No antigo Breviário da Igreja, a festa de hoje se chamava Dedicação do Santo Arcanjo São Miguel. Para compreender esse fato, é necessário conhecer um episódio ocorrido no tempo do Papa Gelásio I, na segunda metade do século V. Na Apúlia, há um monte que antigamente se chamava Gargano, atualmente Monte Sant’Angelo, ou Monte dos Anjos. Perto desse local, um pastor guardava seu rebanho. Um novilho afastou-se da manada e entrou nos bosques do monte, dirigindo-se para a entrada de uma gruta escondida por arbustos. 

Para fazer o animal sair da caverna e voltar para o rebanho, o pastor atirou uma flecha em sua direção. No entanto, a flecha virou-se e voou com grande força de volta para ele. O pastor e os que estavam presentes ficaram aterrorizados com o fato e ninguém se atreveu a aproximar-se da gruta. Então, foram falar com o bispo, que estava em Siponto, uma cidade vizinha, e informaram-no do ocorrido. 

“Aparição de São Miguel no Monte Gargano”, por Sebastián López de Arteaga.

Não duvidando de que um mistério divino estivesse oculto naquele local, o bispo ordenou à sua comunidade que jejuasse e rezasse três dias, para que Deus lhes revelasse bondosamente o mistério. Decorridos os três dias, o Arcanjo São Miguel apareceu ao bispo e anunciou-lhe que o local para onde fugira o novilho estava sob sua especial proteção. Manifestou também o desejo de que dedicassem o lugar à honra de Deus e à memória de São Miguel e de todos os anjos.    

O bispo, muito contente, reuniu o clero e o povo e, depois de informá-los sobre a revelação, organizou uma grande procissão para subir o monte. Encontraram lá uma grande gruta, semelhante a uma igreja escavada na rocha. Por cima da entrada havia uma abertura pela qual todo o interior recebia luz. Para oferecer nela o santo sacrifício da Missa, faltava apenas o altar, que foi rapidamente erigido pelo piedoso bispo. Pouco tempo depois, a própria igreja foi dedicada com grande solenidade a São Miguel e a todos os santos anjos. 

A fama desse acontecimento espalhou-se em pouco tempo por todos os cantos e atraiu um grande número de peregrinos à igreja. Os muitos milagres ali realizados eram um sinal visível de que a veneração e a invocação de São Miguel e dos outros santos anjos deviam ser muito agradáveis a Deus. A festa de hoje foi instituída para comemorar a dedicação da Igreja do Monte Gargano, e por isso se chama dedicação de São Miguel, já que ele é particularmente venerado nessa igreja.

Até 1962, a aparição deste Santo Arcanjo no Monte Gargano celebrava-se a 8 de maio no calendário litúrgico. Além desta, registram-se outras aparições de São Miguel, que deram ocasião, em diferentes épocas, à construção de esplêndidas igrejas a eles dedicadas, em Constantinopla, em Roma e na França, como se pode ler na história da Igreja.

“São Miguel aparece no Monte Gargano”, por Cesare Nebbia.
Foto do Santuário de São Miguel no Monte Gargano.

Mostra-nos a experiência que isso contribuiu para aumentar consideravelmente a veneração a esse grande príncipe celeste e, na verdade, temos razões muito sérias para lhe prestar uma honra especial, pois ele é a cabeça ou, como diz a Igreja, o príncipe das legiões celestes. É o primeiro daqueles espíritos bem-aventurados que estão continuamente na presença de Deus, diante de seu trono. Foi ele que, no primeiro momento de sua existência, voltou-se para o Todo-Poderoso e submeteu-se a Ele em perfeita obediência. Foi ele quem primeiro “pegou em armas”, por assim dizer, contra o orgulhoso Lúcifer, que queria igualar-se ao Altíssimo, recusando sujeitar-se a Ele.  

Sua humildade, obediência e zelo pela honra de Deus elevaram-no acima de todos no Céu, enquanto o orgulho, a desobediência e a perfídia rebaixaram o soberbo Lúcifer e o precipitaram no Inferno. São Miguel foi escolhido pelo Todo-Poderoso como protetor da Igreja de Cristo, tal como na antiga aliança era o protetor da sinagoga. Nos tempos antigos, zelava pelo bem-estar dos judeus verdadeiramente fiéis, como demonstram as palavras do Arcanjo São Gabriel ao profeta Daniel: “Eis que veio em meu socorro Miguel, um dos primeiros príncipes” (Dn 10, 13). 

