A primeira heresia que ameaçou a Igreja tinha a ver com raça. Ela ficou conhecida como “judaizante”. Tratava-se do cristão batizado que havia nascido judeu e observava todos os mandamentos da Lei de Moisés (além da de outros rabinos), mas procurava impô-la aos gentios convertidos à fé e não circuncidados.

O impulso era natural. A Sagrada Escritura menciona que, no dia de Pentecostes, junto do grupo de judeus de diversos lugares do mundo romano, estavam também alguns prosélitos (At 2, 11): eram circuncidados e seguidores da Lei de Moisés. Os judaizantes, portanto, davam continuidade a uma prática já existente antes da vinda de Cristo. Contudo, os que nasciam judeus — isto é, os que pertenciam à raça judaica — defendiam que todos os homens deveriam conformar-se às suas leis, inclusive as modificações corporais prescritas por Deus no Antigo Testamento (v.gr., a circuncisão).

Mas Nosso Senhor já havia predito por meio de uma imagem que, no Novo Testamento, haveria uma grande mudança, que alteraria a relação entre Deus e o homem. Num famoso episódio em que o nosso Rei se dirige a uma mulher da odiada raça dos samaritanos — com quem a maioria dos judeus se recusava a conversar —, encontramos o seguinte:

“Senhor” — disse-lhe a mulher —, “vejo que és profeta! Nossos pais adoraram neste monte, mas vós dizeis que é em Jerusalém que se deve adorar”. Jesus respondeu: “Mulher, acredi­ta-me, vem a hora em que não adorareis o Pai, nem neste monte nem em Jerusalém. Vós adorais o que não conheceis, nós adoramos o que conhecemos, porque a salvação vem dos judeus. Mas vem a hora, e já chegou, em que os verdadeiros adoradores hão de adorar o Pai em espírito e verdade, e são esses adoradores que o Pai deseja. Deus é espírito, e os seus adoradores devem adorá-lo em espírito e verdade”. Respondeu a mulher: “Sei que deve vir o Messias (que se chama Cristo); quando, pois, vier, ele nos fará conhecer todas as coisas”. Disse-lhe Jesus: “Sou eu, quem fala contigo” (Jo 4, 19–26).

Jesus finalmente se revela como o Rei prometido; mas, surpreendentemente, afirma que o seu Reino abraçará também a odiada raça dos samaritanos — e, de fato, o mundo inteiro. Por isso, o culto devido a Deus em seu Reino, não estará circunscrito a este ou àquele lugar, mas se há de estender a todos os lugares, pois o seu Reino estará em todos os lugares. Em seu comentário a essa passagem, o famoso exegeta Cornélio a Lápide († 1637) explica a fala de Nosso Senhor da seguinte maneira:

Chegou o tempo da minha lei evangélica, na qual os verdadeiros adoradores, isto é, os cristãos, provenham eles quer dos judeus, quer dos samaritanos, hão de adorar a Deus não neste monte nem apenas em Jerusalém, com sacrifícios de animais, como fazem os judeus e os samaritanos, mas em todos os lugares, em espírito e verdade [1].

De acordo com os Padres da Igreja, “espírito e verdade” diz respeito, em primeiro lugar, ao Espírito Santo e ao Filho, que é a Verdade; em segundo lugar, ao culto ortodoxo em vez do herético; e, em terceiro lugar, ao entendimento “espiritual” em lugar do “entendimento carnal” dos judeus. Esse último contraste entre carne e espírito viria a ser distorcido mais tarde pelos hereges protestantes para fazê-lo servir aos seus propósitos. No contexto, porém, dos SS. Padres, essa dicotomia se refere particularmente à heresia judaizante. Retornarei a esse ponto em breve.

“Pentecostes”, do frei Juan Bautista Maíno.

O Novo Testamento estabelecido pelo Espírito Santo em Pentecostes, após a Ascensão de nosso Rei ao seu trono, não se basearia em uma característica física dos corpos — circuncisão, nascimento ou raça. No dia de Pentecostes, o Espírito Santo deu aos Apóstolos o poder de falarem em línguas, para que três mil homens ouvissem o Evangelho em sua própria língua e se convertessem (cf. At 2, 41). Isso é sinal da universalidade do Reino de Deus, que acabara de ser fundado.

