Na tradicional oração da Coleta da Quinta-feira Santa (do Missale Romanum de 1962) fica claro, acima de qualquer dúvida, que a centenária lex orandi da Igreja ensina que Judas Iscariotes está perdido, condenado para sempre ao fogo do Inferno

Deus, a quo et Iudas reátus sui pœnam, et confessiónis suæ latro prǽmium sumpsit, concéde nobis tuæ propitiatiónis efféctum: ut, sicut in passióne sua Iesus Christus, Dóminus noster, divérsa utrísque íntulit stipéndia meritórum; ita nobis, abláto vetustátis erróre, resurrectiónis suæ grátiam largiátur: Qui tecum vivit et regnat… — Ó Deus, de quem Judas recebeu a pena do seu crime, e o ladrão a recompensa da sua fé, concedei-nos os efeitos da vossa misericórdia; para que, assim como Nosso Senhor Jesus Cristo na sua paixão deu a cada um deles a diferente recompensa que mereciam, assim a nós, destruindo o erro do homem velho, conceda a graça da sua Ressurreição. Ele que, sendo Deus, vive e reina…

Essa conclusão já foi tida como certa por todos. Por que, então, tantas pessoas hoje em dia dizem “não saber” o destino final de Judas?

Testemunho da Sagrada Escritura

“A Última Ceia”, por Carl Bloch.

Considerem-se, primeiramente, apenas as evidências bíblicas. Nosso Senhor diz: “O Filho do Homem se vai, conforme está escrito a seu respeito. Ai, porém, daquele por quem o Filho do Homem é traído! Melhor seria que tal homem nunca tivesse nascido!” (Mt 26, 24). Ora, é impossível dizer de um homem que cai em pecado mortal, porém se arrepende — como Pedro, que também traiu a Cristo, ou Saulo, que perseguiu Jesus ao perseguir os cristãos —, que “melhor seria que nunca tivesse nascido” ou “existido”. Pois, somente daqueles condenados a sofrer eternamente os tormentos do inferno se pode dizer, com alguma verdade: melhor fora que não tivessem existido. Pelo contrário, quem comete um pecado mortal e se arrepende traz alegria aos anjos (cf. Lc 15, 10) e herdará o Reino dos céus; não há que se lamentar a existência de tal homem, e é eminentemente bom que tenha nascido, pois ele pode assumir um papel como o do primeiro Papa ou o do Apóstolo dos Gentios, e após a morte gozará da visão beatífica para sempre. Assim, as palavras de Jesus só podem ser verdadeiras se Judas estiver perdido devido a um pecado mortal sem arrependimento.

Tudo isso concorda, é claro, com o que se narra a respeito da morte de Judas: “Ele jogou as moedas no santuário, saiu e foi enforcar-se” (Mt 27, 5). Ou seja, ele realizou um gesto de desespero e depois cometeu suicídio, que é um pecado mortal. Tal fim era cabível ao único seguidor próximo de Jesus caracterizado no Evangelho como entregue ao demônio: “Satanás entrou em Judas, chamado Iscariotes, um dos doze” (Lc 22, 3); “Depois do pedaço de pão, Satanás entrou em Judas” (Jo 13, 27).

São Pedro é testemunha desse entendimento a respeito da morte e condenação de Judas no primeiro capítulo dos Atos dos Apóstolos: 

Irmãos, é necessário que se cumpra o que o Espírito Santo predisse na Escritura pela boca de Davi, acerca de Judas, que foi o guia daqueles que prenderam Jesus. Ele estava alistado entre nós e tinha recebido a sua parte no nosso ministério. Este homem, depois de adquirir um campo com o salário da sua iniquidade, tendo caído de cabeça, rebentou pelo meio, e todas as suas entranhas se derramaram [...]. Com efeito, está escrito no livro dos Salmos: “Fique deserta a sua morada, e não haja quem habite nela”. E: “Receba outro o seu ministério” (At 1, 16-20). 

Após dois candidatos serem apresentados, José e Matias, o relato continua: 

E, orando, disseram: “Tu, Senhor, que conheces os corações de todos, mostra-nos destes dois o que escolheste para ocupar o lugar deste ministério e apostolado, do qual se transviou Judas para ir para o seu lugar” (At 1, 24-25). 

