascidas? Não há nada mais depravado, nada mais profundamente contrário à própria natureza do homem. O aborto mina aquele amor aos filhos inscritos no coração humano e coloca em seu lugar uma negação vazia, uma negação assassina do ser; ele transforma um coração de carne em um coração de pedra.
É por isso que o Cardeal George Pell pôde dizer: “O aborto corrompe tudo em que ele toca: a lei, a medicina e todo o conceito de direitos humanos.” Isso ele faz por corromper primeiro o coração humano. É por isso que aqueles que realizam, aconselham ou passam por abortos precisam desesperadamente das nossas orações e penitências: não há nada de que eles tenham mais necessidade do que os sacramentos e a vida da graça, o perdão e a paz do Senhor.
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