A cristandade teve uma série de revoluções, e em cada uma delas o cristianismo morreu. O cristianismo morreu muitas vezes, mas ressuscitou novamente; pois tinha um Deus que sabia o caminho para sair do túmulo (G. K. Chesterton, O Homem Eterno).

Há dois tipos de progressistas: os que acham que as coisas estão melhorando cada vez mais e os que acham que estão piorando cada vez mais.

“Alguns escritores populares nos dizem perpetuamente que o mundo está sempre a melhorar”, escreveu Chesterton; “outros, menos populares, nos dizem que faz um tempo que ele tem piorado de forma contínua. Pessoalmente, não consigo entender ninguém que diga que o mundo tornou-se qualquer coisa de modo contínuo” [i]. A realidade não está no vir a ser, não importa se queremos percebê-la como algo que melhora ou que piora; pelo contrário, ela simplesmente é. As leis que governam a realidade são invariáveis e imutáveis. O pecado original é parte integrada do cosmos tanto quanto as leis da termodinâmica [ii]; consequentemente, não pode ser removida nem reparada por nenhum progresso humano. Não conseguimos progredir além daquilo que somos: seres caídos feitos à imagem de Deus, e nenhum progresso tecnológico ou inovação ideológica mudará este fato [iii]. Plus ça change, plus c’est la même chose! Quanto mais as coisas mudam, mais continuam as mesmas.

Não obstante, as evidências que se apresentam aos nossos próprios olhos não sugerem o oposto? Não conseguimos ver que as coisas estão se desmantelando? A decadência não está estabelecida? Não há nada verdadeiramente deteriorado no mundo moderno? 

Sem dúvida alguma. As evidências falam por si. De olhos escancarados para a degradação que vemos à nossa volta, sabemos que as coisas estão deterioradas no mundo moderno. Quem consegue negar isso? No entanto, há algo realmente deteriorado no mundo moderno, porque há algo realmente deteriorado no coração do homem; ou, falando em linguagem shakespeariana e, portanto, perene, há algo podre no estado da Dinamarca porque há algo podre no coração do homem. Este “algo podre” é o que os teólogos chamam de pecado, cujo pai é aquela autodivinização narcisista a que os teólogos chamam orgulho. É o orgulho que apodrece o coração do homem e a sua relação com o próximo.

Esta realidade miserável e sórdida se manifesta em todas as gerações da história. Os cananeus sacrificavam os próprios filhos a deuses sanguinários. Herodes massacrou inocentes. César entregava a si mesmo o sangue dos mártires. Esse antigo massacre é o mesmo de hoje. Do genocídio armênio ao genocício ruandês, matamos uns aos outros em nome da raça. Das guilhotinas da Revolução Francesa aos gulags da revolução comunista, matamos uns aos outros em nome da classe. E assim como os cananeus, sacrificamos nossos próprios filhos, massacrando-os para deuses lascivos em nome do “planejamento familiar” [iv]. Não, nada muda. Plus ça change, plus c’est la même chose.

Contudo, há algo que muda toda essa imutabilidade. Outrora aconteceu algo que mudou e muda tudo. O próprio Deus se tornou um conosco na pessoa de Jesus Cristo. Foi igual a nós em todas as coisas, exceto no pecado. Por não ter sido afetado pela podridão interior que corrompe todas coisas, Ele foi e é uma luz nas trevas. Mas as trevas não o compreenderam. Na verdade, elas odeiam tudo o que lhe diz respeito. Odeiam-no por causa de seu amor, inseparável da cruz. Desprezam sua bondade. Negam sua verdade. São cegas para a sua beleza. Recusam seu caminho. Rejeitam sua vida, preferindo a morte. Crucificam-no. Massacram o Inocente da mesma forma que massacram milhões de inocentes.

Há no entanto uma diferença crucial entre o massacre do Inocente e o massacre dos milhões de outras vítimas inocentes da cultura da morte. Essa diferença crucial, o cerne da questão, é a própria cruz [v]. A mesma cruz na qual o Inocente é sacrificado torna-se o altar verdadeiro no qual somos salvos da morte pela própria Vítima sacrificial. O Inocente nos limpa com o próprio sangue imaculado. Mas o que isso significa? Evidentemente, não nos poupa do sofrimento. Não interrompe o fluxo das vítimas inocentes, mortas de forma implacável, século após século sangrento, pelas forças do orgulho. Não poupa nenhum de nós da morte física. O que isso significa exatamente?

