São João Crisóstomo, descendente de família distinta, nasceu no ano 344, em Antioquia, na Síria. Seu pai, de nome Segundo, comandante das tropas imperiais no Oriente, morreu cedo, deixando a educação do filho aos cuidados de sua excelente esposa, Antusa. Mestres de fama mundial como Libânio e Andragácio introduziram o talentoso menino nos arcanos da ciência, e Diodoro de Tarso foi seu instrutor em matéria de religião. O Bispo Melécio batizou-o em 369, conferindo-lhe na mesma ocasião as Ordens menores. Já neste tempo, Crisóstomo manifestou grande inclinação para a vida de asceta e, não fosse a resistência enérgica de sua mãe, teria se associado aos eremitas do deserto.

Quando em 373, sendo já bastante conhecido seu talento e santidade, o povo exigia sua elevação à dignidade episcopal, João fugiu para junto de um monge, em cuja companhia viveu quatro anos, e depois para uma gruta, onde ficou dois anos, dedicando-se exclusivamente às práticas da vida religiosa, com suas austeridades, e aos estudos dos Livros Sagrados. Como sua saúde se abalou com a rudeza da vida no deserto, voltou para Antioquia, onde se ordenou em 386 e logo desenvolveu uma intensa atividade como escritor e orador sacro.

São João Crisóstomo na colunata da Praça de São Pedro, no Vaticano.

Seu regresso a Antioquia coincidiu com uma grave revolta que houve contra o imperador por causa de impostos. O povo destruiu estátuas do imperador, de seu irmão, de dois de seus filhos e da falecida Imperatriz Flacila, deixando-se arrastar para outros atos de vandalismo. Temia-se uma terrível represália por parte do Imperador Teodósio I, cujo gênio irascível era bastante conhecido. O Bispo Flaviano dirigiu-se até Constantinopla para aplacar a ira do monarca. 

Em Antioquia, reinava o pavor. Muitas famílias haviam fugido, os membros do senado estavam na prisão e o povo tremia na expectativa de medidas ainda mais rigorosas. Foi a época em que a arte retórica de Crisóstomo celebrou seus mais belos triunfos. Dia após dia, as multidões se reuniam, desesperadas, ao redor de seu púlpito, ávidas por seus consoladores ensinamentos. Sua palavra sugestiva conteve as massas e as levava para onde quisesse. O entusiasmo de seus ouvintes chegou ao auge quando receberam a notícia do perdão e anistia que o imperador concedera à cidade, em atenção ao pedido do bispo e à petição que o mesmo tinha apresentado em nome de Crisóstomo e da população arrependida.

Patriarcado de Constantinopla

A fama da grande eloquência de Crisóstomo tinha se espalhado por todo o Oriente e, quando em 397 morreu o patriarca de Constantinopla, Nectário, o Imperador Arcádio, filho de Teodósio, chamou João para ocupar o seu lugar. Foi necessária toda a habilidade e prudência da parte do imperador para conseguir o consentimento de seu candidato. Sua nomeação para Constantinopla causou grande descontentamento em Alexandria, cujo Patriarca Teófilo levantou enérgico protesto contra a decisão imperial. Mesmo assim, este impôs as mãos sobre o novo patriarca.

Da vida simples e pacata de Antioquia, viu-se João transportado para a cidade da riqueza e do luxo, a grande metrópole, a sede da alta política, com suas intrigas e paixões: Constantinopla, a rainha do Oriente, que com seus palácios magníficos e igrejas majestosas dominava dois continentes. 

Ícone retratando São João Crisóstomo.