O primeiro Papa argumenta que Judas, por sua transgressão, decaiu do ofício apostólico para sempre. Note-se que Judas foi o único apóstolo cujo lugar precisou ser ocupado depois de sua morte. Quando Tiago foi morto por Herodes (cf. At 12, 2), Pedro e os outros não nomearam outro homem como substituto de Tiago. Houve sucessores dos Apóstolos (e muito mais que doze!), mas nenhuma outra substituição. Por fim, com a morte, todos os onze originais, juntamente com Matias, deixaram este mundo para se tornarem os fundamentos eternos da Jerusalém celeste: “O muro da cidade tinha doze fundamentos, e neles os doze nomes dos doze Apóstolos do Cordeiro” (Ap 21, 14). Dizendo de modo bem simples, um apóstolo que morreu em estado de graça é apóstolo para sempre, insubstituível, seguindo rumo à sua recompensa como pedra fundamental e permanente da Igreja. Isso só pode significar que Judas, que teve de ser substituído, morreu em pecado, e perdeu seu ministério e apostolado eternamente. Ele foi “para o seu lugar”, ou seja, o local que lhe convinha: o Inferno. 

Testemunho dos Padres e Doutores da Igreja

Essa conclusão, que se encaixa tão bem nas evidências bíblicas, está em tudo quanto é escrito dos Padres e Doutores da Igreja. De inúmeros exemplos, alguns serão suficientes. O Papa São Leão Magno ensina que Judas nunca se arrependeu de seu grave pecado — e que cometeu suicídio devido a seu desespero, ajuntando culpa sobre culpa: 

Esta indulgência, não a pôde alcançar o traidor Judas porque, filho da perdição, a cuja direita estava o diabo (Sl 108), desesperou-se de Cristo consumar o sacramento da redenção universal. Com efeito, tendo o Senhor morrido por todos os ímpios, pudera também este, talvez, receber o remédio, não se houvesse apressado para a forca. Mas, maligno de coração, dado agora a furto e a fraudes, nunca o impressionara qualquer dos exemplos de misericórdia do Salvador. Afastando-os da mente o ímpio traidor, insurgiu-se contra si mesmo, não com ânimo de quem se arrepende, mas com o furor de quem se condena; de sorte que, tendo vendido aos Algozes o autor da vida, pecou, para cúmulo de sua condenação, no ato mesmo de morrer (Serm. 62.4 [ML 54,351s]) . 

Santo Agostinho sustenta a mesmíssima visão:

Se, com efeito, não é lícito matar, por autoridade privada, nem sequer um homem culpado — licença que lei alguma concede —, decerto também o que se mata a si mesmo é homicida. Se, pois, temos razão em detestar o ato de Judas, e se é a verdade que o julga, o ter-se prendido a um laço antes lhe agravou do que expiou aquela criminosa traição; pois que, desesperando da misericórdia de Deus, se arrependeu para a perdição, sem dar lugar ao arrependimento que salva. Ao matar-se, matou Judas um criminoso, e chegou ao fim da vida sendo réu da morte não só de Cristo, mas também da própria (De Civ. Dei 1.17 [ML 41,30s]).

Da tradição oriental, temos Santo Efrém, o Sírio:

Tesoureiro do veneno de Satanás foi Judas,
e embora seja oculta a forma desse demônio,
no traidor ela se faz de todo visível;
embora seja longa a história desse anjo mau,
no Iscariotes ela é simplificada (Hinos sobre o Paraíso XV).

E o mesmo, uma vez mais:

Ah! de quantos bens, de quanta alegria se privam os destituídos de caridade! Judas dela escarneceu e deixou a companhia dos Apóstolos. Abandonando a Luz verdadeira, seu próprio Mestre, e odiando a seus irmãos, caminhou ele rumo à escuridão. Por isso Pedro, o Príncipe dos Apóstolos, diz: “Judas se transviou para ir para o seu lugar” (At 1, 25). E também o divino João: “Quem odeia seu irmão, está nas trevas, anda nas trevas e não sabe para onde vai, porque as trevas cegaram os seus olhos” (1Jo 2, 11) (Serm. 5 in Mt 11, 29).

Santo Tomás de Aquino, por sua vez, escreve:

Salvar Judas […] seria contrário à presciência e à disposição pela qual [Deus] lhe preparou a pena eterna; donde, a ordem a justiça não impede que se pudesse salvar Judas, mas impede-o a ordem da presciência e da disposição eterna (In IV Sent. d. 46, q. 1, a. 2, qc. 2 ad 3).

O abuso da graça está para o efeito da condenação assim como o bom uso da graça está para o efeito último da predestinação. Pois bem, o abuso da graça, em Judas, foi a razão de sua predestinação; segundo isto, tornou-se réprobo por ter morrido sem a graça. Mas a causa pela qual não teve a graça não foi porque Deus não lha quis dar, mas porque ele mesmo não a quis receber, como dizem Anselmo e Dionísio (De verit. 6, 2 arg. 11: Tomás considera verdadeira esta parte da objeção).

