Recentemente, li o relato do Dr. Richard Gallagher a respeito do caso de uma mulher possuída. Ele é psiquiatra e autor do livro Demonic Foes, no qual descreve sua colaboração de longa data com exorcistas, auxiliando-os a partir de uma perspectiva psicológica católica. Depois que avancei na leitura do relato, fiquei impressionado com alguns aspectos da situação, os quais me convenceram, mais tarde, a respeito das principais razões pelas quais Deus permite a ocorrência de possessões.

Menos caminhos levam à possessão que à condenação. Os casos daquela servem para demonstrar como, sejam quais forem os meios pelos quais uma pessoa passa a conviver com os demônios, seja aqui na terra pela possessão seja na morte pela condenação, assim será estar na companhia deles.

Analisando um caso

A mulher possuída mencionada acima chamava a si própria “suma sacerdotisa” de uma seita satânica e havia se oferecido a Satanás e à seita. Além disso, sua entrega a Satanás [i] e sua cooperação com os males desejados por ele e pela seita renderam-lhe poderes preternaturais um tanto impressionantes. Como demonstrou ao Dr. Gallagher e ao exorcista, por meio da influência do mal, ela era capaz, por exemplo, de fazer com que animais se tornassem violentos e de “enxergar”, a uma distância de muitos quilômetros, exatamente o que o exorcista estava fazendo

Ao fim e ao cabo, ela procurou um exorcista porque percebeu que também estava possuída e era infeliz com aquilo.

“Exorcismo de Joana de Castela”, por Willem Geets.

A mera participação em uma seita não é causa de possessão. Insere a pessoa num lugar em que é muito elevada a chance de ocorrer uma ação diabólica extraordinária, mas não há garantia de que ela vá ocorrer. Apesar de seu descontentamento com a possessão, essa mulher ainda não estava disposta a renunciar à sua oblação feita a Satanás. Ela simplesmente queria que a possessão chegasse ao final. 

Durante o trabalho com o exorcista e o psiquiatra, não estava claro qual era o grau de envolvimento da possessa no processo de sua libertação do demônio, nem o seu vínculo com Satanás e a seita. Por causa disso, ou simplesmente por causa da força de seu vínculo com o demônio, os exorcismos se mostraram particularmente difíceis.

Depois de um dos exorcismos, o padre relatou ao psiquiatra que, devido à força da resistência do demônio, e pelas manifestações preternaturais que ocorreram no cômodo durante o exorcismo, ele tivera a sensação de estar “diante das portas do Inferno”.

Estas foram algumas das manifestações: gritos, gemidos e uivos de animais, tão intensos que lhes deram a impressão de que estar “no meio de uma selva perigosa”. A temperatura no cômodo despencou até ficar congelante, e em seguida aumentou até o ponto de causar-lhes a sensação de estar perto de uma caldeira. Essas manifestações não são incomuns na experiência dos exorcistas, embora muitas vezes indiquem a presença de um demônio mais poderoso. 

O desejo da vontade

Essa mulher possessa havia escolhido servir a Satanás, fazia isso diariamente e em contrapartida desfrutava de muitos “benefícios”. Ela estava presa na corrupção de sua vontade e nas garras de Satanás, que não a libertava. 

Isto era particularmente verdadeiro pelas seguintes razões: seu livre oferecimento a Satanás; seus rituais recorrentes envolvendo grandes maldades (como abortos), realizadas livremente para honrar esse oferecimento; e o uso [que ela fazia] de dons preternaturais e a assistência [que recebia] dos espíritos malignos.

Àquela altura, ela não estava somente presa pelo poder, pelas promessas e pela “proteção” fornecidas por Satanás — estava legalmente vinculada a ele e era incapaz de libertar-se sem a ajuda da Igreja.

“Tentação de Cristo no deserto”, por Duccio di Buoninsegna.

Esse é um dos aspectos importantes deste caso. Os demônios resistiram ao exorcista e fundamentaram essa resistência na alegação de que “ninguém tem direito de libertá-la”, pois ela havia se entregado livremente a eles. Não é incomum que o demônio afirme isso, porém, particularmente quando a possessão acontece depois de o indivíduo convidar livremente o demônio para entrar.   