Acolhido com simpatia pelo clero, pela aristocracia e por toda a população, antes de tomar efetivamente as rédeas do governo de sua diocese, Crisóstomo procurou conhecer bem o terreno em que pisava. Em condições tão diferentes das de Antioquia, diferente se lhe afigurou a sua nova atividade. O clero de Constantinopla era, em sua maioria, pouco compenetrado da sublimidade de sua missão. Ambicioso, avarento e político, pouco tinha conservado o espírito de Cristo, que é o de humildade, caridade e sacrifício. Ante tais circunstâncias, Crisóstomo compreendeu que sua atividade não mais se limitaria à pregação da palavra de Deus, mas haveria de encetar a obra da reforma em base larga, e inevitável seria a luta e talvez a perseguição.

Fiel ao seu costume, pregava suas homilias dominicais e explicava a Sagrada Escritura. A majestosa Hagia Sophia, aquele grandioso monumento da fé católica em Constantinopla, enchia-se de fiéis de todas as classes para ouvir a palavra arrebatadora e apostólica do novo antístite.

Mais importante, penosa e desagradável se lhe impunha a obra da reforma — que começou em casa. Seu antecessor Nectário, de espírito pouco evangélico, tinha feito do palácio episcopal um reduto do luxo, com todas as suas futilidades e comodidades. João Crisóstomo restabeleceu a vida evangélica, com toda decência e simplicidade. O segundo passo na reforma interessou à vida do clero e das religiosas, as quais, em grande parte, conviviam com os sacerdotes, o que mereceu a crítica do povo e a censura e proibição do patriarca. 

O zeloso pastor verberou outrossim os excessos da moda, principalmente o luto “chique” das viúvas e procurou implantar no povo a simplicidade dos costumes e o espírito da fé. As obras de caridade, a administração dos bens eclesiásticos, a instrução do clero na zona rural, o combate aos arianos residentes na cidade e enfileirados no exército: a todas estas coisas muito importantes o patriarca dedicou por completo as suas energias. Tantas reformas criaram-lhe muita inimizade, mormente entre o clero. Era inevitável o choque.

O primeiro lhe veio da parte de um grande protegido do Imperador Arcádio: o eunuco Eutrópio. Este, na sua sede insaciável de ouro, para apoderar-se de suas vítimas, tinha ab-rogado o direito de asilo. Crisóstomo protestou contra essa arbitrariedade, tendo pouco tempo depois a grande satisfação de ver o mesmo Eutrópio invocar em seu favor este direito, quando viu sua vida em perigo durante uma revolta militar.

Conflitos com a imperatriz

O segundo inimigo com quem Crisóstomo teve de terçar armas foi a própria Imperatriz Eudóxia, que passou a mandar no imperador após o afastamento de Eutrópio. De um despotismo intolerável, era Eudóxia ainda muito avarenta e, nesta paixão que a dominava, cometeu injustiças clamorosas. 

Todos conheciam o modo de pensar de João Crisóstomo. Como não faltassem elementos vis, cujo maior interesse era semear a cizânia e incitar os espíritos um contra o outro, puseram no ouvido da imperatriz muitas coisas que a inimistaram contra o patriarca. Disseram-lhe que, numa pregação contra as modas escandalosas, João Crisóstomo tinha se referido ao mau exemplo de Eudóxia; e que noutra ocasião a apelidara de Jezabel para apostrofar sua crueldade e ambição. 

“São João Crisóstomo e a Imperatriz Eudóxia”, por Jean-Paul Laurens.

As relações entre o patriarca e a família imperial, e Eudóxia em particular, não eram nada menos que cordiais. O rompimento se realizou, porém, quando João Crisóstomo deu asilo (aliás, com a necessária cautela) a monges que o Patriarca Teófilo de Alexandria expulsara de sua diocese por suspeitar de sua ortodoxia. Eudóxia conseguiu de Arcádio que convocasse um sínodo em Constantinopla, perante o qual Teófilo devia justificar as medidas tomadas contra os monges em questão. Às ocultas, porém, mandou chamar Teófilo, para que viesse rapidamente e declarasse vacante a sé patriarcal de Constantinopla.