O anjo custódio da Pérsia desejava que os israelitas permanecessem mais tempo entre os persas, pois muitos deles chegaram ao conhecimento do verdadeiro Deus associando-se ao povo eleito. O santo Arcanjo Gabriel, no entanto, desejava que os israelitas fossem libertados da Pérsia, pois temia que uma intimidade excessiva com os pagãos pudesse levá-los à infidelidade para com o Deus verdadeiro. São Miguel uniu suas orações às de São Gabriel, e assim demonstrou seu cuidado pelos verdadeiros fiéis. E agora não está menos atento aos fiéis do Novo Testamento e a toda a Igreja. Ele vem em nosso auxílio, reza por nós e protege-nos dos inimigos. No fim do mundo, manifestará sua proteção em favor da Igreja, principalmente contra o Anticristo, maior inimigo dos cristãos, como São Gabriel revelou a Daniel: “Nesse tempo se levantará Miguel, o grande príncipe, protetor dos filhos do teu povo” (Dn 12, 1).  

Este Santo Arcanjo é também encarregado de levar as almas dos homens ao trono do Altíssimo para o julgamento. A fim de que a sentença deles seja favorável, ajuda-os intensamente no último combate, que normalmente têm de travar contra o Maligno no fim da vida. Nessa ocasião, o demônio usa todos os seus poderes para vencer o homem e torná-lo infeliz por toda a eternidade. 

São Miguel Arcanjo, numa pintura do Mestre de Zafra.

São Miguel, nomeado por Deus para auxiliar e fortalecer nossa alma nesse perigoso combate, ajuda-nos a vencer, e por isso a Santa Igreja lhe diz, em nome de todos os fiéis, nas orações pelos moribundos: “São Miguel Arcanjo, defendei-nos no combate, para que não pereçamos no dia do Juízo Final”. Na ladainha de todos os santos, ela também nos ensina a invocar esse Santo Arcanjo antes de todos os outros espíritos celestes. 

Mas, se quisermos obter sua intercessão e gozar de sua assistência em nosso último combate, é necessário que nos esforcemos por imitar o exemplo dele, lutando corajosamente contra o espírito maligno. Entre as diferentes representações de São Miguel, há uma em que ele segura um escudo com as palavras: Quis ut Deus? — “Quem é como Deus?” Eis o significado de seu nome em hebraico. O Arcanjo usou esta palavra como arma contra o orgulhoso Lúcifer, que desejava ser igual ao Senhor. “Quem é como Deus?” “Quem é igual a Deus?” Com tais palavras, ele venceu e precipitou no Inferno a Lúcifer e seus seguidores. 

As mesmas armas e o mesmo escudo devemos usar em todas as tentações. “Quem é como Deus?” Quem como Deus é tão poderoso, tão sábio, tão belo, tão amável? Quem como Deus é tão temível? Quem como Deus pode recompensar meu serviço? Quem como Deus pode me fazer tão bem ou tão mal? A quem tenho razões para servir e obedecer tanto quanto a Deus? Que graça devo procurar mais do que a de Deus? Que desaprovação devo temer mais do que a de Deus? 

Quem usa estes e outros pensamentos salutares como armas espirituais contra o espírito do Inferno, luta segundo o exemplo de São Miguel, e sempre vencerá Satanás. E aqueles que agora se acostumam a combater assim, têm razões para esperar a vitória sobre ele na derradeira batalha, com o auxílio certo deste Santo Arcanjo. Para concluir, quero citar as belas palavras de São Lourenço Justiniano, que exorta todos os cristãos a venerar Miguel: 

É nosso dever honrar o príncipe das legiões celestes. Devemos louvá-lo especialmente por causa do elevado estado de graça em que se encontra; e porque Deus o distinguiu, concedendo-lhe uma dignidade tão elevada; por sua força invencível, pelo favor que o Todo-Poderoso lhe concedeu e por sua constância heroica nos combates. Mas, apesar de tudo isso, devemos honrá-lo apenas em Deus, que criou a ele e a nós. Ele é muito poderoso junto do Altíssimo. É bem conhecida a gloriosa vitória que obteve no Céu, logo após a Criação, contra os anjos rebeldes. Não é sem razão que nossa Mãe, a Santa Igreja, esforça-se por honrá-lo de modo especial, porque sabe que a Majestade divina o entregou a ela como protetor, mediador e receptor de todas as almas eleitas. Por isso, todos devem reconhecer São Miguel como seu protetor e, louvando-o apropriadamente, honrá-lo com orações devotas, confiar-lhe suas preocupações e agradá-lo com a reforma de suas vidas, pois é tão grande o seu amor que ele não pode recusar nossas orações, rejeitar nossa confiança ou desconsiderar o nosso afeto, já que ele protege os humildes, ama os castos, guia os inocentes, guarda os piedosos nesta vida temporal e conduz-nos ao seu lar celestial.

