Todos os que saem desta vida, diz Agostinho, “são ou muito bons ou muito maus, ou medianos.

  • Os sufrágios dirigidos aos muito bons são ações de graças;
  • os dirigidos aos maus são consolos para os vivos;
  • os dirigidos aos medianos são expiações”.

Chamam-se muito bons os que vão imediatamente para o Céu, sem passar pelo fogo do Purgatório. Eles são de três tipos: os batizados, os mártires e os homens perfeitos, em cuja perfeição acumularam ouro, prata e pedras preciosas, isto é, amor a Deus, amor ao próximo e boas obras, sem terem pensado em agradar ao mundo, mas apenas a Deus. Eles podem cometer pecados veniais, mas o fervor da caridade consome neles o pecado, da mesma forma que uma gota de água é totalmente absorvida pelo fogo e por isso não têm nada que precise ser cremado.

Logo, rezar ou oferecer sufrágios a pessoas desses três tipos é ofendê-las: “Rogar por um mártir é fazer injúria a ele”, diz Agostinho. No entanto, rogar por alguém muito bom, na incerteza de que sua alma esteja no Céu, é fazer dessas preces ações de graças que redundam em proveito daquele que reza, segundo está escrito: “Minha oração retorna ao meu seio” (Sl 34, 13).

Para essas três espécies de pessoas — os batizados, os mártires e os homens perfeitos —, o Céu está imediatamente aberto após a morte, e elas não passam pelo fogo do Purgatório.

  • Ele se abriu para Cristo depois de seu batismo, conforme Lucas 3, 21: “Estando Jesus batizado e em prece, o Céu foi aberto”. Isso mostra que o Céu se abre a todos os batizados, sejam crianças pequenas, sejam adultos, de maneira que logo depois de falecer voam para lá. O batismo, em virtude da paixão de Cristo, purifica de todo pecado, seja original, seja mortal, seja venial.
  • Ele se abriu para Estêvão enquanto era apedrejado, conforme Atos dos Apóstolos 7, 56: “Vejo os Céus abertos”. Isso mostra que o Céu abre-se a todos os mártires, que voam para lá quando morrem, e se faltava algo a expiar pelo fogo, tudo é anulado pela foice do martírio.
  • Ele se abriu para João, que era de alta perfeição, conforme Apocalipse 4, 1: “Eu vi a porta do Céu aberta”. Isso mostra que para os homens perfeitos que cumpriram totalmente sua penitência e não cometeram pecados veniais, ou que, se os cometeram, consumiram-nos em seguida no fervor da caridade, o próprio Céu abre-se incontinenti e eles entram para ali reinar eternamente.

Os muito maus, que se tem certeza de terem sido precipitados no abismo do Inferno, não devem receber nenhum sufrágio, segundo disse Agostinho: “Se eu soubesse que meu pai está no Inferno, não rogaria por ele mais do que pelo diabo”. Oferecer sufrágio a algum condenado, por não se ter certeza de sua danação, não lhe serve para nada [1], nem para livrá-lo de seus tormentos, nem para abrandar ou diminuir suas penas, nem para suspender sua danação por um tempo, sequer por uma hora, nem para lhe dar uma força maior a fim de suportar mais facilmente os sofrimentos. No Inferno não há redenção alguma.

Os medianos são aqueles que levam consigo coisas para queimar, lenha, feno e palha, ou seja, aqueles que foram surpreendidos pela morte sem terem completado a penitência necessária. Eles não são suficientemente bons para dispensar sufrágios, nem bastante maus para que esses sufrágios não lhes possam ser proveitosos. Os sufrágios dirigidos a eles são expiações. Portanto, é somente a eles que os sufrágios podem ser úteis.

Na maneira de fazer esses sufrágios, a Igreja tem o costume de observar principalmente três dias, o sétimo, o trigésimo e o aniversário. A razão disso está assinalada no livro do Ofício Mitral.

  • Observa-se o sétimo dia ou para que as almas cheguem ao repouso do sabá eterno, ou para que sejam remidos todos os pecados cometidos na vida, que está dividida em períodos de sete dias, ou para reconciliar os pecados cometidos com o corpo, que se compõe de quatro humores [2], e com a alma, que tem três qualidades (memória, inteligência e vontade).
  • Observa-se o trigésimo, que se compõe de três dezenas, para purificá-las das faltas cometidas contra a Trindade e o Decálogo.
  • Observa-se o aniversário de morte, para que dos anos de calamidades elas cheguem aos anos da eternidade.

Da mesma maneira que celebramos o aniversário dos santos para honra deles e utilidade nossa, celebramos o aniversário dos defuntos para utilidade deles e devoção nossa.

Referências

  • Texto extraído do livro “Legenda áurea: vidas de santos”. Trad. de Hilário Franco Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, pp. 920-922.

Notas

  1. As orações que fazemos pelos condenados não lhes servem de nada, mas, entenda-se bem, como nesta vida não temos condições de saber com certeza quem foi ou não para o inferno, não devemos privar antes do tempo certas pessoas de nossas orações, por mais terrível que tenham sido suas vidas. Na verdade, se algumas delas se salvaram, é então que elas mais precisam de nossas orações, para que se livrem do purgatório. Se foram condenadas, no entanto, nem por isso são inúteis as orações que fazemos: Deus se aproveita do valor de todas elas, por exemplo, para consolar os vivos, como diz S. Agostinho. (Nota de nossa equipe.)
  2. Para a ciência medieval, o corpo humano é formado pelos quatro elementos (terra, água, fogo, ar) e suas quatro qualidades essenciais (secura, umidade, calor, frio). A combinação de tais fatores define os humores, quer dizer, as características físicas e psicológicas do ser humano: os indivíduos de tipo sanguíneo são sociáveis por estarem ligados ao ar, quente e úmido; os coléricos impulsivos devido à sua relação com o fogo, quente e seco; os melancólicos pessimistas por estarem associados à terra, fria e seca; os fleumáticos introvertidos em função de sua ligação com a água, fria e úmida. (Nota do autor.)

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