Calma!
Ninguém aqui quer convocar uma “cruzada” ou algo do tipo pela retomada de Santa Sofia, a antiga igreja recém-convertida em mesquita (de novo!) pelo sr. Erdogan, presidente da Turquia…
Esse texto é, antes, sobre a Άγια Σοφία (Hagia Sophia) propriamente dita, isto é, a Santa Sabedoria, a quem foi dedicada essa igreja.
Ao contrário do que poderia pensar alguém que lê a expressão pela primeira vez, não, não se trata de um “ente abstrato” e fantasioso, nem de uma mulher chamada Sofia, nem mesmo do dom do Espírito Santo: a basílica da antiga Constantinopla, então capital do Império Bizantino, foi dedicada no dia 25 de dezembro de 537 à Sabedoria que “se fez carne e habitou entre nós”, Jesus Cristo. É o templo cristão por excelência, poderíamos dizer, pois que consagrado não a este ou àquele santo, mas ao Santo dos Santos, por assim dizer, a fonte da própria santidade, a Segunda Pessoa da divina Trindade. Colocando de forma mais simples: estamos falando de um templo antiquíssimo, originalmente dedicado ao Deus verdadeiro.
Foi a Ele que perdemos em primeiríssimo lugar, muito antes de perder um mero templo religioso, por mais significativo que seja o seu valor histórico, artístico e cultural. Sim, nós perdemos a Santa Sabedoria. E isso significa que deixamos de ser sábios, tornamo-nos (com o perdão da palavra) burros, de modo que a palavra da Escritura nunca pareceu tão apropriada quanto à nossa época: Stultorum infinitus est numerus, “O número dos estultos é infinito” (Ecl 1, 15).
Emburrecemos já faz um tempo, e poderíamos trazer muitos fatos para ilustrá-lo. (Os jornais e noticiários estão cheios deles.) Mas resumamos o desastre identificando a sua causa: segundo S. Tomás (cf. STh II-II 15, 3), a cegueira da mente está intimamente associada aos vícios carnais, que são a gula e, ainda mais, a luxúria. Ou seja, é por ter-se rendido desenfreadamente aos prazeres do sexo, chegando a fazer uma “revolução” em maio de 1968, que a humanidade experimenta hoje um anestesiamento geral das consciências. Hipnotizadas, as pessoas se tornaram incapazes de elevar-se acima do que podem ver, tocar, sentir. Em consequência, a sua capacidade de compreender a verdade ficou comprometida. Nunca antes as ideologias floresceram com tanta força e ganharam tanta adesão, graças também aos modernos meios de comunicação. Os homens deixam-se seduzir pela primeira filosofia barata que aparece, estão alienados em relação à completude da realidade que os rodeia.
A própria perda de Santa Sofia (agora, do templo) é interpretada por nossos “especialistas” em termos meramente materialistas: segundo um portal de notícias, “ao mudar o status de museu histórico, o presidente Erdogan distrai atenção de eleitores dos graves efeitos econômicos da pandemia do novo coronavírus”. É o velho vício marxista de sempre: seja qual for a notícia, nossos intelectuais só sabem interpretá-las sob a lente do dinheiro. Na cabeça da elite ateia que detém os meios de comunicação, nada mais há além de jogos políticos de interesses e poder. E é até compreensível que eles pensem assim, porque é mais ou menos isto mesmo: por não haver Deus (na cabeça deles, é claro), todos querem ser deuses. (Eles, inclusive, são os primeiros: basta pensar no sr. Xi Jinping, presidente da China, que tem obrigado famílias cristãs que recebem auxílio do governo a trocar, em suas casas, Jesus por uma imagem ou dele mesmo ou de Mao Tsé-Tung.)
Trata-se de uma deformação da realidade, sim, mas só o enxerga, só o pode enxergar, quem olha para o mundo com os olhos da fé. Mesmo a luz natural da razão, devido ao pecado original, só consegue iluminar um pouco o homem; se ele está dominado pelos vícios, então, sobra bem pouca esperança.
Por isso, a reconstrução da civilização, muito antes da retomada de uma igreja em particular, como Santa Sofia, é obra daqueles que já têm esta, viva e ardente, habitando em seus corações. São os cristãos, os discípulos da Sabedoria encarnada; sem eles, que são o sal da terra e a luz do mundo, não há esperança alguma neste vale de lágrimas.
É evidente que os cristãos não são, por si mesmos, a salvação, mas apenas na medida em que se configuram a Cristo salvador, que é a divina Sabedoria. Por isso, o que nos resta é:
1. Rezar. Por muitos séculos os cristãos cantaram, no hino Adoro te devote, composto por S. Tomás de Aquino, os seguintes versos:
O memoriále mortis Dómini,
Panis vivus, vitam praestans hómini,
Praesta meae menti de te vívere,
Et te illi semper dulce sápere.
“Ó memorial da morte do Senhor,
Pão vivo, que dás vida ao homem,
Dá à minha alma de ti viver
E de ti ter sempre um doce saber.”
O verbo latino sapio, aqui no infinitivo, significa “saborear”, mas também é a palavra donde proveio a nossa “sabedoria”. Ou seja, aquilo que conhecemos através da fé, também precisamos saboreá-lo, e isso é feito através da oração contínua, frequente e perseverante. Precisamos rezar tanto quanto precisamos comer. Sem um trabalho de consideração, meditação, ruminação das verdades divinas, teremos sempre o horizonte limitado, estaremos sempre presos às nossas sensações, àquilo que esse mundo efêmero nos oferece… E, assim, passaremos também nós com as coisas do mundo.
