O cenário era desolador e, ao mesmo tempo, belo. Uma igreja praticamente vazia — o Santuário do Pai das Misericórdias, na Canção Nova —, em pleno Domingo de Ramos, dava o tom para que a salmista, Carolina Andrade, ecoasse o refrão do Salmo 21, com uma emoção cortante: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?” As imagens logo foram espalhadas pelas redes sociais, ganhando o coração dos fiéis que, nestes dias de isolamento, se sentiram unidos àquela prece de dor e clemência.

As circunstâncias impostas pela pandemia da Covid-19 criaram a ocasião perfeita para refletirmos sobre o significado da liturgia católica e a sua influência em nossas vidas, especialmente no que se refere à Santa Missa. Apesar da dimensão fundamentalmente espiritual do culto cristão, há quem não admita a celebração privada da Eucaristia, como se o sacrifício só tivesse valor se celebrado em público. Para o teólogo liberal Massimo Faggioli, por exemplo, as Missas ditas privadamente seriam uma espécie de “onanismo litúrgico”. (Dada a natureza vulgar e, sobretudo, blasfema da comparação, nem nos atrevemos a pensar qual seria a concepção dele para a liturgia com o povo.)

É fato que, após o Concílio Vaticano II, por uma compreensão equivocada da liturgia, a Santa Missa foi reduzida à “celebração de um sinal que correspondesse a um vago sentimento de comunidade” [1]. Com isso se deu permissão a todo tipo de experiências que, no mais das vezes, só serviram para desfigurar a genuína beleza dos ritos e autorizar a arbitrariedade dos liturgistas, quando o próprio Concílio enfatizou que a liturgia deveria contribuir “em sumo grau” para os fiéis exprimirem na vida e manifestarem aos outros “o mistério de Cristo e a autêntica natureza da verdadeira Igreja” [2].

A beleza e a eficácia da liturgia têm sua origem justamente no fato de que ela não é uma invenção humana, mas já “existia antes de que nós tivéssemos participado dela, porque foi iniciada na Santíssima Trindade” [3]. Por isso, adverte o Catecismo, “nem mesmo a autoridade suprema da Igreja pode mudar a liturgia a seu bel-prazer, mas somente na obediência da fé e no respeito religioso do mistério da liturgia” (n. 1125). É apenas porque participamos da vida divina de Cristo que podemos interagir com o sacrifício de adoração, ação de graças, contrição e intercessão da Santa Missa. Ao longo dos séculos, a Igreja cuidou para que a essência desse culto fosse bem vivida através dos ritos de cada tradição litúrgica válida, num desenvolvimento orgânico e espiritual.

A participação na Missa é, por isso mesmo, uma ação pela qual o homem deve empenhar todo o seu ser, corpo e alma, na devoção ao Senhor. Esse empenho diz respeito não tanto à execução de gestos e tarefas aleatórias, mas à participação espiritual e afetiva no mistério celebrado. Afinal, “quem não sabe apreciar o valor gratuito (ou seja, da graça) da beleza, em especial da beleza litúrgica, dificilmente conseguirá realizar um ato adequado de culto divino” [4]. Portanto, o homem não precisa inventar nada de novo; ele só precisa abrir-se ao mistério, acolher amorosamente a Palavra de Deus, que, na liturgia santa, se traduz por meio de cada rito, símbolo, gesto ou palavra.

Entrementes, o que deixou o canto da salmista Carolina Andrade particularmente belo foi o fato de ela não ter usado nenhum recurso vocal ou gestual extravagante, típico de certa música gospel, para prender a atenção dos demais (também porque não havia gente para isso); o que ela fez foi simplesmente transmitir aquilo que ela recebeu da liturgia: a Palavra viva da Sagrada Escritura, que é palavra de vida eterna. Os câmeras da TV Canção Nova ainda tiveram a sensibilidade de não explorar a emoção da jovem, cortando a transmissão para o crucifixo no centro do altar. Porque a razão de ser da liturgia é Jesus; Ele é o protagonista; Ele, e somente Ele, portanto, deve ser o centro da nossa atenção.

