A memória litúrgica do Beato Carlos da Áustria é celebrada no dia 21 de outubro, mas o dia de seu nascimento para o Céu (que a Igreja chama de dies natalis) é hoje, 1.º de abril. Morria neste mesmo dia, portanto, em 1922, o último monarca do Império Austro-Húngaro.

Mencionamos este fato porque entender em que condições se deu a morte deste grande servo de Deus é fundamental para entender também a sua santidade.

Comecemos por observar que, embora havendo nascido em território austríaco, Carlos morreu exilado na Ilha da Madeira, território português. Seu desterro, no entanto, foi apenas o “coroamento” de um punhado de sacrifícios que as circunstâncias históricas exigiram que ele fizesse:

Na época em que o Beato Imperador Carlos foi exilado para a Ilha da Madeira, sua vida já era uma vida feita de sacrifícios pelos outros. Ele perdera sua pátria, seu Império e seu trono. Seu próprio povo confiscou-lhe a fortuna privada e suas propriedades. Sem dinheiro, sem amigos e sem condições de ganhar a vida, tinha para sustentar a esposa, sete filhos e um outro ainda por nascer. Foi forçado a viver, sob a vigilância estrangeira, numa ilha distante, numa casa desagradavelmente úmida que não tinha condições de ser habitada [1].

De sua terra natal, portanto, ao estrangeiro; do palácio imperial a um casebre inóspito; da abundância à carestia: eis as drásticas mudanças enfrentadas pelo imperador e por sua família.

O Beato Carlos da Áustria.

Mas — deixemos claro desde o princípio — é evidente que não foi o fato de o Beato Carlos ter perdido o que perdeu, o que fez dele um santo. Afinal de contas, quantos homens e quantas famílias não perdem suas casas, seus bens, tudo o que têm, enfim, e não são beatificados? Se a privação das coisas deste mundo fosse uma virtude em si mesma, poderíamos canonizar todos os materialmente pobres e condenar sem mais ao inferno os ricos e abastados...

Mas não, o Evangelho é muito claro ao dizer que são “bem-aventurados os pobres em espírito” (beati pauperes spiritu) e é a eles que pertence o Reino dos céus (Mt 5, 3). Não basta, portanto, perder; tudo depende do modo como recebemos as perdas das mãos de Deus. Não basta, pois, ser pobre, não possuir coisas materiais; o que importa sobretudo é viver o desapego, “o que importa — nas palavras do Apóstolo — é que os que têm mulher vivam como se a não tivessem; os que choram, como se não chorassem; os que se alegram, como se não se alegrassem; os que compram, como se não possuíssem; os que usam deste mundo, como se dele não usassem” (1Cor 7, 29-31). E por quê? “Porque a figura deste mundo passa”.

Ah, caro leitor, se existe uma verdade que deve entrar em nossa mente e coração é esta: a figura deste mundo passa.

Estamos falando da morte. Pois bem, lembremo-nos que, com a morte tudo se acaba, tudo se perde. O bem-aventurado Carlos, por exemplo: a pátria de que ele foi exilado, o Império que ele viu dissolver-se, o trono que ele teve de abandonar, as propriedades que lhe foram tomadas… tudo isso ele já teria de deixar ao partir deste mundo. A grande graça recebida por ele — mas que para o mundo é desgraça — foi desapegar-se de tudo isso antes de morrer: ao perder o que tinha com o coração unido ao de Cristo, o imperador aprendeu a viver aquela pobreza de espírito de que fala o Evangelho — e que é também, no dizer de Santo Afonso de Ligório, uma espécie de morte: “Bem-aventurados os que, ao morrer, já se acham mortos para as afeições terrenas. Estes não temem a morte, antes a desejam e abraçam alegremente. Em vez de separá-los dos bens que amam, une-os ao Sumo Bem, que é o único objeto digno de amor e que os tornará eternamente felizes” [2].

Para dar um exemplo de como o Beato Carlos enfrentou bem todas as suas perdas, consideremos o relato seguinte, de uma testemunha chamada Maria Lackner, e que passou a última virada de ano do imperador em sua casa, na Ilha da Madeira (nesta altura, o rei já havia perdido tudo e, dentro de três meses, viria a óbito):