Eles não eram circuncidados, contra o que fariam os judaizantes, mas eram batizados e integrados ao Corpo de Cristo. Como rito, o Batismo não modifica o corpo da pessoa; ele é antes adoração em espírito e verdade. Em espírito, porque purifica a alma por meio do corpo, modificando-lhe o coração, diferentemente dos antigos ritos externos, que apenas purificavam a carne (cf. Hb 9, 13). Em verdade, porque tampouco despreza o corpo — como os hereges protestantes fariam mais tarde —, mas o utiliza para produzir uma verdadeira mudança espiritual: a expulsão do pecado original e a incorporação do batizado ao Corpo místico de Cristo. Nenhum homem precisa modificar o corpo para se tornar cristão. Nem sequer é necessário mudar de língua, fundamento de toda cultura. Seu idioma e seu corpo permanecem intactos. Logo, sua raça e sua cultura são, como tais, aceitas, mas batizadas. Por isso, tudo o que nelas for contrário a Deus deve ser abandonado; mas isso não inclui a raça e a cultura como tais.

Em sua maior carta contra a heresia judaizante, S. Paulo apresentou o princípio fundamental da natureza sacramental e espiritual do Novo Testamento: “Todos vós que fostes batizados em Cristo vos revestistes de Cristo. Já não há judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem homem nem mulher, pois todos vós sois um em Cristo Jesus” (Gl 3, 27-28). E noutro lugar: “Aí não haverá mais grego nem judeu, nem bárbaro nem cita, nem escravo nem livre, mas somente Cristo, que será tudo em todos” (Col 3, 11). Aqui, S. Paulo se refere às divisões de raça e etnia, classe e sexo, de sua época. Por meio do Batismo, todos, homens e mulheres, de todas as raças e línguas, recebem a plena dignidade de herdeiros da vida eterna (cf. Gl 3, 29) [2].

Vemos, assim, a primeira verdade importante a respeito da pessoa humana e o Novo Testamento: a dignidade da vocação para a vida eterna e a pregação do Evangelho não se restringem à raça ou ao nascimento. Deste modo, é pecado de racismo afirmar que qualquer pessoa nascida de mulher (cf. 14, 1) não deveria ser batizada ou é de algum modo subumana. Ao contrário, o mandamento é batizar todas as nações (cf. Mt 28, 19).

A conversão da sociedade ao Evangelho. — A história do cristianismo é a história da luta para batizar todas as raças e assim conformar a sociedade ao Reino de Cristo. Isso significa que a verdade sobre a identidade batismal de todas as nações, vista na máxima de São Paulo, deve perpassar toda a sociedade. Os erros que exacerbavam a animosidade entre classes e raças foram abolidos na mensagem evangélica pela força da verdade, que foi transformando pouco a pouco essas tensões violentas em relações de direitos e deveres hierárquicos, impregnados de caridade cristã. A maior conquista da cristandade no âmbito das etnias foi a formação de uma cultura a partir de diversos idiomas e raças que compartilhavam a mesma dignidade no Batismo. Essa cultura ainda não havia alcançado os seus ideais — embora estivesse progredindo em direção a eles — quando um novo ódio racial surgiu como consequência do colonialismo.

A história do colonialismo levou a novas terras a luta de Cristo Rei. A ela se opuseram alguns dos homens mais brutais e iníquos da sociedade cristã — inventores de um novo racismo, meio de justificar o seu cruel comércio de escravos —, contra os inúmeros pregadores do Evangelho que protegeram da injustiça a índios e africanos. Foi necessária uma guerra civil multissecular no seio da cristandade para que enfim caísse a ficha sobre a verdade do Evangelho na sociedade. 

Foi por isso que o Papa Eugênio condenou a nova escravidão colonial em 1435, embora os seus sucessores hesitassem aqui e ali em relação ao assunto. Foi por isso que a Nova Espanha discutiu os direitos dos índios na década de 1550, e S. Pedro Claver batizou milhares de africanos. Foi por isso que os jesuítas defenderam os índios durante séculos, até serem traídos pelo Papa [3]. Foi por isso que, mesmo enquanto o novo racismo seduzia as elites hispânicas de sangue puro na Nova Espanha (fazendo-as crer que eram superiores por causa de sua origem), uma nova raça de mestiços e crioulos surgiu dentro dela. Apesar de tantos abusos e crimes motivados pela questão racial, o Batismo deu origem a uma nova identidade comum. Dessa forma, o casamento interracial se tornou a norma cultural. O primeiro matrimônio cristão conhecido e registrado nos Estados Unidos continentais (então Nova Espanha) foi entre um espanhol de sangue puro, Miguel Rodríguez, e uma africana, Luísa de Abrego — na Flórida católica, em 1565. 