Teófilo chegou à capital na companhia de vários bispos, desafetos de João Crisóstomo, não porém como acusado, mas como acusador e juiz. A assembleia se realizou em Calcedônia, estando presentes 36 bispos. João Crisóstomo, sendo citado perante aquele tribunal, exigiu a exclusão de 4 bispos, notadamente inimigos seus. O sínodo reconheceu nesta exigência uma insubordinação por parte do acusado e declarou-o deposto de sua dignidade patriarcal. Todo o processo nem de leve tocou na questão dos monges expulsos de Alexandria, tratando tão somente das supostas ofensas de João Crisóstomo ao imperador e à imperatriz. O santo não se opôs à injustiça e entregou-se ao agente executivo que o devia conduzir ao exílio. No caminho ao Bósforo o povo lhe fez delirantes manifestações, com o que sua saída da capital tomou o aspecto de um triunfo extraordinário. 

Na noite que seguiu a sua partida, a população de Constantinopla foi atemorizada por um forte terremoto. A própria imperatriz, fortemente impressionada com o fenômeno, pediu ao imperador a revogação do edito contra João Crisóstomo. A atitude do povo contra o imperador foi tão ameaçadora, que o santo pôde voltar sem mesmo esperar uma nova determinação dos bispos.

A paz era, no entanto, de curta duração. No mesmo ano inaugurou-se perto da igreja um monumento com uma estátua de Eudóxia. Na ocasião, foi tão grande o ajuntamento do povo, que provocou desordens e impossibilitou a celebração dos atos litúrgicos no templo. O patriarca pediu providências ao prefeito, reclamando contra os abusos que se praticavam. A reclamação foi interpretada maliciosamente, como se o patriarca tivesse se declarado contra a existência do monumento. Mal Eudóxia tomou conhecimento disto, dirigiu-se de novo a Teófilo, pedindo-lhe a intervenção. Este, dispensando triunfos pessoais em Constantinopla, limitou-se a citar as determinações ainda em vigor do sínodo realizado em Calcedônia. Embora o sínodo não tivesse valor algum, o imperador privou o patriarca do uso de ordens e mandou fechar o palácio episcopal.

Mesmo assim, São João Crisóstomo entrou na catedral pela Páscoa, para admitir ao Batismo os catecúmenos que ele mesmo havia preparado. A força armada penetrou no templo e dispersou a multidão dos fiéis. Chegou o dia de Pentecostes e, com ele, o decreto imperial que condenava o patriarca novamente ao exílio. Despedindo-se de seus fiéis e dedicados amigos, o santo abandonou em segredo a capital, de modo a evitar um segundo levante entre o povo. Desta vez, sua saída de Constantinopla foi definitiva.

Desterro e morte no exílio

Escoltado por soldados da força pública, começou João Crisóstomo sua viagem ao exílio sem saber para onde o levariam. Algum tempo ficou em Niceia, onde desenvolveu uma atividade considerável na conversão dos pagãos. Comunicaram-lhe que Cucuso (atual Göksun, na Turquia) era seu destino e para lá havia de dirigir seus passos. A viagem foi penosíssima e chegou a ser um verdadeiro martírio para o pobre exilado. Chegando em Cesareia na Capadócia, os próprios bispos negaram-lhe abrigo e monges fanatizados atacaram sua casa. Não havia quem quisesse recebê-lo, de modo que é verdade aquilo de que João se queixa numa carta, dizendo que sofre mais que os criminosos nas minas e nas prisões. 

Neste ícone bizantino do século X, São João Crisóstomo é retratado a caminho do desterro.

Finalmente, após uma viagem de setenta dias, cheia de peripécias e perigos, chegou a Cucuso. Apesar de ser, na expressão do santo, o “lugar mais ermo do mundo”, sua permanência lá não foi tão desconfortável como se podia supor. Tendo sempre contato com seus amigos em Constantinopla, estes arranjaram-lhe bons amigos e benfeitores também no exílio. Até de Antioquia recebia cartas e mesmo visitas. Mas não lhe faltaram sofrimentos e grandes provações. Sua saúde ressentiu-se muito com o clima áspero e excêntrico. Bandos isáuricos devastaram diversas vezes aquela região e obrigaram os habitantes a refugiar-se nas grutas e montanhas. Fugindo destes inimigos, João Crisóstomo procurou abrigo num castelo fortificado em Arabisso.

