No último dia 4 de agosto, por ocasião do cinquentenário da encíclica Humanae Vitae, Sua Eminência, o Cardeal Robert Sarah, ministrou uma conferência na abadia beneditina de Sainte Anne de Kergonan, na região da Bretanha, noroeste da França.

Colocamos à disposição de nossos leitores algumas passagens, traduzidas do texto em italiano para o português. O texto integral da conferência, em francês, pode ser baixado nesta página.


Um erro de perspectiva

Caros amigos e esposos, se vós, como cristãos, rejeitais a contracepção, não é, antes de tudo, porque “a Igreja o proíbe”, mas porque sabeis, através do ensinamento da Igreja, que a contracepção é intrinsecamente má, isto é, que ela destrói a verdade do amor e do relacionamento humano. Ela reduz a mulher a nada menos que um objeto de prazer, sempre disponível, seja qual for o momento e a circunstância, às pulsões sexuais do homem.

Uma verdade conforme a razão e atestada pela Revelação

É importante sublinhar que essa verdade do amor humano é acessível à razão humana. São João Paulo II recorda, de fato, que a afirmação segundo a qual “qualquer ato matrimonial deve permanecer aberto à transmissão da vida” (HV 11), descreve a “verdade ontológica”, a “estrutura íntima” e “real” do ato conjugal [1].

É esse caráter de racionalidade que fundamenta a afirmação de Paulo VI e de João Paulo II: “As normas morais da Humanae Vitae fazem parte da lei natural. Todo homem de boa vontade é capaz de compreender que um comportamento contraceptivo é contrário à verdade humana do amor conjugal.”

Mas é necessário ir ainda mais longe. Com efeito, São João Paulo II afirma com veemência que a norma moral formulada na Humanae Vitae faz parte da Revelação divina:

A Igreja ensina esta norma, ainda que não esteja expressa formalmente (isto é, literalmente) na Sagrada Escritura; e o faz na certeza de que a interpretação dos preceitos da lei natural é de competência do Magistério.

Podemos, no entanto, dizer mais. Ainda que a norma moral, tal como formulada na encíclica Humanae Vitae, não se encontre literalmente na Sagrada Escritura, pelo fato de estar contida na Tradição e — como escreve o Papa Paulo VI — ter sido “muitas vezes exposta pelo Magistério” (HV 12) aos fiéis, resulta que essa norma corresponde ao conjunto da doutrina revelada contida nas fontes bíblicas (cf. HV 4). [2]

Tal afirmação é capital para compreender o erro de todos aqueles que pedem uma “mudança de disciplina”, de todos os que dizem que “a Igreja é muito dura” ou que “a Igreja deve adaptar-se”. Segundo a encíclica Humanae Vitae, a Igreja não faz outra coisa senão transmitir tudo quanto ela recebeu do próprio Deus. Ela não tem, e nem terá jamais, o poder de mudar nada.

Portanto, acolher a Humanae Vitae não é, antes de tudo, uma questão de submissão e de obediência ao Papa, mas de escuta e acolhida da Palavra de Deus, da bondosa revelação de Deus sobre o que somos e sobre o que devemos fazer para corresponder ao seu amor. O que está em questão, de fato, é a nossa vida teologal, a nossa vida de relacionamento com Deus. Os cardeais, os bispos e os teólogos que têm rejeitado a Humanae Vitae e encorajado os fiéis à rebelião contra a encíclica estão se colocando deliberada e publicamente em luta contra o próprio Deus. O mais grave é que eles convidam os fiéis a se oporem a Deus.

Três erros

O primeiro erro se encontra entre os fiéis e, em particular, entre os cônjuges. Alguns poderiam ter a impressão de que a Igreja lhes esteja impondo um peso insuportável, um fardo demasiado pesado que acabará por comprometer a sua própria liberdade.

Caros amigos, tal ideia é falsa! A Igreja não faz outra coisa senão transmitir a verdade recebida de Deus e conhecida por meio da razão. E só a verdade pode nos tornar livres!

É necessário dizer como a recusa das práticas e da mentalidade contraceptiva liberta os casais do peso do egoísmo. Uma vida segundo a verdade da sexualidade humana liberta do medo! Libera as energias do amor e nos faz felizes! Vós, que viveis isso, dizei-o, escrevei, dai o vosso testemunho! É a vossa missão de leigos! A Igreja conta convosco e confia-vos essa missão!

O segundo erro a evitar se encontra entre os teólogos moralistas. Guardai-vos daqueles que vos dizem que, quando a intenção geral do casal é reta, as circunstâncias podem justificar a escolha de métodos contraceptivos. Caros amigos, afirmações desse tipo são mentiras! E aqueles que vos ensinam tais aberrações “falsificam a Palavra de Deus” (2Cor 4, 2). Eles não falam em nome de Deus. Falam contra Deus e contra o ensinamento de Jesus.

Quando vos dizem: há situações concretas que podem justificar o recurso aos contraceptivos, mentem para vós! Pior ainda, fazem-vos mal, porque vos indicam um caminho que não conduz nem à felicidade nem à santidade!

Como é possível fingir que “em certas situações” uma atitude que contradiz a verdade profunda do amor humano se torne boa ou necessária? É impossível! “As circunstâncias ou as intenções nunca poderão transformar um ato intrinsecamente desonesto pelo seu objeto, num ato ‘subjetivamente’ honesto ou defensível como opção” [3].

Não se deve jamais opor a prática pastoral à verdade universal da lei moral. A pastoral concreta é sempre a procura dos meios mais apropriados para pôr em prática o ensinamento universal, jamais para o derrogar.