Porém, embora o demônio esteja correto em relação ao fato de a pessoa ter escolhido livremente a possessão e de isso ter tornado mais forte o vínculo [entre eles], Cristo e sua Igreja ainda têm direito e autoridade para libertá-la. No entanto, essa alegação dos demônios reflete um dos tormentos com os quais eles afligem as pessoas: o desespero, como efeito da ameaça de que Deus não pode salvá-las, já que escolheram livremente aquele estado miserável. 

Para se libertar, ela tinha de renunciar plenamente a Satanás e a todas as suas promessas vazias e consagrar-se a Jesus Cristo, submetendo-se ao jugo libertador de seu Evangelho e de sua graça. Quando renovamos as nossas promessas batismais, algo recomendado por exorcistas e tradicionalmente feito no aniversário de nosso batismo, usamos esta linguagem: “Renuncio a Satanás… e a todas as suas obras… e a todas as suas pompas e seduções.” 

Ela, porém, não queria fazer isso; por isso, o exorcismo não surtiu efeito. Ela queria a companhia dos demônios, o poder de Satanás e a recompensa de servir a ele no Inferno como sua “rainha”, tal como era chamada na seita.

Atravessando as portas do Inferno

“São Pedro Mártir exorcizando uma mulher possuída por um demônio”, de Antonio Vivarini.

As pessoas que estão em pecado e que sacudiram o jugo leve do Evangelho, ou recusaram [carregá-lo], encontram-se, na hora da morte, em um estado de vínculo espiritual com Satanás. Consequentemente, tornam-se prisioneiras e são levadas à perdição e ao sofrimento eterno no Inferno. É assim que nos condenamos: deixando o reino temporário desta vida mortal sem a fortificação da graça santificante. O que se vê num exorcismo, como o exposto acima, é um vislumbre de como será o reino de Satanás em sua plenitude: dominação, desespero, tortura dos sentidos e aprisionamento em desejos malignos

Em minha pesquisa, comecei a perceber que, quando os demônios são acolhidos na vida de um indivíduo, Deus dá permissões surpreendentes às forças diabólicas. Essas permissões, essas ações, são alertas para todos nós, pois são essencialmente o que nos espera no Inferno, se formos para lá.

Nos casos de possessão, muitos são agredidos por entidades invisíveis de tal maneira que seus corpos ficam com verdadeiros hematomas. Eles também são arranhados e estrangulados. Além disso, muitos relatam ter sido assediados sexualmente por essas mesmas entidades invisíveis. Outra experiência relatada pelo Dr. Gallagher é a de uma sensação de queimação interna provocada pelo demônio que está lhes causando tormento. Naturalmente, os demônios também causam uma ampla variedade de outras dores e doenças aparentes no corpo da pessoa.

A satanista mencionada acima contou ao psiquiatra que, antes de suas visitas aos exorcistas com o objetivo de pôr fim à possessão, Satanás a havia castigado várias vezes. Ela afirmou que era impossível renunciar a Satanás: “Renunciar a Satanás! Você só pode estar de brincadeira! Como posso fazer isso? O que acontecerá comigo? Ninguém quer tê-lo como inimigo. Confie em mim, eu sei o que estou dizendo.”  

Para ela, a experiência com a “sensação de queimação” foi claramente causada por Satanás, a quem, por outro lado, ela servia de bom grado. Este foi apenas um dos castigos que Satanás lhe infligiu, apesar de ela ter servido a ele “fielmente” por muitos anos. Ela esperava receber após a morte um lugar elevado em seu reino infernal, tal como lhe fora prometido, mas pressentia ao mesmo tempo que nem por isso estaria isenta de punições.

“Como somos nós, serás também tu”

Embora a maior parte dos católicos não venha a experimentar esses ataques diabólicos, é fundamental conhecer as habilidades e motivações dos demônios. Nós vemos manifestar-se a verdadeira malícia das forças diabólicas não só na experiência dos possessos, mas também na dos grandes santos.

“São Francisco de Borja assistindo um moribundo impenitente”, por Francisco de Goya.

Quando confrontados com uma vítima culpável [ii] (como na possessão) ou com um forte oponente (como um grande santo), os demônios tendem a revelar sua verdadeira identidade, remover suas máscaras e “tirar fora suas luvas” [iii]. Os ataques por eles desferidos revelam seu ódio à humanidade e sua completa aversão ao sagrado. Quando Deus o permite, confrontados com uma vítima culpável ou com um santo, os demônios dão a conhecer exatamente o que anseiam fazer com o homem quando têm permissão para atacá-lo.  

