Há não muito tempo, a festa de Corpus Christi, assim como a Páscoa, o Natal e Pentecostes, tinha uma oitava [1], como explica neste texto o professor Peter Kwasniewski:

Corpus Christi foi originalmente instituído como uma oitava. Quem quer que acredite que Nosso Senhor está real, verdadeira e substancialmente presente no Santíssimo Sacramento, não seria capaz de celebrar esse “incompreensível mistério de amor” por apenas um dia e então ir embora, como quem risca uma tarefa numa lista de afazeres para cumprir a próxima. Não, é preciso que haja o louvor completo, pleno e pródigo de oito dias: o tempo pára, e nós nos deleitamos na glória do Deus encarnado em nosso meio até que se findem os tempos e cessem os sinais.

É tão óbvio esse instinto eclesial que, quando Nosso Senhor mesmo apareceu a Santa Margarida Maria Alacoque para pedir a instituição de uma festa em honra ao seu Sagrado Coração, Ele especificou que a queria “na sexta-feira depois da oitava de Corpus Christi. É por isso que ela ocorre na sexta-feira da semana seguinte a essa festa. Ela [a festa do Sagrado Coração] manteve seu lugar nos calendários de 1962 e 1969, uma posição que poderia parecer aleatória na ausência da oitava [...].

Ou seja, a festa do Corpo do Senhor [2], na quinta-feira após a festa da Santíssima Trindade, tem uma relação muito próxima com a festa do Sagrado Coração de Jesus, celebrada na sexta-feira da semana seguinte. (Foi em 1955, ainda sob Pio XII, que caiu a oitava de Corpus Christi.)

Neste texto, porém, gostaríamos de apresentar outra razão para que, não obstante a supressão dessa oitava, os fiéis com suas famílias continuem a honrar o Santíssimo Sacramento por mais uma semana — e os sacerdotes, se possível, celebrem nas igrejas Missas votivas em honra desse mistério. O motivo é bem simples e pode ser apresentado nestas cinco expressões: Lauda Sion, Pange lingua, Adoro te devote, Sacris solemniis e Verbum supernum prodiens. Esses são os títulos dos poemas que Santo Tomás de Aquino compôs sobre a Eucaristia, textos de uma riqueza grandiosa, que não podem ser esgotados em um único dia.

Essas pérolas foram escritas em latim, evidentemente, mas possuem versões portuguesas que podem ser encontradas com facilidade na internet. Mas, por belas que sejam as traduções, é sempre melhor acessar e procurar entender os originais latinos, especialmente por terem vindo da pena do “mais santo dos sábios e mais sábio dos santos”.

A sequência de Corpus Christi

Temos, em primeiro lugar, a mais extensa das sequências para Missa que foram preservadas no rito romano: o Lauda Sion, composta de 24 estrofes. É tão longo esse texto que uma alternativa menor é oferecida na liturgia, a começar por sua 21.ª estrofe: Ecce panis angelorum (na tradução litúrgica brasileira: “Eis o pão que os anjos comem”). 

Este canto é um verdadeiro tratado sobre a Eucaristia e um cumprimento quase literal de três de seus versos: Quantum potes tantum aude, quia maior omni laude, nec laudare sufficis (lit., “Quanto podes, tanto ousa, porque é maior que toda loa, nem de louvá-lo és capaz”; na tradução litúrgica brasileira: “Tanto possas, tanto ouses, em louvá-lo não repouses: sempre excede o teu louvor!”). Ou seja, Santo Tomás compôs toda esta sequência em honra ao Santíssimo Corpo do Senhor — e, como vimos, não só esta sequência, mas muitos outros cantos —, e ainda assim não foi o suficiente… Afinal, do próprio Deus presente no Santíssimo Sacramento nunca falaremos o suficiente.

Quod non capis, quod non vides, animosa firmat fides, praeter rerum ordinem (lit., “O que não entendes, o que não vês, garante-o a fé ardente, além da ordem das coisas”; na tradução litúrgica brasileira: “Se não vês nem compreendes, gosto e vista tu transcendes, elevado pela fé”). Essa ideia é uma constante nas composições de Santo Tomás, ressaltando a fé como uma espécie de “sexto sentido”, que supre o defeito dos outros cinco — como diz o Pange lingua: Praestet fides supplementum sensuum defectui (lit., “Seja a fé suplemento ao defeito dos sentidos”; na tradução litúrgica brasileira: “Venha a fé por suplemento os sentidos completar”). 