Os erros da Rússia. — A tragédia é que a civilização verdadeiramente cristã não conquistou o domínio cultural no mundo. Ao invés, os vendedores de escravos, agiotas e barões migraram da escravidão racial para a escravidão salarial no séc. XIX. Em reação a essas injustiças, surgiu uma força que destruiria tudo o que tocasse: o marxismo. Como debati em outro lugar, essa força procurou apossar-se de uma verdadeira injustiça para manipular as pessoas, levando-as a cometer atos violentos e carnificinas para conquistar poder político. O marxismo era muito pior do que qualquer racismo, escravidão ou injustiça, porque procurava usar os pobres, os africanos e os índios, incitando-lhes as paixões para massacrarem os seus opressores, enquanto os marxistas obtinham mais e mais poder político.

O marxismo tenta provocar as vítimas do ódio racial, levando-as a odiarem os seus opressores. Existe na história da humanidade alguma força mais nefasta do que essa, que usa e abusa das pessoas em benefício das elites? A própria Mãe de Deus desceu do céu para se opor aos “erros da Rússia”

A personagem fundamental do marxismo americano explicou a tática num livro dedicado a Lúcifer e elogiado por inúmeros políticos. Sua 13.ª regra descreve como incitar o ódio do grupo oprimido por meio da identificação de um inimigo a ser culpado: “Escolha o alvo, concentre-se nele, personalize-o e polarize-o” [4]. Dessa forma, o marxista não deseja libertar os oprimidos por meio da justiça. Pelo contrário, ele encoraja as vítimas de injustiça a cometer uma injustiça ainda maior. Isso acontece porque, para o marxista, o fim justifica os meios, de maneira que o marxista “organizador de comunidades” pode surrupiar doações e até convencer a si mesmo de que é um salvador. O marxista usa os pobres para atingir seus próprios fins, enquanto se disfarça de altruísta. É como Satanás disfarçado de anjo de luz (cf. 2Cor 11, 14).

A cura para a manipulação marxista do racismo não está em negar a existência do próprio racismo — ele é tão velho quanto a Bíblia. Está no esforço por proclamar o Evangelho a todas as nações e convertê-las, praticando a misericórdia com os pobres e a virtude da justiça, duas coisas que S. Pedro exortou o maior dos Apóstolos a fazer (cf. Gl 2, 9–10). Isso silenciará o marxista que afirma falsamente que a Igreja é “opressora”. Afirmação ridícula. Os milhares de orfanatos, hospitais e ministérios dedicados a todos os tipos de pessoas oprimidas ao longo da história refutam, silenciosamente, tamanha ignorância. Isso deixará o marxista desarmado, já que o seu poder reside na manipulação das vítimas de injustiça para que recorram à violência. Por fim, isso converterá o marxista, já que ele será confrontado com aquilo que mais odeia: a realidade.

Façamos sem cansar atos de caridade com os pobres e contra o racismo, e proclamemos sem medo que só há um Nome pelo qual somos salvos: o de nosso Rei e Senhor, Jesus Cristo, Deus e homem verdadeiro.

Notas

  1. Cornélio a Lapide, Commentaria in S. Scripturam. Lugduni, 1839, vol. 8, p. 929b, v. 23.
  2. O que não destrói a natureza de cada pessoa, já que a graça a aperfeiçoa. Permanece, porém, uma determinada hierarquia — particularmente entre homem e mulher —, a qual se vê transformada em uma relação de caridade cristã.
  3. O autor do texto se refere aqui, certamente, à supressão da Companhia de Jesus em fins do século XVIII, por ato do Papa Clemente XIV. O juízo histórico do autor reflete, em grande parte, as opiniões dos mais abalizados autores de História da Igreja. Sobre esse difícil e intrincado episódio histórico, cf., em português, Prof. Felipe Aquino, História da Igreja: A Supressão da Companhia de Jesus, e Henri Daniel-Rops, A Igreja dos templos clássicos, v. II, trad. de Henrique Ruas, São Paulo: Quadrante, 2001, pp. 248–258. Cf. ainda, em inglês, John Hungerford Pollen, The Supression of the Jesuits, de cujo texto uma citação atribuída a S. Afonso de Ligório pode ajudar-nos a pensar: “Pobre Papa! Que mais poderia ele ter feito nas circunstâncias em que foi colocado, com todos os soberanos conspirando por exigir essa supressão? Quanto a nós, importa manter silêncio, respeitar os juízos ocultos de Deus e conservar-nos em paz” (Nota da Equipe CNP).
  4. Saul Alinsky, Rules for Radicals. Random House, 1971, p. 130.

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