Além de ensinar sobre a vida eterna, outra grande lição da parábola do pobre Lázaro e do rico banqueteador — proclamada poucos domingos atrás — é fazer-nos dar o devido valor aos bens deste mundo. 

Com efeito, diz o Evangelho de São Lucas: “Quando o pobre morreu, os anjos levaram-no para junto de Abraão. Morreu também o rico e foi enterrado” (Lc 16, 22). O contraste é muito claro, de acordo com o peso que uma e outra personagem davam às coisas terrenas: o miserável tem descrita apenas a sorte de sua alma, enquanto o homem de muitas posses, que só se preocupava com os bens materiais, tem descrito apenas o fim de seu corpo — que é a sepultura.

Infelizmente, nossa cultura faz de tudo para evitar que pensemos na morte. Por isso, façamos um esforço a mais para imaginar o que está falando Nosso Senhor.

A maior parte das pessoas já teve a experiência de encontrar um animal atropelado, já todo decomposto. O bicho está debaixo do sol, apodrecendo ao relento, exalando um cheiro horrível, insuportável… Essa é, não raro, a experiência mais próxima que as pessoas têm da morte, no sentido biológico da palavra. Afinal, enterramos nossos mortos, mas os trancamos numa gaveta de cemitério ou num caixão. 

A comparação é desagradável, mas serve para que entendamos: o destino de todos os nossos investimentos em esporte, academia, beleza, comida etc., tudo isso vai terminar como um animal eviscerado, podre, coberto de moscas, abandonado no meio da estrada, terrivelmente malcheiroso. Eis no que muitos de nós estamos investindo nosso capital e energias.

“São Francisco de Borja”, por Alonso Cano.

Isso não significa que devamos parar de comer, comprar roupa, fazer esporte e cuidar da saúde. Não, precisamos cuidar de tudo isso porque são bens, mas nada disso é o verdadeiro bem — e só este não passa.

Lembremos, por exemplo, a experiência de São Francisco de Borja [i]. Era verão, e Francisco, membro da corte espanhola, teve de escoltar num calor escaldante o corpo da recém-falecida Rainha Isabel, esposa do Imperador Carlos V. Quando a comitiva chegou a Granada, abriu-se o caixão da imperatriz, conforme o cerimonial da época, para que o corpo a ser sepultado fosse reconhecido.

Aberto o caixão, viram um cadáver em decomposição: o rosto belíssimo da imperatriz que Francisco estava acostumado a admirar estava desfigurado, o corpo cheirava mal, todas as pessoas ao redor do caixão desviaram o rosto, alguns até se afastaram, outros saíram correndo. Francisco continuou a olhar para o cadáver, e naquele momento se deu sua conversão

Francisco de Borja era um homem bom, sim, muito virtuoso. (E o que tinha ele de virtude, tinha de nobre sua linhagem: antes de entrar para a Companhia de Jesus, Francisco era duque de Gandia e vice-rei da Catalunha, e seu bisavô por parte de pai era ninguém menos que o Papa Alexandre VI.) Mas ao ver o rosto desfigurado e o corpo apodrecido de sua rainha, Francisco caiu em si: Nunca volveré a servir a señor que se me pueda morir, “Nunca mais hei de servir a um senhor que me possa morrer”; ou seja, doravante ele determinou que só serviria a Deus, o único Senhor que não perece.

Trata-se de uma passagem belíssima, da vida de um grande santo, que a poetisa portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen consagrou em sua Meditação do Duque de Gandia sobre a morte de Isabel de Portugal:

Nunca mais
A tua face será pura limpa e viva
Nem o teu andar como onda fugitiva
Se poderá nos passos do tempo tecer.
E nunca mais darei ao tempo a minha vida.

Nunca mais servirei senhor que possa morrer.
A luz da tarde mostra-me os destroços
Do teu ser. Em breve a podridão
Beberá os teus olhos e os teus ossos
Tomando a tua mão na sua mão.

Nunca mais amarei quem não possa viver
Sempre,
Porque eu amei como se fossem eternos
A glória a luz o brilho do teu ser,
Amei-te em verdade e transparência
E nem sequer me resta a tua ausência,
És um rosto de nojo e negação
E eu fecho os olhos para não te ver.

Nunca mais servirei senhor que possa morrer.

Nunca mais te darei o tempo puro
Que em dias demorados eu teci
Pois o tempo já não regressa a ti
E assim eu não regresso e não procuro
O deus que sem esperança te pedi.

Curiosamente, nas últimas semanas assistimos a um fato muito parecido com o que presenciou São Francisco de Borja: um funeral real, e de uma monarca de mesmo nome. (Embora no Brasil chamemos à rainha finada de Elizabeth, em Portugal seu nome é “Isabel”, e seu filho é “Carlos”, não Charles.) Foram muito belas, aliás, as cerimônias solenes com que o povo britânico se despediu de sua rainha, mas elas também nos confrontam com a realidade da morte, que nos nivela a todos. Afinal, no túmulo da Rainha Isabel II do Reino Unido reinarão tão somente os vermes e as traças, assim como o túmulo de qualquer João ou Maria. E sua mão, outrora osculada por seus súditos, agora será tomada pela mão da podridão, como diz tão belamente o poema acima. 

Reflitamos sobre isso e decidamo-nos, também nós, a tomar por rei neste mundo passageiro tão somente a Deus, Nosso Senhor, cujus regni non erit finis — como dizemos no Credo niceno. De fato, só o reino dele “não terá fim”.

Notas

  1. A Igreja recorda o dies natalis de São Francisco de Borja no dia 30 de setembro. Mas até 1969 sua festa constava no calendário universal, a 10 de outubro. Os reformadores da liturgia deixaram sua memória para os calendários particulares, sob o argumento de que non agitur de Sancto “momentum universale revera prae se ferente” — o santo não teria um peso de fato universal (cf. Calendarium Romanum [1969], p. 142).

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