De fato, quando olhamos para o altar, após a consagração, o que vemos é pão; quando comungamos, tanto a hóstia quanto o vinho consagrados têm gosto de pão e vinho… A fé, porém, nos diz que, pelo milagre da transubstanciação, todo o pão e todo o vinho foram realmente transformados no Corpo, Sangue, Alma e Divindade de Nosso Senhor. Não há mais pão nem vinho, embora nossos sentidos experimentem o contrário. Por isso diz, também, o Adoro te devote: visus, tactus, gustus in te fállitur, sed audítu solo tuto créditur (lit., “Adoro-te com devoção: a vista, o tato, o gosto sobre ti se enganam, mas crê-se sem medo com a só audição”).

Caro cibus, sanguis potus: manet tamen Christus totus, sub utráque specie (lit., “A carne, comida; o sangue, bebida: está porém o Cristo todo sob ambas as espécies”; na tradução litúrgica brasileira: “Alimento verdadeiro, permanece o Cristo inteiro quer no vinho, quer no pão”). Outra lição importante é passada aqui: como Jesus, depois da Ressurreição, não pode mais morrer; como seu Corpo e Sangue estão para sempre unidos, sem possibilidade de separação, quando o sacerdote consagra o pão e o vinho, fica presente, tanto em um quanto em outro, Nosso Senhor inteiro. É por isso que nós, católicos, não precisamos comungar sob as duas espécies; “no que diz respeito ao fruto, os que recebem uma só espécie não são privados de nenhuma graça necessária à salvação” [3].

Nessa mesma linha, continua o canto, o Deus que se dá a um fiel é o mesmo que se dá ao outro, sem divisão: A suménte non concísus, non confráctus, non divísus: intéger accípitur. Sumit unus, sumunt mille: quantum isti, tantum ille: nec sumptus consúmitur (lit., “Por quem toma não partido, nem quebrado ou dividido, mas é íntegro recebido. Toma um, tomam mil, tantos estes quanto aquele, mas nem tomado é consumido”; na tradução litúrgica brasileira: “É por todos recebido, não em parte ou dividido, pois inteiro é que se dá! Um ou mil comungam dele, tanto este quanto aquele: multiplica-se o Senhor”).

O problema das comunhões sacrílegas

Outra lição valiosíssima dessa sequência, infelizmente esquecida em nossos dias, é o das comunhões indignas. Diz Santo Tomás: Sumunt boni, sumunt mali: sorte tamen inaequáli, vitae vel intéritus. Mors est malis, vita bonis: vide paris sumptionis quam sit dispar éxitus (lit., “Tomam bons, tomam maus, com sorte porém desigual, de vida ou de ruína. A morte é para os maus, a vida para os bons: vê como da mesma mesa haja tão diversa saída”; na tradução litúrgica brasileira, “Dá-se ao bom como ao perverso, mas o efeito é bem diverso: vida e morte traz em si. Pensa bem: igual comida, se ao que é bom enche de vida, traz a morte para o mau”). 

Sim, essas palavras são apenas um eco de São Paulo: “Todo aquele que comer este pão ou beber o cálice do Senhor indignamente será culpado quanto ao corpo e sangue do Senhor” (1Cor 11, 27). Mas esse versículo, curiosamente, não consta em nenhum lugar no atual lecionário — e considerando que, devido a sua extensão, a primeira parte do Lauda Sion dificilmente é cantada em nossas paróquias, o resultado prático é que as pessoas simplesmente jamais ouvem falar da possibilidade (muitíssimo real, muitíssimo frequente) das comunhões sacrílegas. A esse respeito, observa ainda o prof. Peter Kwasniewski:

O alerta de São Paulo para que evitemos receber o Corpo e o Sangue do Senhor indignamente, isto é, para a nossa própria condenação, foi omitido de todas as Missas no Novus Ordo por quase meio século. E, no entanto, na Missa latina tradicional, esses versículos são escutados ao menos três vezes todos os anos: uma na Quinta-feira Santa [...] e duas em Corpus Christi [...]. Os católicos que frequentam o usus antiquior sempre terão essas palavras desafiadoras colocadas diante de suas consciências. Sejamos francos: o conceito de uma Comunhão indigna simplesmente desapareceu da consciência católica em geral.

Como consequência do silêncio (e apostasia) do clero — e da má catequese de nossos dias —, então, o pão dos filhos é tragicamente “lançado aos cães” (conforme expressão da própria sequência: Ecce panis angelorum, factus cibus viatorum, vere panis filiorum, non mittendus canibus; lit., “Eis o pão dos anjos, feito pão dos viandantes, verdadeiro pão dos filhos, que não se deve dar aos cães”). 

A discussão, por exemplo, que está acontecendo nos Estados Unidos a respeito da Comunhão para pessoas em pecado público (especialmente políticos favoráveis ao aborto) nem sequer é tocada no Brasil, quando deveria ser óbvio para qualquer católico que uma pessoa que defende o assassinato de crianças no ventre materno não deveria jamais se aproximar da Sagrada Eucaristia; e, se ela promove publicamente essa causa, deve sim ter a Comunhão negada pelos ministros da Igreja. 