O terceiro erro a evitar se encontra nos pastores: sacerdotes e bispos. Como disse Paulo VI, “não minimizar em nada a doutrina salutar de Cristo é forma de caridade eminente para com as almas” (HV 29). E, dirigindo-se aos bispos, o bem-aventurado Papa continuava:

Trabalhai com afinco e sem tréguas na salvaguarda e na santificação do matrimônio, para que ele seja sempre e cada vez mais vivido em toda a sua plenitude humana e cristã. Considerai esta missão como uma das vossas responsabilidades mais urgentes na hora atual (HV 30).

Paulo VI nos mostrou com sua encíclica um belo exemplo de caridade pastoral. Não tenhamos medo de o imitar! Nosso silêncio seria cúmplice e culpável. Não abandonemos os casais às sirenes enganadoras da facilidade!

Um caminho de santidade para os esposos

Eu gostaria de sublinhar, sobretudo, que o fundamento de toda santidade deve encontrar-se no amor a Deus. Ora, quem ama quer o mesmo que quer o amado. Amar a Deus significa querer aquilo que Ele quer. No cume da vida mística, fala-se de união das vontades, ou de comunhão da vontade.

Assim, Paulo VI encoraja os esposos a “conformarem a sua conduta às intenções criadoras de Deus” [4]. Nesta vontade de unir-se às intenções do Criador se encontra um verdadeiro caminho de união teologal com Deus e, ao mesmo tempo, de uma justa realização de si. É verdadeiramente amar a Deus amar aquilo que a sua sabedoria inscreveu na minha natureza. E isso conduz a um amor-próprio justo e realista.

Esse plano do Criador não se reduz à regularidade biológica. A fidelidade à ordem da criação compreende muito mais do que isso. A fidelidade ao projeto de Deus supõe o exercício de uma paternidade-maternidade responsável, que se exprime por meio de um uso inteligente dos ritmos [naturais] da fecundidade. Isso supõe uma colaboração entre os cônjuges, uma comunicação de escolhas comuns e livres, tomadas de forma consciente, iluminadas pela graça e pela oração perseverante, fundadas em uma generosidade de fundo, para que o casal assim decida se irá transmitir a vida ou, por justos motivos, espaçar os nascimentos.

Isso supõe um verdadeiro amor conjugal, uma verdadeira temperança e domínio de si, sobretudo no caso de decidir-se limitar a união conjugal aos períodos infecundos. Numa palavra, trata-se de uma “arte de viver”, de uma espiritualidade, de uma santidade propriamente conjugal!

Uma arte de viver

Enfatizar esse aspecto permite-nos desfazer um mal-entendido. Fala-se às vezes de “métodos naturais de regulação de natalidade”. Muitos crêem que tais métodos são “naturais” pelo fato de não recorrem a procedimentos artificiais, químicos ou mecânicos. Isso não é exato de todo.

Em vez de “métodos naturais”, deve-se falar, antes, de um exercício da fecundidade de acordo com a natureza humana. Esta supõe uma “maturidade no amor que não é imediata, senão que exige diálogo, escuta mútua e um particular domínio sobre as pulsões sexuais em uma caminhada de crescimento na virtude”, dirá Bento XVI. Por isso, pode-se falar de “vida segundo a ordem da natureza”, em conformidade com o projeto criador, apenas se um método natural de regulação dos nascimentos estiver integrado em um contexto de virtude conjugal.

Noutras palavras, os métodos naturais são uma base, mas pressupõem que são vividos [pelo cônjuges] em um contexto de virtude. Eles podem constituir uma porta, uma pedagogia para a descoberta dessa vida conjugal plena, mas não podem ser vividos materialmente, fora deste contexto de responsabilidade, generosidade e caridade que lhe é inerente.

Abrir-se à adoração

Compreender o projeto do Criador, abraçá-lo com o coração, supõe essa atitude espiritual profunda de gratidão e de adoração, que é um dom do Espírito Santo. Acolhendo com gratidão a ordem natural, esforçando-se por compreendê-la e amá-la, os esposos não só realizam seu amor nas virtudes, que consolidam sua mútua caridade, mas se abrem ainda mais à adoração contemplativa do Criador.

A Humanae Vitae abre uma estrada de santidade conjugal, uma pedagogia da adoração, de aceitação filial e reverente do plano divino. Assim, Deus mesmo é amado como Pai, seus dons são acolhidos com gratidão e veneração e os esposos experimentam sua afetuosa majestade. Bem se entende por que João Paulo II pôde afirmar que “o que se põe em questão, com a rejeição deste ensinamento, é a ideia mesma da santidade de Deus. […] Essas normas morais não são mais do que a exigência, da qual nenhuma circunstância histórica nos pode dispensar, da santidade de Deus, participada em concreto, não em abstrato, a cada pessoa humana” [5].

O régio caminho da cruz

Sim, queridos amigos, queridos esposos, não vos prego um caminho fácil. Anuncio-vos Jesus, e Jesus crucificado! Estimados esposos, convido-vos a que entreis neste régio caminho de santidade conjugal. Dias virão em que devereis seguir adiante não sem heroísmo de vossa parte. Dias virão em que palmilhareis o caminho da cruz. Penso na “cruz daqueles cuja fidelidade suscita escárnio, ironia e até perseguição” [6], na cruz das preocupações materiais que implica a generosa acolhida de novas vidas, na cruz das dificuldades da vida de casal, na cruz da continência e da espera durante alguns períodos.

A felicidade, a alegria perfeita dos vossos casamentos há de passar por aqui. Sei que isso não se dará sem sacrifício. No entanto, “as tentativas sempre recorrentes de viver um cristianismo sem sacrifício, um cristianismo aguado e sem corpo, estão destinadas ao fracasso” [7].

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