Na forma antiga do rito romano, a Coleta para o 2.º Domingo da Quaresma diz o seguinte:

Deus, qui cónspicis omni nos virtúte destítui: interius exteriusque custódi; ut ab ómnibus adversitátibus muniámur in córpore, et a pravis cogitatiónibus mundémur in mente. Per Dóminum… — Ó Deus, que sabeis sermos nós destituídos de toda virtude, guardai-nos interior e exteriormente, preservando o nosso corpo de toda adversidade e purificando a nossa mente dos maus pensamentos. Por Nosso Senhor Jesus Cristo… [i]

O substantivo virtus não é fácil de traduzir. Embora possa significar virtude moral, tal como o empregamos aqui, nas orações do rito romano ele costuma se referir ao poder sobrenatural de Deus, especialmente ao de tornar o culto humano um ato divino. Aplicado ao homem, trata-se geralmente de uma virtude infusa, ou seja, um poder além das forças humanas, como a coragem dos mártires [ii]. Declarar o homem desprovido de toda virtus, portanto, não implica uma adesão à doutrina da “depravação total”; ao contrário, é uma declaração de que a santidade não existe sem Deus.

Os cristãos que creem na “depravação total” tendem a subscrever também a doutrina da “justificação imputada”, segundo a qual Deus não transformaria realmente o homem caído, mas se limitaria a cobri-lo com um “manto de justiça”, como uma capa de neve em cima de esterco, para habilitá-lo a entrar no Céu. A Coleta, pelo contrário, pressupõe a salvação e a santidade como transformação total do ser humano, interior e exterior. Pedimos, antes de tudo, que sejamos protegidos das adversidades corporais, que podem perturbar-nos a paz interior e constranger nossa confiança em Deus, como sucedeu a Jó. Uma vez protegidos, pedimos a Deus que nos purifique de pensamentos perversos ou transviados. 

A purificação, aliás, é um tema importante na Quaresma: todas as nossas penitências têm em vista um valor purgativo. Mas a purificação dos pensamentos é dificílima. De fato, é mais fácil controlar as ações externas do que as sugestões e reflexões da mente. Por essa razão, até o melhor dos homens pode ser atormentado pelos piores pensamentos. A diferença do santo para o homem comum não está em ter apenas bons pensamentos, mas em treinar a mente para rejeitar, calma mas firmemente, os pensamentos maus logo que surgem. Se ainda assim eles persistem, o santo não os deixa desanimá-lo, mas lança-se ainda mais apaixonadamente à misericórdia de Deus. Embora os pensamentos perversos sejam uma hidra teimosa e de muitas cabeças, temos de permanecer confiantes no poder de Deus para nos purificar até mesmo deles.

“Hércules e a Hidra”, por Mark Fishman.

Corpo, alma e santidade também são os temas das leituras deste domingo [no rito antigo]. Na Primeira Carta aos Tessalonicenses (4, 1-7), São Paulo recorda que Deus não nos chama à impureza (immunditia, relacionada ao mundemur da Coleta). Em vez disso, Ele quer a nossa santificação. Isso envolve que saibamos possuir nossos “vasos” (corpos) com honradez [iii].

A leitura do Evangelho, por outro lado, é a versão de São Mateus da Transfiguração, quando Jesus se transfigura (provavelmente) sobre o Monte Tabor, diante de Pedro, Tiago e João [iv]. Segundo a interpretação tradicional do evento, Nosso Senhor estava preparando os três Apóstolos para o espetáculo brutal e desmoralizante da crucificação, dando-lhes porém um prenúncio de sua gloriosa ressurreição. (Os mesmos três Apóstolos serão chamados mais tarde para testemunhar a agonia de Cristo no Horto.) Do mesmo modo, para inspirar os fiéis no tempo da Quaresma, a Igreja antecipa neste domingo a glória da Páscoa evocando a Transfiguração do Senhor.

Também podemos pensar na Transfiguração como objeto do que pede a Coleta. O corpo glorificado e transfigurado de Cristo está livre das adversidades corporais, e sua alma está livre de pensamentos perversos [v]. Romano Guardini definiu certa vez uma bela obra de arte como aquela cuja “essência e significado interior encontram expressão perfeita em sua existência”. As roupas brilhantes e o rosto de Jesus Cristo durante a Transfiguração são a expressão perfeita de sua beleza interior, uma beleza que adoramos, nos esforçamos por imitar e à qual um dia, se Deus o quiser, seremos semelhantes [vi].

Notas

  1. Pouco mais de metade das orações do Missal de 1962 foram descartadas de todo — isto é, sem que fossem sequer aproveitadas para a elaboração de outras. É o caso da oração Coleta comentada neste texto. Em nenhum lugar ela se encontra no atual Missale Romanum. No lugar dela, consta a seguinte: “Ó Deus, que nos mandastes ouvir o vosso Filho amado, alimentai nosso espírito com a vossa palavra, para que, purificado o olhar de nossa fé, nos alegremos com a visão da vossa glória”. (N.T.)
  2. Sr. Mary Pierre Ellebracht, Remarks on the Vocabulary of the Ancient Orations in the Missale Romanum (Dekker & Van de Vegt N.V., 1963), 127-9. (N.A.)
  3. No atual rito romano, o trecho em questão não consta em nenhum domingo, e só se proclama na Sexta-feira da 21.ª Semana do Tempo Comum em anos ímpares. (N.T.)
  4. No antigo rito romano, os Evangelhos dominicais eram sempre os mesmos, todos os anos. A versão da Transfiguração que se proclamava no 2.º Domingo da Quaresma era só a de São Mateus. No rito novo, alternam-se os sinóticos no atual ciclo A, B e C. (N.T.)
  5. Hesito em dizê-lo porque tudo depende de como definimos “pensamento perverso”. Como vimos no Evangelho da última semana, Jesus foi verdadeiramente tentado no deserto. Ora, a tentação não inclui sempre uma sugestão perversa? (N.A.)
  6. Cf. H. Krug, De pulchritudine divina libri tres. Friburgi Brisgoviæ: Herder, 1902, p. 227ss: “A primeira razão por que a alma de Cristo não pôde de modo algum carecer de beleza está no cúmulo de virtudes que a adornavam e em sua pleníssima isenção de qualquer mancha de pecado. Com efeito, jamais houve entre os homens quem aborrecesse até ao mais leve pecado nem, portanto, fosse mais puro e mais santo do que ‘o homem Cristo Jesus’ (1Tm 2, 5). […] Mas a alma de Cristo, assim como superou de longe todas as outras em virtudes, as maiores e mais belas, assim também abundava copiosamente em graças e carismas. […] Por fim, a alma de Cristo resplandece com aquela beleza que, mais brilhante que o sol, decorre da união hipostática”. (N.T.)

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