E a seráfica virgem, Santa Catarina de Sena, com sua franqueza habitual, diz sem rodeios [Deus Pai falando com ela]: 

Este é o pecado que não será perdoado, nem aqui nem no além. O desprezo voluntário da minha misericórdia constitui pecado mais grave que todos os anteriores. Neste sentido, o desespero de Judas desagradou-me e foi mais grave que a sua traição. Também para meu Filho! É por causa deste (último) julgamento falso que o pecador sofre a repreensão, ou seja, porque acha que sua falta é maior que meu perdão. Este é o motivo da punição, indo sofrer eternamente com os demônios (O Diálogo [n. 37]. Trad. de João Alves Basílio. São Paulo: Paulus, 1984, p. 90s).

Deveria parecer óbvio que Judas está perdido, por duas razões: primeiro porque, caso contrário, as palavras de Jesus não fariam sentido; segundo, porque ele é retratado tirando a própria vida em desespero, que é um pecado mortal (desespero, um dos piores) levando a outro pecado mortal (suicídio). No passado, a Igreja sequer permitia que suicidas recebessem sepultura eclesiástica, pois tinha-se como certo que, qualquer um que odiasse a dádiva da vida a ponto de esnobá-la, obviamente não poderia ter o amor de Deus em seu coração. Hoje em dia estamos mais atentos à confusão e anarquia psicológica em que muitas pessoas, especialmente no mundo moderno, podem estar imersas, mas isso não torna o suicídio neutro ou inofensivo. Ele continua sendo, objetivamente, o pecado mais grave contra a vida humana, pois atenta contra a própria vida da pessoa, pela qual lhe foi dado o mais profundo amor natural (daí o “amarás a teu próximo como a ti mesmo”). Aquele que comete suicídio em estado de desespero está rejeitando a base mesma do amor por qualquer outra pessoa, seja humana ou divina. 

Teologia contemporânea 

“Judas se enforca”, por James Tissot.

Mas voltemos à teologia contemporânea. Se é possível que Judas não esteja no Inferno, não haveria uma razão igualmente boa para perguntar, com bastante sinceridade, se há alguém que seja no Inferno? O que obviamente nos leva à infame pergunta de Hans Urs von Balthasar: “Podemos ousar acreditar que todos homens se salvem?”

Ao responder à própria pergunta de forma afirmativa, Balthasar zomba de todo o vasto e unânime comentário cristão aos Evangelhos desde a era apostólica, e questiona algo que, para qualquer um que leia as palavras mesmas do Evangelho e das Epístolas, é uma certeza: o Inferno existe e as almas vão para lá — a de Judas e muitas outras, como Nossa Senhora mostrou aos pastorinhos de Fátima. 

Dadas suas próprias artimanhas linguísticas, tinha Balthasar o direito de reclamar quando seus contemporâneos começaram a desconstruir os Evangelhos e a vida de Cristo? Ele próprio tomara uma doutrina inteiramente clara em seu significado — não ameaças vazias de punição eterna, mas ela mesma e a certeza de sua aplicação a todos que não se arrependem de seus pecados — e a tornara líquida, ambígua e cheia de pontos de interrogação. Uma vez admitido esse tipo de manobra sofística, o que sobra para o nascimento virginal, a ressurreição ou mesmo a divindade de Cristo?

Estamos lidando aqui com apenas mais um exemplo de como a Igreja hoje ficou totalmente confusa com o pensamento moderno relativista, em vez de trilhar as santas pegadas dos grandes Padres e Doutores. Se todos eles seguiram o mesmo caminho, já pavimentado e todo sinalizado, por que “inventar” um novo, abrindo picadas no meio do mato?

Por essas e outras razões, o conteúdo objetivo da Missa antiga continua a ser uma fonte segura para nossa oração. Nela está a doutrina sã e estável da Igreja, da qual seus textos dão um testemunho preciso e perene. Nela somos lembrados a todo instante que o temor do Senhor é o princípio da sabedoria; que não devemos temer aquele que pode destruir o corpo, mas, sim, Aquele que pode condenar a alma; e que nosso destino eterno é ou a felicidade eterna ou a miséria sem fim.

Firmes na rocha sólida da verdade católica, não sejamos loucos e temerários de negar que há muitas almas no Inferno, e que a cada dia, mais e mais almas se juntam a elas. Não é a liturgia que deve ser mudada e “readequada” à nossa teologia em mudança, com recortes e colagens, rascunhos e rabiscos. Ao contrário: somos nós que devemos acolher com gratidão e aceitar humildemente o que nos legaram dois mil anos de Magistério e liturgia — inclusive a bela Coleta antiga para a Quinta-feira Santa. A tradição é o nosso terreno estável, nossa fiel intérprete do Evangelho de Cristo Senhor.

Referências

  • A maior parte desta matéria — tirando a omissão e adaptação de alguns trechos no início e no final — foi copiada integralmente de: Peter Kwasniewski, “Damned Lies: On the Destiny of Judas Iscariot”. In: Rorate Caeli, 30 mar. 2015.

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