Todos os anos, cinco milhões de turistas vão à Capela Sistina, em Roma, para visitar os mais de 450 metros quadrados que albergam os afrescos de Michelangelo, nos quais estão retratadas inumeráveis cenas bíblicas, desde a Queda de Adão até o Juízo Final. A Capela Sistina é um dos grandes patrimônios da humanidade. Ela fala por si mesma, envolvendo com sua portentosa beleza quem quer que a contemple.

Hoje, dia 2 de abril, aniversário da morte de S. João Paulo II, eu gostaria de sugerir que uma das obras deste Papa pode ser comparada, em sua importância e valiosas intuições, ao teto da Capela Sistina, ainda que se trate de um “afresco em palavras”, e não de uma pintura em sentido próprio. Nela estão corajosamente traçadas as “luzes e sombras” da dignidade humana, ou seja, da nossa capacidade para o realizar o bem ou o mal.

Desde a morte do Papa polonês em 2005, diversos aspectos de suas conquistas vêm sendo reconhecidos. Eles incluem a política (a ascensão de “Solidariedade” em sua terra natal e a queda do Império Soviético), as artes (suas reflexões sobre a beleza, seu trabalho prévio na poesia e na dramaturgia), a filosofia (seus escritos sobre o relacionamento entre fé e razão) e, naturalmente, a teologia (seu tríptico de Encíclicas sobre a natureza de Deus). João Paulo teve uma vida longa,  ativa e enraizada na oração, e os resultados, embora não tenham sido perfeitos, estão aí à vista de todos. Ao menos para os que abrirem os olhos para ver. E ler.

De todas as conquistas que marcam sua longa existência, creio que a principal contribuição do Papa filósofo para o mundo seja a sua reflexão a respeito da natureza do ato moral. Trata-se, sem dúvida, de um assunto pouco atraente para muitos, mas que se refere, no fundo, ao modo como nos tornamos quem somos, desde as profundezas mais íntimas do nosso ser.

Tudo isso pode ser encontrado na Encíclica Veritatis Splendor, “Esplendor da Verdade”, publicada em 1993, há cerca de um quarto de século. No Concílio Vaticano II (1962-1965), os padres conciliares tentaram, mas não conseguiram produzir um documento sobre teologia moral antes de irromper a tempestade da década de 1960. Com a ajuda de Joseph Ratzinger (que se tornaria mais tarde Papa Bento XVI) e outros cooperadores, João Paulo II pôde elaborar um dos documentos oficiais mais significativos da Igreja sobre teologia moral dos últimos 400 anos.

Teto da Capela Sistina.

Qual é a necessidade de um documento assim? Quando o Papa Paulo VI, em 1968, confirmou o ensinamento constante da Igreja sobre a imoralidade da contracepção, o dissenso entrou na ordem do dia para os católicos, enquanto o resto do mundo abraçava alegremente a chamada Revolução Sexual. Os resultados trágicos dessas escolhas — famílias desestruturadas, de um lado, e o fácil acesso à pornografia, de outro — continuam surtindo efeito até os dias de hoje.

Algumas fórmulas tradicionais da doutrina católica, de meio século ou menos de idade, se revelaram incapazes de convencer as gerações da “era de Aquarius” e seus descendentes (nós, em suma). João Paulo II sabia, desde a época em que foi professor universitário na Polônia, da urgente necessidade de oferecer aos homens uma sólida formação em antropologia cristã, iluminada pela fé. Por isso, ele mesmo tratou de nos proporcionar essa base, elaborada com fidelidade às SS. Escrituras e ao Magistério perene e bimilenar da Igreja.

Veritatis Splendor faz ecoar o grito de rebelião e de esperança de toda alma que, mais do que praticar o mal, sofre a sua ação. A Encíclica fala a partir da consciência moral do que de melhor tem a nossa humanidade, iluminada pela graça. Ela frustra as esperanças de todo governo que pretenda fazer do oportunismo e da comodidade o seu “evangelho”, à custa da verdade e da luz da consciência, dada a todas as almas, criadas à imagem de Deus.

O Papa polonês queria nos lembrar de que existem atos que não devem ser praticados nunca. Há, gostemos ou não, atos intrinsecamente maus, sempre e em si mesmos, ainda que tenhamos as melhores intenções, independentemente das circunstâncias.

Àqueles que defendem que essa doutrina carece de “sensibilidade pastoral” cabe perguntar: como vamos ajudar realmente as pessoas, se escondermos delas a verdade sobre problemas humanos tão fundamentais? Como vamos conduzi-las das trevas do pecado à luz da graça, isto é, à amizade íntima com Deus, Nosso Senhor, se abandonarmos o legado moral dos santos, dos mártires e dos santos doutores da Igreja? Desse ponto de vista, a exortação do Concílio Vaticano I é de uma relevância permanente: “Sempre se deve ter por verdadeiro sentido dos dogmas aquele que a Santa Madre Igreja uma vez tenha declarado, não sendo jamais permitido, nem a título de uma inteligência mais elevada, afastar-se deste sentido.” [1]

Muitos católicos parecem ter perdido de vista esse precioso ensinamento. E isso é terrível em vários níveis. Passa-se a impressão, por exemplo, de que a Igreja teria o poder de ser arbitrária em todas essas matérias, como se ela pudesse definir o bem e o mal, ao invés de simplesmente reconhecê-los inscritos na natureza humana. No entanto, como escrevia o Beato John Henry Newman, “ainda que o papado pertença ao depósito da Revelação, o Papa não tem jurisdição alguma sobre a natureza” [2].

Alguns estudiosos afirmam que a imagem de Deus Pai estendendo a mão para Adão no teto da Capela Sistina tem a forma de um cérebro humano. É como se Deus estivesse concedendo à humanidade a luz da inteligência, em um toque íntimo e singelo. Se nós levarmos em conta o ensinamento de S. João Paulo II, veremos com igual clareza como cada pessoa com que cruzamos na rua está chamada a ser uma obra-prima de Deus, um “afresco” para a eternidade, onde as sombras dos pecados arrependidos e perdoados só tornará ainda mais radiante a luz de sua glória no Céu.

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