E se tivéssemos permanente consciência de que Deus está a nos olhar o tempo todo, aonde quer que vamos? 

É com o coração exultante que o autor dos Salmos meditava sobre esse mistério. Todo o Salmo 138, por exemplo — “Senhor, vós me sondais e conheceis, sabeis quando me sento ou me levanto…” —, não passa de um grande louvor à onisciência e onipresença divinas. O porquê de louvá-las, é o próprio salmista quem no-lo apresenta, ao finalizar com estes versos: “Senhor, sondai-me, conhecei meu coração, examinai-me e provai meus pensamentos! Vede bem se não estou no mau caminho, e conduzi-me no caminho para a vida!” (v. 23-24). Noutro lugar o salmista dirá, já não em forma de súplica, mas em tom declaratório: “Tenho sempre o Senhor ante meus olhos, pois se o tenho ao meu lado não vacilo!” (Sl 15, 8). 

Ou seja, considerar a presença de Deus é um chamado constante à fidelidade, à retidão de vida, à vigilância. Se Ele está sempre comigo, se em lugar algum posso me ocultar de seu espírito, se não há lugar para onde fugir de sua face (cf. Sl 138, 7), então devo ser sempre fiel, preocupar-me em agir retamente o tempo todo, estar pronto para cumprir com sua vontade a todo momento… Sem “descanso”.

Mas entenda-se bem: qual o conceito que temos de descanso? É o de quem chega exausto a casa após um dia inteiro de trabalho e pode, até que enfim, meter-se uma bermuda, enfiar o chinelo de dedo e despejar-se tranquilo na poltrona. Durante todo o dia, o bom trabalhador foi solicitado, cobrado, exigido… À noite, porém, ele quer descansar, alheio a tudo e a todos, sem que lhe solicitem, cobrem ou exijam nada.

Agora, veja o pai de família se pode comportar-se assim, tendo em casa uma esposa, tão ou mais cansada do que ele, para ajudar e um punhado de filhos, repletos de energia, para educar, sem falar de tantas coisas da casa que inevitavelmente quebrarão e ele terá de consertar. Não, não há descanso para o pai de família, não pelo menos se ele quiser servir bem os de sua casa… Pois bem, se tantos agem dessa forma movidos por um amor meramente humano, por que deveriam ser menos generosos os cristãos, os servos do Deus vivo, que trazem dentro de si (ou deveriam trazer), ardente, intensa, inextinguível, cada vez maior, a chama da caridade divina?

E, no entanto, aonde têm ido os nossos corações? Por que (des)caminhos têm errado? Para onde vão dirigidos os nossos pensamentos? Com que estão sendo gastas nossas energias?

Comecemos pela tortura que pode representar para muitos a ideia de um Deus onisciente e onipresente, que observa todos os nossos passos. Diante dessa verdade, o que muitos gostariam de fazer? Cantar um salmo ou um hino de louvor? 

Para o homem justo do Antigo Testamento, até que sim; para o homem redimido por Cristo, curado e libertado no Sangue de Nosso Senhor, pode até ser. Para Adão, porém, e para a maior parte da humanidade que ainda ignora o Evangelho, a atitude mais provável seria esconder-se atrás de um arbusto ou, pior, rebelar-se abertamente contra o Criador. Em sua malícia, em seu desejo de pecar, o que muitos gostariam de fazer mesmo (e tantos outros efetivamente fazem) é proclamar que Deus não existe, só para viverem a seu modo e “sem consequências”.

A esse respeito, o Pe. Reginald Garrigou-Lagrange dá-nos conta de que 

Uma serva de Deus ouviu um dia estas palavras: “Eu vos dei uma religião de vida, e vós a fizestes uma religião de fórmulas. Eu sou um criador de felicidade e vós fizestes de mim um tirano, não vendo nos meus preceitos senão aquilo que vos desagrada” [1]. 

Ou seja, o que acontece a muitos de nós é nos servirmos do parâmetro errado. Ao invés de pedirmos com o salmista: “Examinai-me, Senhor, provai-me os pensamentos! Vede se não estou no mau caminho!”, voltamos o olhar primeiro à nossa vontade e, a partir disso, julgamos todo o resto. Ao invés de nos voltarmos humildemente para Deus, conformando-nos a Ele, esperamos o contrário: que Ele mude os seus decretos para nos agradar. Não estamos buscando a Deus, em suma, mas a nós mesmos

Poderíamos entrar aqui em considerações intermináveis a respeito de como não estamos dispostos a renunciar a nossos gostos ou opiniões para aceitarmos o ensinamento moral da Igreja em tantos temas… Mas aproveitemos o mês de novembro para falar dos novíssimos e resumir toda a questão. Quando formos julgados, no último dia, a quem prestaremos contas, afinal: a Deus ou a nós mesmos? O juízo será com base nas leis de Deus ou nas regras que nós mesmos criamos para nos livrar dele e da difícil tarefa de nossa santificação? 

Ora, se o tribunal é de Deus, se é Ele o parâmetro com que seremos julgados na eternidade, por que não começar já agora a se colocar debaixo desse olhar e clamar: “Examinai-me, Senhor! Julgai meus pensamentos! Vede se não estou no mau caminho hoje, porque naquele dia, Senhor, no dia de minha morte, pode ser tarde demais”?

Aqui podemos compreender melhor o que significa estar na presença de Deus. Trata-se de reproduzir, a todo instante, nosso julgamento particular, pedindo a Ele perdão pelas falhas em que caímos cotidianamente e, ao mesmo tempo, luz para que sejamos preservados dos pecados futuros. Significa abaixar constantemente a cabeça e reconhecer: não sou eu quem faz as leis, não sou eu quem determina o que é certo e o que é errado, não sou eu quem define o bem e o mal, não serei eu a julgar-me no último dia. Há um Outro a quem eu devo prestar contas. 

Se tivermos sempre o Senhor deste modo ante os nossos olhos, não só nos mostrando o caminho correto, mas dando-nos a graça para percorrê-lo, como havemos de vacilar? Se nos lembrarmos constantemente do Rei de tremenda majestade, Rex tremendae majestatis, que nos julgará, como não havemos de excitar em nós o temor de Deus, que é o princípio da sabedoria (cf. Pr 9, 10)? 

E se é verdade, ainda, que “no dia do juízo os homens prestarão contas de toda palavra vã que tiverem proferido” (Mt 12, 34), como não havemos de pensar que o menor de nossos atos, mesmo o mais insignificante deles, carrega consigo todo o peso da eternidade?

Referências

  1. Pe. Reginald Garrigou-Lagrange, O homem e a eternidade: a vida eterna e a profundidade da alma. Trad. port. de José Eduardo Câmara de Barros Carneiro. Campinas: Ecclesiae, 2018, p. 13.

O que achou desse conteúdo?

0
0
Mais recentes
Mais antigos