Juxta est dies Domini magnus; juxta est, et velox nimis; vox diei Domini amara, tribulabitur ibi fortis. Dies irae dies illa, dies tribulationis et angustiæ, dies calamitatis et miseriæ, dies tenebrarum et caliginis, dies nebulæ et turbinis, dies tubæ et clangoris super civitates munitas, et super angulos excelsos. — Eis que se aproxima o grande dia do Senhor! Ele se aproxima rapidamente. Terrível é o ruído que faz o dia do Senhor; o mais forte soltará gritos de amargura nesse dia. Esse dia será um dia de ira, dia de angústia e de aflição, dia de ruína e de devastação; dia de trevas e escuridão, dia de nuvens e de névoas espessas, dia de trombeta e de alarme, contra as cidades fortes e as torres elevadas (Sf 1, 14-16).
Da nobre linguagem dessa passagem da Vulgata surgiram o Responsório Libera me, Domine, de morte æterna, os hinos abecedários Apparebit repentina dies magna Domini (de origem primitiva) e Altus prosator (de São Columba), bem como muitos outros hinos posteriores e de qualidade diversa [i].
Porém, o mais famoso dos seus derivados é o Dies iræ, cuja linguagem, métrica e música se conjugam para torná-lo o mais majestoso de todos os hinos.
Para além de recorrerem a Sofonias, os poetas recorrem a outras partes do Antigo Testamento, à Segunda Carta de São Pedro e, sobretudo, aos Evangelhos. Deste modo, o autor do Apparebit repentina dies magna Domini recorre tanto a São Mateus como a Sofonias, embora a noção de imprevisibilidade do último dia se encontre também no profeta: consummationem cum festinatione faciet cunctis habitantibus terræ — “aniquilará de repente toda a população da terra” (Sf 1, 18).
Em primeiro lugar, o autor do Dies iræ se apoiou nessas passagens da Escritura, mas parece ter recorrido também a alguns poemas já existentes sobre o mesmo tema, pois as semelhanças verbais são, por vezes, muito notáveis. A unidade que o escritor alcança em seu poema pode ser explicada, por um lado, pela simplicidade e nobreza de sua linguagem e, por outro, pela nota pessoal que é a marca da tradição franciscana (nota que aparece também no Stabat Mater, de Jacopone de Todi) [ii]. Portanto, parece que devemos procurar o autor do Dies iræ entre os franciscanos ou entre aqueles que têm mais contato com a tradição deles; e até agora a única pessoa sugerida que preenche esses requisitos é Tomás de Celano (1200–1260) — o qual foi, além de tudo, biógrafo de São Francisco de Assis [iii].
Até a reforma litúrgica que se seguiu ao Concílio Vaticano II, o Dies iræ era usado como Sequência nas Missas de Réquiem, razão pela qual foi adaptado com o acréscimo dos últimos seis versos:
[1] Dies iræ, dies illa | 1. Dia de ira, aquele dia, |
[2] Quantus tremor est futurus, | 2. Que temor será causado, |
[3] Tuba mirum spargens sonum | 3. Correrão todos ao trono |
[4] Mors stupebit et natura, | 4. Morte e mundo se espantam, |
[5] Liber scriptus proferetur | 5. Vai um livro ser trazido, |
[6] Judex ergo cum sedebit, | 6. Quando o Cristo se sentar, |
[7] Quid sum miser tunc dicturus? | 7. Eu, tão pobre, que farei? |
[8] Rex tremendæ majestatis, | 8. Rei tremendo em majestade, |
[9] Recordare, Jesu pie, | 9. Recordai, ó bom Jesus, |
[10] Quærens me sedisti lassus; | 10. A buscar-me, vos cansastes, |
[11] Juste judex ultionis, | 11. Juiz justo no castigo, |
[12] Ingemisco tamquam reus, | 12. Pela culpa, se enrubesce |
[13] Qui Mariam absolvisti | 13. A Maria perdoando |
[14] Preces meæ non sunt dignæ, | 14. Meu pedido não é digno, |
[15] Inter oves locum præsta | 15. No rebanho dai-me abrigo, |
[16] Confutatis maledictis, | 16. Quando forem os malditos |
[17] Oro supplex et acclinis, | 17. Dum espírito contrito |
[18] Lacrimosa dies illa | 18. Lacrimoso aquele dia, |
Huic ergo parce Deus. | Libertai-o, Deus do céu! |
Alguns lamentavam a sua inclusão no Réquiem, alegando que a tônica da Missa era a paz, a alegria e a luz, enquanto a sequência dava uma nota dissonante de tristeza e medo. Outros consideravam-na apropriada: o hino tempera o tema da morte e do juízo com belas orações e uma expressão de grande confiança na misericórdia de Deus.
Seja como for, o Dies iræ não está mais presente na Missa dos defuntos, nem em Missa alguma.
Com exceção dos últimos versos, o poema é uma pia meditatio sobre a morte e o juízo. Segundo a opinião comum, foi utilizado pela primeira vez na liturgia do 1.º Domingo do Advento, embora já se tenha sugerido que era um tropo do Responsório Libera me, Domine. Há certamente algum parentesco musical entre os dois. É muito apropriado para o Advento ou mesmo no final do ano litúrgico, quando a Igreja está pensando também na vinda de Nosso Senhor como juiz (cf. estrofe 12). (Não sem razão tornou-se uma opção ad libitum de hino para a 34.ª e última semana do Tempo Comum, na atual Liturgia das Horas.)