2. Aceitar com alegria os sofrimentos que se nos apresentam. Que devamos conhecer e saborear o memorial da morte do Senhor, sabia-o também o Apóstolo São Paulo:
Também eu, quando fui ter convosco, irmãos, não fui com o prestígio da eloquência nem da sabedoria anunciar-vos o testemunho de Deus. Julguei não dever saber coisa alguma entre vós, senão Jesus Cristo, e Jesus Cristo crucificado (1Cor 2, 1–2).
Esse último acréscimo do Apóstolo, aqui, não é ocioso: é preciso conhecer Cristo, mas Ele crucificado; isto é, o caminho para chegar a Ele nesta vida, o caminho para nos unirmos a Ele, é a cruz, o sofrimento, a provação.
E não é que precisemos sair à procura de cruzes a carregar: as próprias circunstâncias da vida, cuidadosamente ordenadas por Deus, encarregam-se de nos trazer dificuldades muitas vezes suficientes. Talvez seja uma doença que descobrimos, que nos provoca dor, nos desconforta e debilita; talvez seja uma tragédia que se abateu sobre nossa família e que precisamos suportar com coragem; talvez seja a necessidade econômica, que nos priva do básico e quebra o orgulho.
Colocando todas essas coisas na oração, como dissemos acima, vamos saber que Deus está por trás de tudo o que nos acontece; que, como diz o Beato Carlos da Áustria, “estamos nas mãos da divina Providência”e, portanto, “tudo o que nos acontece está bem”; que, de fato, “tudo concorre para o bem dos que amam a Deus” (Rm 8, 28); que só o que nos resta é confiar e saborear o zelo de Deus para conosco, que nos permite o mal para crescermos no bem. Assim, também estaremos testemunhando aos mais próximos como Deus nos governa com santa sabedoria.
3. Ter filhos. Se há uma sabedoria que precisamos resgatar com urgência — e está nas nossas mãos fazê-lo —, é aquela que Deus escreveu no próprio ser do homem e da mulher. Quando eles se unem, naturalmente nascem filhos! Redescobrir essa verdade óbvia, tão óbvia quanto o fato de a grama ser verde, é não só o remédio para os vícios da carne, de que nossa época padece de modo especial, mas também a receita para fortalecer a sociedade e a Igreja. (Os muçulmanos já estão fazendo a sua parte nesse sentido; se seus numerosos filhos seguirem a religião paterna, os átrios de suas mesquitas dificilmente ficarão vazios.)
4. Ensinar a fé. É claro que não basta ter filhos; importa sobretudo educá-los, e fazê-lo bem. O Papa Pio XI, na Encíclica “Casti Connubii” (que completa seu 90.º aniversário em dezembro próximo), ensina que os pais devem ser fecundos não apenas para, segundo a ordem divina, propagar e conservar na terra a família humana, tampouco para “educar quaisquer adoradores do verdadeiro Deus”, mas principalmente para “subministrar filhos à Igreja” e “propiciar concidadãos santos e familiares de Deus” (n. 14). Ou seja, uma vez instruídos pela divina Sabedoria, na vida de oração, na aceitação contínua e perseverante da vontade de Deus em nossas vidas, é preciso que passemos adiante o que recebemos.
Se fizermos esse quádruplo “dever de casa”, retomando em nossas próprias vidas a Santa Sabedoria que perdemos por nosso egoísmo e incredulidade, quem sabe em alguns anos não possamos retomar, também, o templo que há tanto tempo nos foi tirado pelos muçulmanos. Sem o primeiro passo, no entanto, qualquer conjectura de “reconquista” não passará de inútil esforço humano.
A frase parecerá clichê, mas é verdadeira: a Santa Sabedoria que por tanto tempo habitou o templo de Constantinopla precisa voltar a habitar, primeiro, em nossos corações e nos de nossas famílias. Só poderemos pensar em retomar as igrejas que a Igreja tem perdido, não só na Turquia, mas na Europa inteira, no dia em que nos convencermos de que há um Deus verdadeiro pelo qual vale a pena dar não só uma hora dos nossos domingos, um bocado de dízimo ou uma novena em tempos de crise… Por Ele vale a pena gastar a nossa vida inteira, transformar os nossos maus hábitos, desfazer-nos de nossos apegos infantis e enfrentar com coragem a aventura desta breve vida.
Hoje, se os cristãos retomassem Santa Sofia, a única coisa que eles conseguiriam fazer seria transformá-la no que ela vinha sendo desde 1930: um museu, um “patrimônio histórico”. E nada mais. E também isso é de se lamentar. Não tanto quanto nos lamentamos, agora, pela islamização de Santa Sofia, é claro. Mas se o máximo que o Ocidente pode oferecer ao Deus verdadeiro é um museu; ou melhor, se o ente máximo de que devemos esperar algum reconhecimento é a UNESCO (que considerou Santa Sofia um “patrimônio histórico” da humanidade); se a máxima expressão da religiosidade moderna é um templo cristão dessacralizado, é porque já há muito perdemos a fé de nossos pais, que construíram a Basílica de Santa Sofia.
E, sem a fé deles, de nada adianta ter igreja alguma. Só nos restarão ruínas e devastação.
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