Santo Tomás (cf. STh III 80 6c.) e dois mil anos de Tradição e Magistério o afirmam claramente; nosso Código de Direito Canônico o ordena expressamente (cf. Cân. 915: “Não sejam admitidos à sagrada comunhão os excomungados e os interditos, depois da aplicação ou declaração da pena, e outros que obstinadamente perseverem em pecado grave manifesto”); mas, pelo visto, nossa época é mais sábia que os santos e Doutores que nos precederam...

“Quanto podes, tanto ousa”

Dos hinos compostos por Santo Tomás, o Pange lingua é sem dúvida o mais conhecido, principalmente por suas duas últimas estrofes, iniciadas em Tantum ergo sacramentum (“Tão sublime sacramento”). É prescrito pela liturgia que ele seja cantado nas Vésperas do ofício de Corpus Christi, bem como durante as bênçãos com o Santíssimo.

Também muito belo e conhecido é o Adoro te devote, onde Santo Tomás recorda que, do Sangue de Nosso Senhor, uma única gota seria suficiente para remir o mundo inteiro (Cuius una stilla salvum fácere totum mundum quit ab omni scélere; lit., “Do qual uma só gota o mundo inteiro salvar pode de todo crime”).

Menos conhecidos, mas nem por isso menos bem elaborados, são os hinos Sacris solemniis e Verbum supernum prodiens, prescritos respectivamente para as Matinas (atual Ofício das Leituras) e Laudes de Corpus Christi. Deles são extraídos os cantos menores Panis angelicus (“Pão angélico”) e O salutaris hostia (“Ó Hóstia salutar”).

No primeiro, apresenta-se uma verdade, também questionada hoje por teólogos modernos: a de que a celebração da Eucaristia está reservada somente aos sacerdotes, e a mais ninguém: Sic sacrificium istud instituit, cuius officium committi voluit solis presbyteris, quibus sic congruit, ut sumant, et dent ceteris (lit., “Assim este sacrifício instituiu, cujo ofício só aos presbíteros quis reservar, aos quais compete tomá-lo e dá-lo aos demais; na tradução litúrgica brasileira, o solis desaparece: “Instituído estava o sacrifício, que aos seus ministros Cristo confiou. Devem tomá-lo e dá-lo aos seus irmãos, seguindo assim as ordens do Senhor”).

No segundo canto, brilha um dos mais belos versos de todas as composições do Aquinate: O res mirabilis: manducat Dominum pauper, servus et humilis (lit., “Ó coisa admirável: come ao Senhor o pobre, o servo e o humilde”; na tradução litúrgica brasileira, “Oh maravilha: a carne do Senhor é dada a pobres, frágeis criaturas”.

Todos os cantos se encerram com súplicas escatológicas: no Adoro te devote, por exemplo, o fiel que canta ao Santíssimo Sacramento pede a Deus a graça de contemplá-lo um dia face a face, no Céu: Jesu, quem velátum nunc aspício, oro fiat illud quod tam sítio; ut te reveláta cernens fácie, visu sim beátus tuae glóriae (lit., “Ó Jesus, a quem velado agora vejo, peço venha logo aquilo que tanto desejo: que, vendo-te de face desvelada, seja eu feliz com a visão da tua glória”).

É uma pena que o latim encontre tão poucos amantes; que nossas liturgias não usem mais o canto gregoriano; que a teologia de Santo Tomás seja tão desprezada em nossos dias. Resgatar tudo isso, porém, pode ser um ótimo começo para redescobrirmos a grandeza da Santíssima Eucaristia. Não percamos tempo, portanto, e empreguemos não só estes dias, mas toda a nossa vida, na meditação desse precioso mistério.

Notas

  1. Também sobre esse assunto, pontifica Gregory DiPippo: “As oitavas são para a contemplação de mistérios que são grandes demais para um dia só, e é certamente verdadeiro que repetita juvant (‘as coisas repetidas agradam’), um provérbio que o rito romano, com seu conservadorismo habitual, historicamente levou muito ao coração.”
  2. Também vale a pena notar que, no rito antigo, a festa de Corpus Christi se limitava a celebrar o Corpo do Senhor; no dia 1.º de julho, havia uma festa de I classe (o equivalente às solenidades de hoje) reservada só ao Preciosíssimo Sangue de Cristo. Infelizmente, a reforma de Paulo VI aboliu essa celebração, que está restrita agora ao âmbito das Missas votivas.
  3. Concílio de Trento, Doutrina e cânones sobre a comunhão sob as duas espécies e a comunhão das crianças, 16 jul. 1562, s. XXI, c. 3 (DH 1729).

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