Já tivemos a oportunidade de falar aqui sobre o Martirológio Romano, um livro litúrgico infelizmente pouco conhecido em nossas terras, por não contar ainda com tradução brasileira — embora esteja à disposição em nossa língua no site da Conferência Episcopal Portuguesa. O título alude especificamente aos mártires, mas seu conteúdo abrange santos de toda estirpe, além de incluir todas as grandes celebrações do calendário litúrgico da Igreja.
Neste livro, os pequenos textos que falam das festas ou dos santos são chamados de “elogios”. (Afinal, contando os feitos desses homens e mulheres heroicos na fé e no amor, os breves relatos do Martirológio terminam por louvá-los mesmo, além de os colocarem aos nossos olhos como modelos a ser imitados.) Entretanto, o “elogio” mais famoso e solene do Martirológio não está reservado a um mártir, nem a um confessor ou Doutor da Igreja, mas ao próprio Cristo: é o anúncio de seu Natal, feito no dia 24 de dezembro.
Hoje, essa proclamação tem lugar nos ritos iniciais da Missa da Noite de Natal. Mas a leitura do Martirológio, até pouco tempo atrás, estava incluída no Ofício Divino. De fato, antes de o Breviário antigo tornar-se a atual “Liturgia das Horas”, havia entre as horas canônicas uma, entre as Laudes e a Terça, que se chamava Prima. Era dentro dela que os monges e sacerdotes entravam em contato, todos os dias, com o Martirológio. Após a estrutura ordinária da hora Prima, liam-se os “elogios” dos santos do dia seguinte, de modo a preparar o padre ou a comunidade religiosa orante para as festas vindouras, e concluía-se com o versículo: Pretiósa in conspéctu Dómini / mors Sanctórum eius — “É preciosa aos olhos do Senhor / a morte dos seus santos” (Sl 115, 15).
O Concílio Vaticano II, porém, pediu explicitamente a abolição dessa hora (cf. Sacrosanctum Concilium, n. 89, d), e assim se fez.
Como consequência indesejável disso, o Martirológio ficou praticamente relegado ao esquecimento por toda a segunda metade do século XX, tendo sido restaurado só com a publicação de uma nova edição deste livro litúrgico, em 2001, e após uma ampla revisão feita no catálogo dos santos. O lugar possível e recomendável de sua leitura continua sendo o Ofício Divino — mas, como sua recitação não é mais obrigatória, os padres diocesanos e as comunidades religiosas podem escolher ad libitum outro momento para fazê-lo (a hora das refeições, por exemplo).
Como dizíamos, no entanto, um lugar de destaque foi dado ao “elogio” de Nosso Senhor Jesus Cristo, na véspera de seu Natal: a liturgia da Missa do Galo — mais por um costume vindo de Roma, a partir do Papa São João Paulo II, que por uma prescrição contida no Missal Romano. O Diretório da Liturgia e da Organização da Igreja no Brasil prevê, por exemplo, que nesta celebração, “após o Sinal da Cruz e a saudação do que preside, pode-se cantar ou recitar, do ambão, o Anúncio do Natal antes da entoação do Glória” [i].
A proclamação é feita assim:
(Oitavo dia antes das Calendas de janeiro. Lua décima segunda)
Transcorridos muitos séculos desde a criação do mundo
quando no princípio Deus criou o céu e a terra
e formou o homem à sua imagem;
depois de muitos séculos desde que, após o dilúvio
o Altíssimo pusera entre as nuvens o arco
sinal de aliança e de paz;
vinte e um séculos depois que Abraão, nosso pai na fé,
migrou da terra de Ur dos Caldeus;
treze séculos depois da saída
do povo de Israel do Egito, conduzido por Moisés;
cerca de mil anos depois a unção real de Davi;
na sexagésima quinta semana segundo a profecia de Daniel;
durante a Olimpíada centésima nonagésima quarta;
no ano setecentos e cinquenta e dois da fundação de Roma;
no quadragésimo segundo ano do império de César Otaviano Augusto,
quando a paz reinava em toda a terra,
JESUS CRISTO, DEUS ETERNO E FILHO DO ETERNO PAI,
querendo santificar o mundo com o seu piíssimo advento,
concebido pelo Espírito Santo,
decorridos nove meses após a sua concepção,
nasceu em Belém de Judá,
da Virgem Maria, feito homem:
Natividade de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo a carne.
Trata-se de um texto belíssimo, o único prescrito para ser cantado de modo especial no Martirológio. Entoado na noite santa, então, reveste-se de uma particular solenidade.
O texto começa com o anúncio da data, seguindo o calendário romano — daí o termo “Calendas”, uma referência ao modo como era chamado o primeiro dia de cada mês — e o calendário lunar judaico. (Assim começa cada dia do Martirológio, antes de começarem os “elogios” próprios da data.)
Depois vai-se percorrendo toda a história da salvação, marcando a distância no tempo até a vinda do Salvador, desde a criação do mundo, passando por Noé, Abraão, Moisés, até Davi e os profetas — menções que nos lembram as Antífonas do Ó —, de modo a ilustrar que Nosso Senhor Jesus Cristo é o perfeito cumprimento de todo o Antigo Testamento, como diz a Carta aos Hebreus: “Deus, tendo falado outrora muitas vezes e de muitos modos a nossos pais pelos profetas, nestes dias, que são os últimos, falou-nos por meio de seu Filho” (1, 1-2).
Por fim, imediatamente antes da notícia do Natal, menciona-se durante que Olimpíada ele se deu, há quantos anos da fundação de Roma e que imperador reinava na ocasião — fatos relevantes para o mundo pagão, porque também para os gentios nasce o Salvador!
Anuncia-se então o Natal do Senhor. A notação do Martirológio prevê que, às palavras “nasceu em Belém de Judá”, a voz deve elevar-se. Abaixo é possível assistir ao Anúncio de Natal, em latim, feito na Basílica de São Pedro para a solenidade de 2019:
Embora seja facultativo em nossas liturgias, o canto (ou mera recitação) destas palavras marca a historicidade do evento que celebramos todo Natal. Mas, mais do que isso — como bem observa André Florcovski —, “na celebração litúrgica entramos no tempo de Deus, o kairós: no Natal, não celebramos o ‘aniversário’ de Jesus, mas o ‘hoje’ da Encarnação... A Liturgia, pois, não é mimese (recordação ou repetição do passado), mas sim anamnese (atualização)”.
Em 2001, ao apresentar o novo Martirológio, o Mons. Francesco Pio Tamburrino, da Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos, também assinalou que este livro
não é um repertório hagiográfico, nem um mero catálogo de figuras ilustres da Igreja, mas um livro litúrgico reformado segundo os ditames do Concílio Vaticano II [...]. A leitura litúrgica do Martirológio não tem por objetivo comunicar notícias, mas celebrar a santidade de Cristo e dos seus santos, e proclamar aos cristãos: “Já não sois estrangeiros nem hóspedes, mas concidadãos dos santos e membros da família de Deus” (Ef 2, 19), chamados a proclamar as maravilhas de Cristo nos seus servos e a imitar os seus exemplos.
No Natal e sempre, portanto, recorramos à leitura do Martirológio em família como um meio de nos reunirmos em torno de nossa família superna: se “as más companhias corrompem os bons costumes” (1Cor 15, 33), como assevera o Apóstolo, as companhias celestes nos elevam e nos fazem viver, já aqui, um antegozo do Céu.
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