Considerações práticas

I. Enquanto milhares de outros anjos se rebelaram contra Deus, São Miguel não seguiu o exemplo deles, manteve-se fiel. Também você não deve seguir o mau exemplo dos outros, mas cumprir os Mandamentos de Deus. Permaneça fiel ao Senhor, ainda que milhares de outras pessoas o abandonem. São Miguel honrou a Deus com zelo e se opôs àqueles que não quiseram ser obedientes ao Criador. Também você pode fazer isso. Quando outros atacarem, na sua presença, a verdadeira fé, as cerimônias e os mandamentos da verdadeira Igreja, a pureza e a honra do próximo; quando você vir que transgridem as leis de Deus e da Igreja, defenda a honra do Todo-Poderoso e faça o possível para impedir o mal. Se estiver numa situação tal que não lhe seja possível dizer ou fazer muito, mostre, com seu silêncio e seriedade, que está descontente com tais ofensas à Majestade do Altíssimo. 

São Miguel lutou corajosamente contra Lúcifer e seus sequazes. Por isso, Deus o elevou acima de todos os espíritos celestes. Lúcifer, e os seus, tenta fazer com que você se afaste de Deus e seja infiel a Ele. Combata-o corajosamente e você também será exaltado. Diga-lhe: “Quem é como Deus? Quem como Deus é tão bondoso, tão poderoso, tão amável?” E para que você possa lutar com vigor, tanto na vida como na morte, invoque São Miguel com frequência e fervor: “Ó São Miguel, ajudai-nos aqui a lutar e a vencer o inimigo!”

São Miguel Arcanjo, numa pintura de Bartolomé Esteban Murillo.

II. São Miguel é exaltado por sua fidelidade e por defender a honra do Todo-Poderoso. Mas qual foi o destino de Lúcifer e seus sequazes? Foram precipitados no Inferno, que Deus havia criado para os rebeldes e todos aqueles que fossem desobedientes como eles. Eis o fim dos que desobedecem ao Criador e o ofendem. 

Reflita cuidadosamente sobre esse ponto. Lúcifer e um número quase incontável de espíritos celestiais foram lançados no fogo eterno por causa do pecado, de um único e primeiro pecado. Deus não poupou nenhum de todos esses espíritos nobres, nem lhes deu um só instante para arrepender-se, mas atirou-os, todos, imediatamente no Inferno. Um único pecado foi punido com a condenação eterna, e foi apenas um pecado por pensamento. Compreende então, afinal, como é grande a maldade de um único pecado? Como iludir-se com a ideia de que os pensamentos são livres, ou que não é possível cometer um grande pecado por meio deles? Como acreditar naqueles que dizem que Deus não se importa muito com os pecados e perdoa-os muito facilmente? 

Na verdade, ou devemos dizer que Ele é injusto, ou que a maldade do pecado é muito grande. A primeira coisa não nos atrevemos a dizer, pois seria blasfemo; admitamos então a segunda: o Deus justo pune um único pecado com o Inferno, mas não o castiga com mais severidade do que ele merece. Portanto, um único pecado mortal merece ser punido no Inferno por toda a eternidade; logo, deve ser suma, extrema, a maldade de um pecado mortal. O que objetar a isso? Certamente, se o exemplo de Lúcifer, e o justo castigo que ele e seus sequazes receberam de Deus, não for suficiente para abrir os seus olhos, fazê-lo reconhecer a maldade do pecado e evitá-lo a todo custo, você está perdido. 

Medite também sobre as palavras de São Pedro, segundo as quais Deus, ao castigar os anjos rebeldes, mostra a todos os pecadores como haverá de puni-los. Se Deus não poupou tão nobres espíritos, como você pode imaginar que Ele o poupará? Portanto, comprometa-se hoje a temer o pecado, a temê-lo mais do que todos os males da terra, mais ainda que o próprio Inferno: porque ele é verdadeiramente um mal maior que o próprio Inferno. Diz São João Crisóstomo: “Muitos consideram o Inferno o pior dos males, eu considero o pecado um mal ainda maior.”  

Referências

  • Extraído, traduzido e adaptado passim de: Lives of the saints: compiled from authentic sources with a practical instruction on the life of each saint, for every day in the year, v. 2. New York: P. O’Shea, 1876, p. 399ss.

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