Assim, a existência da atividade diabólica extraordinária serve de alerta para todos, mesmo aqueles que nunca a viveram pessoalmente, quanto a uma verdade espiritual basilar: o Inferno é real. Os mesmos demônios que na terra dependem da permissão divina lá terão liberdade para infligir todo tipo de tormento que possam conceber, sem a presença de ninguém para libertar de seu domínio as almas que lá residem.

Portanto, rezem e lutem!

Hoje, porém, não há razão para temer! Temos todas as armas e meios da graça para fortalecer as nossas almas, perseverar nela até o final… e ser salvos. 

Embora o arrependimento do pecado pelo medo de ser condenado ao Inferno seja “contrição imperfeita”, ainda assim é suficiente para obter o perdão de Deus na Confissão! O desejo de evitar o Inferno é um grande motor [inicial] para a santidade.

Prestemos atenção aos ensinamentos dos exorcistas e às histórias daqueles que sofrem provações diabólicas. Eles têm muito a nos ensinar enquanto navegamos neste mundo, que atualmente treme em meio a um ataque renovado dos poderes das trevas.

Temos de ser como Santa Teresa d’Ávila, que nos recorda o seguinte em sua famosa oração: “Nada te perturbe, nada te espante.” Foi essa mesma santa que, em meio a ataques frequentes de demônios, encontrou grande consolação no poder da água benta para repeli-los e nas óbvias limitações que Nosso Senhor impôs à atividade deles. Foi também ela que, ao perceber a presença do demônio sobre sua cama uma noite, dispensou-o de forma descontraída, dizendo: “Ah, és tu somente!...” [iv]

Somos filhos da Luz e templos do Espírito Santo. Temos de permanecer nesse caminho, crescendo em graça e força no combate espiritual. Se formos fiéis, no tempo devido não só venceremos os agentes das trevas, como um dia, na glória, assistiremos a sua condenação.

Notas

  1. O termo usado no original inglês é dedication. Também em português “dedicação”, “dedicar”, emprega-se no sentido de “consagrar, pôr sob a proteção de uma divindade ou invocação de um santo” (Aulete). Mas o sentido mais corrente desta palavra não expressa toda a força que tem uma entrega deste gênero: as pessoas usam mais “dedicar” como “empregar esforços, energia, em favor de alguém ou de alguma coisa”. Além disso, não parece conveniente empregar a palavra “consagração” numa oferta feita ao demônio — pois quem a ele se oferece não se “consagra”, não se “torna sagrado”. Muito pelo contrário! Por isso, onde o autor diz: dedication, nós traduzimos: “entrega, oblação, oferta”. Afinal, quem se dedica ao demônio neste sentido, está entregando-se a ele, fazendo-lhe (miseravelmente) um oferecimento de si mesmo. (N.T.)
  2. O autor diz willing victim — e sem dúvida é o caso da sacerdotisa em questão. Mas é certo também que “a ação extraordinária do demônio pode dar-se quer contra pessoas que cometeram uma culpa, a qual torna-se causa de tal ação, quer contra pessoas que não cometeram culpa alguma” (Associação Internacional dos Exorcistas, Diretrizes para o Ministério do Exorcismo à luz do Ritual vigente [n. 80]. Brasília: Edições CNBB, 2022, p. 75). (N.T.)
  3. Take the gloves off, expressão inglesa que alude ao ato de “retirar luvas” como sinal de que um conflito vai ficar mais acirrado. (N.T.)
  4. Em inglês: Oh, it’s just you. Não conseguimos encontrar a fonte de tal fato, mas isto a santa espanhola realmente escreveu: “Em outra ocasião, o demônio me atormentou durante cinco horas com dores e desassossegos interiores e exteriores tão terríveis que pensei não poder suportar. [...] Quis o Senhor que eu percebesse que era o demônio, já que vi ao meu lado um negrinho bem abominável, rangendo os dentes como se estivesse desesperado ao perceber que, em vez de ganhar, perdia. Eu, ao vê-lo assim, ri-me e não tive medo [...]. Que isso seja útil ao verdadeiro servo de Deus, que assim vai desdenhar os espantalhos com que os demônios desejam nos causar temor. Saibam que, quanto mais os desprezamos, tanto menor fica a sua força e tanto mais senhora de si fica a alma” (Livro da Vida, XXXI, 3.10). (N.T.)

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