O esquema do Dies iræ é muito simples. Os seis primeiros versos descrevem o juízo, com o poeta entrando na cena do juízo no sétimo verso e perguntando quem o poderá ajudar naquele momento. Como ninguém pode fazê-lo, uma vez que todos serão julgados, é agora o momento de nos prepararmos para esse dia. Ele reza a Nosso Senhor, que aparecerá então como o Rex tremendæ majestatis, mas que é agora uma fons pietatis para a humanidade. A primeira razão para a misericórdia é a Encarnação — quod sum causa tuæ viæ — associada aos trabalhos e à morte de Cristo — tantus labor non sit cassus. A outra é o arrependimento do pecador — Ingemisco tamquam reus… mihi quoque spem dedisti. Os versos Juste judex e Preces meæ são as orações que encerram cada uma das seções. Graças à misericórdia de Deus para com ele, o poeta espera unir-se a Deus quando o julgamento terminar (estrofes 15 e 16). O último verso (da estrofe 17) é o clamor de humilde esperança que resume todo o hino — Gere curam mei finis.
Seguem, abaixo, um vídeo do Padre Paulo Ricardo comentando o Dies iræ de Mozart, e observações adicionais sobre alguns versos de seu texto:
[1] Dies illa: tais palavras são, para o profeta Sofonias (1, 15) e para o poeta, o verdadeiro assunto, estando elas em aposição no poema. Solvet: “Todavia, como um ladrão, virá o dia do Senhor, no qual passarão os céus com grande estrondo, e os elementos com o calor se dissolverão (solventur) e a terra como as obras que há nela será consumida” (2Pd 3, 10). Cf. também o versículo 12, segundo o qual naquele dia “os céus, ardendo, se desfarão (solventur)”. Favilla, æ: cinza quente, cinza, brasa. David é tomado como representante da Revelação, em ambos os Testamentos. Embora a primeira referência seja provavelmente a Sofonias, a expressão solvet in favilla é tão reminiscente de 2Pd 3, 10 que alguns (de modo bem desnecessário) sugeriram a troca de Teste David por Teste Petro. Sibylla representa a religião natural. Uma repulsa por colocar a Sibila juntamente com Davi levou à linha alternativa: Crucis expandens vexilla — “Expandindo o estandarte da Cruz”, em referência a Mt 24, 30: “Então aparecerá o sinal do Filho do homem no céu”. Todavia, tal linha está em claro descompasso com o restante do poema.
[2] Tremor: referência a Lc 21, 26: “As virtudes dos céus se abalarão (movebuntur)”. Stricte: de modo estrito, minucioso. Discussurus: futuro de discutio, examinar, investigar.
[3] Tuba: referência a Sf 1, 16: “dia de trombeta”; e a Mt 24, 31: “[O Filho do homem] mandará os seus anjos com poderosas trombetas”
[4] Mors stupebit et natura: “O mar deu os mortos que estavam nele, a morte e o Hades deram (também) os mortos que estavam neles, e fez-se juízo de cada um segundo as suas obras” (Ap 20, 13).
[5] Liber: “E vi os mortos, grandes e pequenos, de pé diante do trono. Foram abertos livros; e foi aberto um outro livro, que é o da vida; e foram julgados os mortos pelas coisas que estavam escritas nos livros, segundo as suas obras” (Ap 20, 12). Cf. também Ml 3, 16-18.
[6] Sedebit: provavelmente se deveria ler censebit aqui, futuro de censeo, avaliar, julgar, estimar (os atos dos homens).
[7] Patronum: advogado, conselheiro. O tempo de merecer terá passado, e como serão todos julgados, ninguém estará livre para defender ninguém; e até o justo se verá em dificuldade. Vix: “Se o justo a custo (vix) será salvo, o que acontecerá ao ímpio e ao pecador?” (1Pd 4, 18).
[8] Rex tremendæ majestatis remonta aos seis primeiros versos, enquanto as palavras fons pietatis preparam o restante do poema, sendo imediatamente seguidas de Jesu pie.
[9] Viæ, “via” ou “caminho”. Assim, viajor, viandante, é aquele que percorre uma “via”, isto é, uma viagem ou peregrinação. Referência à Encarnação de Jesus e à sua vida na terra.
[10] Sedisti lassus: referência a Jo 4, 6: “Fatigado da viagem, Jesus sentou-se sobre a borda do poço”. Santo Agostinho comenta: Tibi fatigatus est ab itinere Jesus — “Por causa de ti fatigou-se Jesus do caminho”. Daí dizer o poeta: Quærens me.
[11] Rationis: referência a Mt 12, 36: “Ora eu digo-vos que de qualquer palavra ociosa que tiverem proferido os homens, darão conta (reddent rationem) dela no dia do juízo”. Diem rationis seria, portanto, o “dia do acerto de contas”. Cf. também Rm 14, 12: “Cada um de nós dará conta (rationem) de si a Deus”.
[16] Confutatis: refutados, silenciados. Nenhuma resposta mais será possível aos condenados quando ouvirem: “Todas as vezes que o não fizestes a um destes mais pequeninos, a mim o não fizestes” (Mt 25, 45). A esses maledicti, “malditos”, como os chama o próprio Jesus (v. 41), só restará o “suplício eterno” (v. 46).
[17] Esta oração final retoma o termo fons pietatis, dirigido a Jesus, e o arrependimento do pecador, nas estrofes 12 e 13. Supplex: suplicante; acclinis: inclinado, em completa submissão. Cor… cinis: aparentemente, a ideia é que os desejos maus e pecaminosos do coração são reduzidos ao pó, queimados pela contrição, até que nada reste deles senão cinzas. Cinis faz ecoar, também a palavra favilla, da primeira estrofe.
[18] Ex favilla: As cinzas aparecem de novo, como pó do qual o homem ressuscitará no fim dos tempos, mas também numa referência à primeira estrofe, quando tudo se fará em cinzas.
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