Gravura da Ressurreição por Philip Galle.

Significa que a via dolorosa, o caminho das tristezas que levou Cristo ao Gólgota, torna-se o caminho para a Ressurreição, para a Vida que supera para sempre o poder da morte e das trevas. Aceitar nossas próprias cruzes com a ajuda dele, para o seguir no caminho do sofrimento, torna-se o meio de superar a causa do sofrimento: os nossos pecados e os do próximo. Vemos isso no testemunho dos santos e mártires, mas também no testemunho vivo da história humana. Como diz Chesterton: “A cristandade teve uma série de revoluções, e em cada uma delas o cristianismo morreu”. Os poderes das trevas mataram o cristianismo na Igreja primitiva, massacrando sucessivos papas a partir de São Pedro por quase trezentos anos. Submeteram os mártires à espada e alimentaram com eles os leões. Diante da perseguição, a Igreja subterrânea, escondida nas catacumbas, ressurgiu dos mortos ao fim e ao cabo, vencendo o poder do Império Romano. 

O que foi verdade a respeito da Igreja primitiva é verdade a respeito da Igreja nos tempos modernos. O cristianismo foi morto pela Revolução Francesa, abatido pelas guilhotinas do Reino do Terror. Ressurgiu dos mortos, dando origem no século seguinte a um renascimento católico na cultura francesa. O cristianismo foi morto pela Revolução Russa e pelos setenta anos de ateísmo forçado decorrentes dela. Ressurgiu dos mortos e, nos últimos trinta anos, tem testemunhado uma ressurreição milagrosa da igreja ortodoxa [vi]. Foi morto pela revolução comunista na China, na medida em que realmente já esteve vivo no Oriente, aparentemente abandonado por Cristo. Hoje a Igreja na China é talvez a parte da cristandade que cresce mais rápido. 

Em números brutos, mais cristãos foram perseguidos e mortos pelos poderes das trevas no século passado do que em todos os séculos anteriores juntos. No entanto, também em números brutos, hoje há mais cristãos no mundo do que nunca. A Igreja não está morta, nem jamais morrerá, embora aparente estar sempre morrendo e, muitas vezes, já tenha estado aparentemente morta. Fazendo eco às palavras de Mark Twain, os relatos de sua morte são em grande medida exagerados. E reiterando as palavras de Chesterton: ela morreu muitas vezes, mas ressuscitou novamente; pois tem um Deus, seu Esposo celeste, que sabe o caminho para sair do túmulo.

Notas

  1. G. K. Chesterton, Illustrated London News, April 27, 1929. 
  2. A comparação deve ser bem entendida: as leis físicas (como as da termodinâmica) decorrem da natureza mesma dos entes naturais e são, portanto, necessárias; o pecado original, por outra parte, é uma condição decorrente da liberdade do primeiro pai e, por conseguinte, poderia não ter-se dado. Seja como for, ambas são parte integrante da realidade, cada uma a seu modo. (N.T.)
  3. Também aqui se faz necessária uma explicação: na ordem do tempo, não somos “seres caídos” feitos à imagem de Deus, mas seres feitos à imagem de Deus que caíram. O estado pós-lapsário (i.e., depois do pecado original) não é conatural e necessário ao homem, mas uma condição punitiva na atual economia de elevação do gênero humano à ordem sobrenatural. (N.T.)
  4. No original inglês, o autor usa a expressão planned parenthood (literalmente, “paternidade planejada”), fazendo um trocadilho com o nome da grande organização que provê abortos nos EUA. (N.T.)
  5. The very crux of the matter, is the crux itself. Também aqui, no original, o autor brinca com as palavras: crux, em inglês, é sinônimo de “ponto ou aspecto central ou essencial” de algo; em latim, é “cruz”, o madeiro do qual pendeu Nosso Senhor. (N.T.)
  6. Com isso, não nos parece ser intenção do autor afirmar que a igreja cismática russa seja parte da Igreja Católica, mas simplesmente aduzir um exemplo histórico mais, ao lado da sobrevivência do catolicismo na França e na China, de que os poderes do mundo jamais poderão suprimir de todo o nome de Cristo, mesmo onde a fé não é pregada em seu integridade. Afinal, se os católicos forem calados, Deus é poderoso para fazer clamar as mesmas pedras (cf. Lc 19, 40). (N.T.)

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