Jean-Paul Sartre abriu as portas da humanidade para o terceiro milênio, apresentando, em uma sentença, um modelo de vida intrinsecamente contrário ao cristianismo: “O inferno são os outros". Essa expressão cheia de significado resume a lógica do individualismo. Na era da modernidade, em que a técnica se torna cada vez mais avançada, ao ponto de muitos a confundirem com o próprio infinito, o homem contemporâneo é constantemente pressionado a isolar-se em suas conquistas materiais, pelo que se esquece de suas responsabilidades pessoais e comunitárias [1]. Neste jogo de interesses egoístas, o dom da amizade é solapado nas bases.
Resumidamente, o existencialismo de Sartre considera “os outros" como todos aqueles que, no contato diário conosco, revelam as nossas fraquezas e defeitos. Eles são “o inferno" porque nos julgam com sua presença. Tiram a nossa máscara de piedade. Com efeito, a vida comunitária, na visão existencialista, é um fardo angustiante, mesmo que exista um esforço para suportar a presença indesejada do outro.
Não é preciso dizer o quão daninha é essa visão distorcida da realidade. A vida social é uma exigência natural do ser humano. Não se trata simplesmente de algo acessório, mas de uma necessidade básica para o desenvolvimento das capacidades do homem, a fim de que — conhecendo-se a si mesmo por meio da relação com os demais, do serviço mútuo e do diálogo com seus irmãos — ele responda satisfatoriamente à sua vocação [2]. Ora, a presença dos “outros", longe de ser uma consciência julgadora — como descreve Sartre —, é uma autoestrada para a autêntica liberdade e conquista do Sumo Bem, pois, no trato com as dificuldades e diferenças de temperamento do próximo, cada um é chamado a crescer em caridade. Diz São Josemaría Escrivá [3]:
Chocas com o caráter deste ou daquele... Tem de ser assim necessariamente; não és moeda de ouro que a todos agrade.
Além disso, sem esses choques que se produzem ao lidar com o próximo, como havias de perder as pontas, as arestas e saliências — imperfeições, defeitos — do teu temperamento, para adquirires a forma cinzelada, polida e energicamente suave da caridade, da perfeição?
Se o teu caráter e o caráter dos que convivem contigo fossem adocicados e moles como gelatina, não te santificarias.
Neste sentido, o existencialismo nada mais é que a filosofia do desespero. Sartre é incapaz de amar; por isso, vê o inferno onde, na verdade, está o céu. Quando não se está convencido pelo amor cristão, torna-se evidentemente impossível a convivência fraterna, já que “uma verdadeira fraternidade entre os homens" — recorda-nos o Papa Francisco — “supõe e exige uma paternidade transcendente" [4]. Ainda mais: é “a partir do reconhecimento desta paternidade, (que) se consolida a fraternidade entre os homens, ou seja, aquele fazer-se 'próximo' para cuidar do outro" [5]. Caso contrário, o ser humano é reduzido a uma mera engrenagem do organismo social, uma peça que se pode descartar a qualquer momento. O “outro" é tão somente um obstáculo na lei da “seleção natural". Só os mais fortes sobrevivem.
A medida do cristianismo é diferente. No Evangelho de São João, Jesus se refere aos seus discípulos pela palavra “amigo": “ Non iam servos, sed amicos — Já não vos chamo servos, mas amigos" (Jo 15, 15). Com esta expressão, Cristo convida os apóstolos a não somente se relacionarem com Deus-Todo Poderoso, mas também com Deus-Conosco: o Deus que é amigo e se faz presente para o homem a todo momento. Assim explicava o futuro Papa João Paulo I, Cardeal Albino Luciani: “O nosso Deus é tão pouco rival do homem que quis fazer-se seu amigo, levando-o a participar da sua própria natureza divina e da sua própria felicidade eterna" [6]. Assim, porque somos chamados a realizar a vontade de Deus nas mínimas circustâncias do dia a dia, temos de considerá-Lo o nosso melhor amigo, “levando uma vida segundo o Evangelho, com coragem e fidelidade" [7]. Ademais, a palavra amigo também exprime um convite à abertura ao próximo, para fazer-se companheiro em suas necessidades. Um antigo adágio nos lembra que a verdadeira amizade consiste nisto: Idem velle, idem nolle — querer as mesmas coisas e não querer as mesmas coisas. Isso indica que a amizade é uma comunhão do pensar e do querer. E, em última instância, significa a capacidade de entregar a vida pelo irmão (Jo 15, 13; 10, 15).
Há uma advertência de São Gregório Magno capaz de resumir tudo: “Se tendeis para Deus, tende cuidado que não O alcanceis sozinhos" [8]. Ora, a caminhada para o céu nunca pode ser realizada individualmente, uma vez que a fé “não é uma relação isolada entre o 'eu' do fiel e o 'Tu' divino, entre o sujeito autônomo e Deus; mas, por sua natureza, abre-se ao 'nós', verifica-se sempre dentro da comunhão da Igreja" [9]. Por isso, a missão evangelizadora dos cristãos se concretiza mediante o interesse pela vida do outro, por seus dramas e felicidades, por suas derrotas e conquistas, estendendo-lhe a mão amiga e consoladora de Deus. De fato, dizia Bento XVI aos jovens da Espanha certa vez, Jesus “não deixa de infundir alento nos corações, e leva-nos continuamente à arena pública da história, como no Pentecostes, para darmos testemunho das maravilhas de Deus" [10]. Jesus quer contar com a nossa amizade. Seremos amigos d'Ele na amizade com “os outros".
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