A caridade fraterna é parte imprescindível da espiritualidade cristã. Sem ela, cairíamos com facilidade na tentação do individualismo, algo, infelizmente, tão difundido em nossa época. Tamanha é a sua importância que não poucos santos dedicaram verdadeiros tratados ao assunto. Também enxergamos isso na liturgia. Neste Tempo Pascal, por exemplo, lemos por três vezes no Evangelho o capítulo da vida de Jesus em que Ele, dirigindo-se aos apóstolos, chama-os de amigos: "Eu vos chamo amigos, porque vos dei a conhecer tudo o que ouvi de meu Pai" (Jo 15, 15). A bem da verdade, uma autêntica vida espiritual é aquela que se adquire na intimidade com Cristo. Essa intimidade nos ajuda a perceber o Seu amor, a aceitá-lo em nossos corações e, mais importante, a retribuí-lo amando o próximo.
"Ninguém tem amor maior do que aquele que dá sua vida pelos amigos" (Jo 15, 13). Assim diz Jesus aos seus discípulos, numa das páginas mais belas do Evangelho de São João. Trata-se de um discurso sincero, que brota de um coração livre. Jesus ama de verdade. O Seu amor é benevolente e beneficente, pois não deseja outra coisa senão o bem de seus irmãos e possui verdadeira eficácia. Não pede nada em troca. Antes, entrega-se diligentemente para que o outro seja capaz de entrar no céu. O bem que Jesus nos dá é o bem da salvação eterna.
Todos são chamados a essa espécie de amizade. Um bom amigo é capaz de inspirar atitudes santas, afastando o risco dos ambientes depravados e promíscuos. "Quem o achou, descobriu um tesouro" ( Eclo 6, 14). Quantos não conheceram a Igreja e seus sacramentos por meio de uma sólida amizade? Os testemunhos são numerosos. Neste sentido, seria oportuno que fizéssemos um adequado exame de consciência: temos procurado a amizade daqueles que estão afastados da Igreja, oferecendo nossa atenção e auxílio? Que tipo de exemplos oferecemos a nossos amigos? Escândalos? Comodismo? Egoísmo? O amparo de Nossa Senhora pode ser uma grande força para crescermos neste aspecto.
A amizade, quando bem orientada, também é um dos alicerces da vida contemplativa, de modo que não se pode alcançar esse grau de oração sem um prudente discernimento sobre o significado da caridade fraterna. Parece óbvio a qualquer um que almeje a santidade os perigos que existem no relacionamento com quem se dedica ao pecado. Tudo ameaça ruir se não se coloca logo um ponto final. Não que seja proibido o contato com essas pessoas. A regra cristã exige justamente o contrário. Mas para levá-las a Deus. A cumplicidade com o erro está fora de cogitação. Todavia, há outro risco nessa seara, tanto mais perigoso pois menos evidente, que pode igualmente causar sérios estragos para o progresso espiritual. É preciso afastá-lo com firmeza e determinação, ainda que custe. Falamos das grandes amizades.
É natural que, no trato com as várias pessoas de nosso ambiente, afeiçoemo-nos a umas mais que a outras. De fato, somos propensos a querer estar perto de quem comunga de nossos interesses pessoais e gostos. Isso parte sobretudo da personalidade de cada indivíduo. Notem a advertência da Sagrada Escritura: "Dá-te bem com muitos, mas escolhe para conselheiro um entre mil" ( Eclo 6, 6). Uma regra salutar. Há amigos para os momentos de recreação, mas não muitos para a tempestade. Prova-se uma amizade pelo fogo da tribulação.
Contudo, tais amizades, se não forem guiadas pelo espírito da oração e da ascese, podem converter-se em graves obstáculos ao crescimento no amor a Deus. Em seu Caminho de Perfeição, Santa Teresa d'Ávila faz toda uma ponderação quanto às grandes amizades, desde os aspectos mais externos — como manifestações efusivas de afetividade — aos recônditos do coração — como o medo de não ser correspondido. "Essas grandes amizades", alerta, "poucas vezes servem para se ajudarem mutuamente a crescer no amor divino". Mais grave que isso: "O demônio as estimula para introduzir partidos nas ordens", avisa a Santa.
Um olhar pouco sóbrio pode, a princípio, achar muito rígido o que diz Santa Teresa. Afinal, que poderia existir de maldade no relacionamento entre dois grandes amigos? Nada, desde que as duas partes estejam orientadas para a busca da santidade. Desde que as duas partes tenham um coração indiviso, isto é, voltado somente para Deus. Não é, porém, o que frequentemente acontece. Santa Teresa fala de "danos muito notórios à comunidade". Ela os elenca: "O sentir o agravo feito à amiga, o desejar com que presenteá-la, o buscar tempo para conversar com ela, muitas vezes mais para dizer-lhes coisas descabidas e quanto lhe quer bem, que para falar no amor de Deus".
Escravidão. Eis a palavra certa para definir tais gêneros de amizade. E não é, por acaso, assim que se sentem aqueles que são aparentemente desprezados por seus amigos mais próximos, com quem tanto gostam de estar? Não se sentem atraiçoados? Um rancor nasce em seus peitos como se tudo fosse desabar. Ora, isso é o sinal mais palpável da perniciosidade desses relacionamentos. A vontade de amar a Deus enfraquece e, aos poucos, vai se instalando uma frouxidão espiritual nociva, que pode conduzir a graves abismos. Tornamo-nos reféns de nossas paixões. Tornamo-nos escravos.
A verdadeira amizade, ensina Santa Teresa, é aquela nutrida pelas almas chamadas à perfeição: "Desejam ardentemente que o amigo tenha amor a Deus". Não há outra preocupação. Não se enxerga o amigo como propriedade. A correção fraterna, o cuidado pela conversão, a presença nos momentos de dificuldade serão todos dedicados ao crescimento da santidade. E isso feito de forma desinteressada, pois "há grande cegueira neste desejo de sermos amados". Teresa conclui: "Melhor amizade será esta que dizer toda sorte de ternuras que não se usam, nem hão de se usar nesta casa. Tais são, por exemplo: 'minha vida', 'minha alma', 'meu bem' e outras semelhantes com que se chamam ora a umas pessoas, ora a outras".
Em nossas amizades, devemos ser como que faróis, não freios, para a caminhada de nossos amigos rumo à santidade. Às vezes, acontece de sermos solicitados somente nos momentos de dificuldade, na hora das lágrimas. Quase nunca para os momentos de recreação e divertimento. Que importa? Mais vale uma amizade para as lágrimas que para as gargalhadas, pois "há amigo que só o é para a mesa, e que deixará de o ser no dia da desgraça" ( Eclo 6, 10).
Peçamos a Deus, com o auxílio da Virgem Maria, o dom desta verdadeira amizade: a amizade que leva os outros para o céu!
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