À tarde, como devoção de encerramento do ano, houve na capela da casa uma solene Bênção Eucarística. Estávamos apenas o Imperador, a Imperatriz e nós. Também foi rezado o Te Deum. Atrás de nós, ficava um ano que tinha sido o mais duro da vida do Servo de Deus. Ele encontrava-se longe da pátria, no exílio; na mais drástica necessidade material; estava separado de seus filhos e não sabia o que o dia seguinte haveria de lhe trazer de mal. Durante o Te Deum, nós, um após o outro, fomos nos silenciando, porque a dor nos fazia fugir a voz. Somente o Servo de Deus manteve-se firme e entoou forte e claramente o cântico ambrosiano até o fim, acentuando cada palavra. (...) Olhei-o com admiração. Percebia-se com toda evidência que para ele, naquele momento, existia apenas Deus — ninguém mais — e que aquele Te Deum era um íntimo diálogo entre Deus e o seu mais fiel servidor. Na época, ele não sabia se tornaria a ver seus filhos, não sabia o que o dia seguinte haveria de lhe trazer, e contudo, rezou com muito fervor aquela oração de ação de graças [3].

“Para ele, naquele momento, existia apenas Deus — ninguém mais”. O Beato Carlos havia aprendido o sentido de seu reinado: entregar tudo Àquele de quem ele tudo havia recebido. Tanto que, ao final de sua vida, ele dirá à sua esposa: “Deus deu-me a graça de que, sobre a terra, não exista mais nada que eu não esteja pronto a sacrificar por seu amor, para o bem da Santa Igreja” [4].

Para se medir como era radical a sua vivência da pobreza, basta ter em mente que era “seu guarda-roupa de tal modo exíguo, que foi preciso pedir de volta um casaco que, algum tempo atrás, o Rei tinha dado a um de seus criados, para que fosse sepultado com ele” [5]. Foi tão grande o desapego deste monarca que nem uma roupa para lhe servir de mortalha!

Seu exemplo pode nos deixar espantados e poderíamos até nos perguntar, em nosso íntimo, se não seria exagerado demais chegar a esse ponto, ainda mais um rei, com um nome a zelar e uma dignidade a manter…

Mas seria suficiente para acabar com nosso escândalo lembrar que o Rei de todo o universo, o próprio Deus, Senhor do céu e da terra, morreu como um criminoso, despojado de suas vestes e sem ter sequer onde reclinar a cabeça. Queremos porventura exemplo de pobreza maior do que esse? De que perdas teríamos nós a reclamar sobre essa terra, se o próprio Tudo não se apegou ciosamente do ser igual a Deus, mas fez-se em tudo aos homens semelhante e morreu obedecendo até à morte, e morte ignominiosa numa cruz (cf. Fl 2, 7-8)? Que pobrezas haveremos de lamentar, se o nosso Deus nasceu pobre numa manjedoura, foi mais pobre ainda em sua vida e morreu paupérrimo [6], nada lhe restando “a não ser um madeiro” [7]?

Aprendamos, pois, com os exemplos de Nosso Senhor e do Beato Carlos da Áustria o que significa “amar a Deus sobre todas as coisas”: a nós, se não for pedido a pobreza absoluta, é preciso ao menos estarmos dispostos a sacrificar tudo o mais por causa dEle. Talvez não nos seja necessário sequer ir atrás de perdas e mortificações… Os acontecimentos da vida podem estar exigindo de nós, hic et nunc, aqui e agora, o sacrifício de um hábito qualquer, o sacrifício de um bem que possuímos, o sacrifício de uma pessoa de que gostamos… E nós, em nosso egoísmo, talvez ainda estejamos resistindo interiormente à vontade de Deus, recusando-nos a entregar aquilo que Ele manifestamente nos pede!

Nesses casos, caro leitor, em que “a Cruz aparece sem a procurarmos”, estejamos atentos: “é Cristo que pergunta por nós. E se por acaso, perante essa Cruz inesperada, e talvez por isso mais escura, o coração manifesta repugnância”, sigamos o conselho de São Josemaría Escrivá: sem darmos consolos a nosso coração, digamos-lhe “como em confidência: “Coração: coração na Cruz, coração na Cruz!” [8].

Referências

  1. Novena pedindo a intercessão e canonização do Beato Imperador Carlos da Áustria, 2.º dia.
  2. Preparação para a morte, II, 3.
  3. Giovanna Brizi, A vida religiosa do Beato Carlos da Áustria, 2.ª ed., Rio de Janeiro, Edições Lumen Christi, 2014, pp. 11-12.
  4. Ibid., p. 67.
  5. Ibid., p. 72.
  6. Pauper in nativitate, pauperior in vita et pauperrimus in cruce”, em: Tratado da Paixão do Senhor, II, 3 (PL 184, 639).
  7. São Josemaría Escrivá, Via Sacra, n. 10.
  8. Ibid., n. 5.

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