Essa verdade precisa ser particularmente lembrada agora, que nos encontramos privados do Santíssimo Sacramento. A celebração litúrgica não é um ato isolado, de uma comunidade local que se reúne narcisisticamente, mas uma realidade transcendente, mística, espiritual, que une o Céu e a terra, o visível e o invisível, e é capaz de alimentar mesmo os que estão lá fora. Quem se emocionou com o que viu na TV, por exemplo, pôde tomar parte no ato de fé da salmista, entrando em comunhão com a pessoa de Jesus, para além da recepção da Eucaristia. Pois quando rezamos liturgicamente, com o empenho do nosso coração, somos capazes de adentrar no mistério de Nosso Senhor e realizar uma verdadeira refeição espiritual — que às vezes, não sempre, pode reverberar em nossas emoções.

Note-se que de modo algum estamos negando a importância do culto público a Deus ou da Comunhão sacramental pelos fiéis. As Missas televisionadas mesmo não servem para os fiéis cumprirem o preceito dominical. O que queremos mostrar é que a Missa, antes de ser um encontro social, é um sacrifício místico, oferecido pelos sacerdotes em favor de seu povo, ainda que ele não esteja fisicamente presente. E esse mesmo povo pode unir-se “em espírito e em verdade” (Jo 4, 23) aos seus sacerdotes, sobretudo nesta ocasião particular de pandemia, oferecendo o sofrimento de não poderem estar na igreja. Uma comunhão espiritual vivida com tal intensidade tem um poder santificador que não podemos menosprezar; sem dúvida, nem se compara ao que significa receber sacramentalmente o Corpo e o Sangue do Senhor, mas deve servir para repararmos as inúmeras comunhões distraídas que já fizemos, bem como as incontáveis irreverências e abusos litúrgicos com que tantas vezes colaboramos em nossa ânsia por “inculturar” o santo sacrifício do Calvário. 

As últimas Semanas Santas, no Brasil, foram marcadas por abusos litúrgicos tão escandalosos que chocariam até o mais liberal dos liturgistas. Neste ano, porém, a maioria dos sacerdotes não terá à sua frente uma plateia a entreter, mas terá de se voltar sozinha ao crucifixo, a fim de oferecer o sacrifício propter nos, homines. Num desafio de fé à teologia mambembe que lhes ensinou a celebrar a Missa como se fosse um concerto, muitos finalmente terão a oportunidade de descobrir a beleza de uma importante verdade da liturgia católica: por mais que se voltem ao povo, é a Deus que eles sempre oferecem o sacrifício do altar (versus Deum, isto é, voltados para Deus). Eis a ocasião oportuna, um verdadeiro kairós, para “redescobrir e valorizar a obediência às normas litúrgicas”, como expressão da beleza da “Igreja, una e universal que preside na caridade” [5].

Sem as desculpas comuns, eles terão tempo suficiente para se paramentar com as devidas vestes litúrgicas (alva, cíngulo, estola e casula), observando as piedosas orações. Nem precisarão recorrer à Oração Eucarística II para terminar mais rápido a celebração. E que bela oportunidade será para purificar devidamente os vasos sagrados, sem a pressa habitual que faz com que tantas partículas sagradas se percam. A Comunhão eucarística, enfim, poderá ser feita com grande generosidade, num verdadeiro ato de ação de graças. Os sacerdotes que souberem aproveitar espiritualmente tudo isso certamente colherão graças abundantes.

Mas também os fiéis somos desafiados a redescobrir a verdadeira natureza da Missa, agora precisamente que sentimos como se Deus nos houvesse abandonado. Temos diante de nós a situação dos israelitas no deserto: podemos manter a fé piedosamente, enquanto Moisés (ou seja, o sacerdote) sobe sozinho o monte para interceder por nós, ou podemos construir um bezerro de ouro, esquecendo-nos de todas as graças com as quais Ele nos cumulou por tanto tempo, apesar de nosso desprezo. No entanto, para que essa última opção não seja realidade, temos de viver a Missa em nossos corações, como povo sacerdotal, fazendo repetidos atos de fé no culto que nossos sacerdotes estão oferecendo a Deus pela Igreja.

No fim das contas, é a fé católica que está em jogo. A Semana Santa nos convida a viver a Paixão de Cristo não apenas como recordação de algo passado, mas como atualização da doação gratuita de Jesus pela nossa salvação. E isso exige de nós um empenho do coração, pelo qual nossos afetos estejam todos voltados para o Senhor. Do contrário, Ele olhará para nossas lágrimas externas e dirá: “Chorai por vós mesmos e por vossos filhos… Se, de fato, fazem isto ao lenho verde, que não acontecerá ao seco?” (Lc 23, 29-30).

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