Os amigos do santo em Constantinopla passaram por um grande vexame e tornou-se bem crítica sua situação. Logo após a saída de João Crisóstomo, houve dois grandes incêndios, que destruíram a grande catedral, algumas casas contíguas e o palácio do senado. Os inimigos do patriarca culparam os seus partidários de armar estes desastres e abriram forte campanha contra eles. Ambas as partes apelaram para Inocêncio I, cuja sentença desagradou profundamente os adversários de Crisóstomo: o Sumo Pontífice declarou-se em favor deste contra o conciliábulo de Calcedônia, e propôs, para reexaminar o caso, a convocação de um novo sínodo, o qual, porém, não se realizou devido à má vontade de Arcádio.

Vendo as comunicações que havia entre João Crisóstomo, Constantinopla e Antioquia, o imperador ordenou sua transferência para Pitiunte (atual Bichvinta, na Geórgia), na margem oriental do Mar Negro. O organismo do santo, já tão depauperado e extenuado, não mais resistiu às fadigas desta viagem. Quase sem forças, chegou a Comana, onde pernoitou na Igreja de São Basílio. Em sonho ouviu o santo dizer-lhe as seguintes palavras: “Anima-te, irmão. O dia de amanhã nos unirá”. No dia seguinte, 14 de setembro de 407, entrou no descanso eterno. Suas últimas palavras foram: “Louvado seja Deus por tudo. Amém”.

São João Crisóstomo retratado no exílio por Pedro Orrente.

O cisma terminou só com as mortes de Arcádio, Eudóxia e Teófilo. Teodósio II, filho e sucessor de Arcádio, cumpriu a ordem do Papa de restabelecer a honra do patriarca injustamente exilado. A transladação do corpo de São João Crisóstomo para Constantinopla revestiu-se de uma pompa como a cidade não havia visto igual. Suas relíquias se acham hoje em Roma, na Basílica de São Pedro.

Reflexões

I. São João Crisóstomo repreendia e castigava os defeitos, faltas e vícios que reinavam entre os cristãos, embora seu rigor lhe custasse inimizades e perseguições. Era a caridade para com o próximo que o levava a profligar o pecado e implantar bons costumes no seio da família cristã. 

Quem é superior, deve empenhar sua autoridade para que sejam eliminados os pecados, abusos e vícios. O superior que finge não ver seus súditos pecarem, quando facilmente os poderia corrigir, faz-se cúmplice do pecado dos mesmos. O amor ao próximo, o amor próprio, a responsabilidade perante Deus impõe ao superior o dever de fazer com que os seus súditos não se entreguem ao pecado e ao vício.

II. “Eu temo só o pecado”, dizia São João Crisóstomo. Na verdade, outro mal maior do que este não há e não pode haver. Nosso santo preferiu ser perseguido, caluniado e maltratado a cometer um pecado. Só tinha medo, horror, do pecado, que é uma ofensa a Deus. Como é diferente a opinião do mundo! O pecado para ele não é nada; quando muito, apenas uma fraqueza. 

Qual é a qualificação que você dá ao pecado? “O pecado, sem dúvida, é o causador de todos os males. Do pecado vêm as guerras, as epidemias, as perseguições e todos os sofrimentos”, dizia São João Crisóstomo. Como ele, devemos também ter medo só de uma coisa: do pecado.


Referências

  • Extraído, traduzido e adaptado passim de: Pe. João Baptista Lehmann, Na luz perpétua, v. 1, Juiz de Fora: Typ. do “Lar Catholico”, 1928, p. 57ss.

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