Andei estes dias pensando no problema do um e do múltiplo que divide as filosofias e as mentalidades. Nas filosofias de inspiração nominalista, infensas às idéias universais, predomina a tendência de valorizar a diversidade; nas filosofias de inspiração aristotélico-tomista, ao contrário, ensina-se que a perfeição de uma coisa deve ser procurada na sua maior unidade, desde que saibamos distinguir entre unidade vista do lado da forma e uniformidade tomada do lado da matéria.

É errado, e meio tolo, atribuir à diversidade, ao pluralismo, um título de nobreza, e dizer, como diz o professor Anísio Teixeira, que uma sociedade se torna mais evoluída na medida em que se torna mais complexa e mais diferenciada. Chega a dizer que haveria vantagem, para o Brasil, se em lugar da predominância católica nós tivéssemos uma solução maior, um estoque mais variado de credos. Ora, parece-nos fácil provar a falta de consistência de tal opinião. Afirmando o que afirma, o conhecido autor de livros sobre pedagogia professa, simplesmente, um total ceticismo religioso, e deseja a diversidade dos credos como se nenhum deles pretendesse conter verdades, e de fato as contivesse. Duvidamos que o professor Anísio Teixeira desejasse para o Brasil, para o desenvolvimento, para a emancipação econômica e cultural do Brasil, um pluralismo científico, uma diversidade de opiniões a respeito do funcionamento do fígado, das causas do câncer, e das propriedades do triângulo retângulo. É claro, amigo leitor, que também nós desejamos o pluralismo no campo do direito de pesquisar, mas é claríssimo que só diremos que há progresso científico na proporção em que se unificam os conhecimentos e as opiniões.

Há entretanto certas diversidades que têm uma significação de riqueza e de perfeição, além daquela que tem o título precário de direito de pesquisa. A variedade de indivíduos concretos dentro de uma espécie, a variedade das rosas, por exemplo, é uma riqueza, é, digamos assim, um belo esforço que as existências concretas realizam para exprimir o conteúdo total de uma essência. Para conhecer um pouco o que é uma rosa, qual é o pensamento de Deus que ganha corpo na rainha das flores, é preciso ter visto muitas pétalas, muitos matizes, muitas raças diferentes do mesmo sonho divino. A diversidade aí é um discurso, é um poema que se estende para com muitas palavras dizer uma coisa. No fundo da questão, como se vê, há sempre o primado da unidade, mas no caso que tomamos como exemplo a diversidade não tem o sentido melancólico, amargo, que tem o da diversidade de opiniões toleradas enquanto não se acha a verdade única de uma coisa. E o que disse da rosa vale também para o homem. A perfeição da humanidade-essência se realiza na humanidade-existência. A riqueza da idéia “homem”, que Deus concebeu e criou, não cabe num só indivíduo, não se esgota no mais belo, no mais talentoso dos homens. Foi preciso deixar a história correr. Foi preciso deixar nascer um Mozart, um Gauss, uma Catarina de Sena, um Paulo de Tarso, um Einstein, e muitos outros exemplares mais obscuros, foi preciso deixar nascer o rapaz que dias atrás me contava que não aceitara um trabalho com o triplo de sua remuneração atual, porque precisava fazer certas coisas que sua consciência desaconselhava, foi preciso multiplicarem-se os talentos, as inclinações, as vocações, as nomeações de Deus, para que a vasta multidão, numa espécie de longo e ardoroso discurso, explicasse aos astros, aos anjos, a toda a criação, o que é este ser espantoso, absurdo, incongruente, maravilhoso, que um deles definiu como “animal racional”. A definição essencial é breve, mas a explanação, para corresponder à profundidade de tão singela definição, teve de ser extensa como a história da humanidade.

Essa diversidade, que é uma explicação, uma demonstração prática e existencial de uma natureza definida por uma fórmula universal — essa diversidade que pertence à didática de Deus, é boa, é excelente, e nem sequer representa uma tolerância, uma expectativa, um alargamento à espera de uma unidade maior. Não. A diversidade da multiplicação de indivíduos da mesma espécie, ao mesmo tempo que dilata os limites da definição, fortifica os vínculos da unidade interna da coisa. Ao contrário do que pensa o nominalista, nós sentimos ainda mais forte a unidade de natureza humana quando passeamos pelo imenso jardim onde nasceram e desabrocharam as flores da humanidade. Cada vez mais entendemos, sentimos, penetramos a idéia de um ser que pelo gênero pertence à animalidade e pela espécie pertence à racionalidade.

E o que dizemos para os homens diremos também para as nações. A variedade delas é uma riqueza, desde que seja vista naquela perspectiva que enriquece e fortifica a unidade. Para que existem as nações? Para si mesmas? Para serem poderosas potências armadas e engenhos mortíferos e enfeitadas com bandeiras e hinos? Para serem temas de discursos? Para trazerem cores diversas à cartografia, e tornarem as etapas mais agradáveis? Para que existirá o Brasil? Para o sr. Negrão de Lima ser embaixador dele em outra nação que por sua vez manda embaixadores para o Brasil? Existirá o Brasil, como nação, como pátria, para as crianças de colégio fazerem composições patrióticas, e para os construtores de Brasília se encherem de lucro à custa da mesma idéia ensinada nos colégios? Existirá para o hino, para a bandeira?

Parece-nos claro que, se fosse para tais serventias, melhor seria que houvesse um só país, falando uma só língua. A transcendental utilidade, a finalidade das nações tem de ser procurada mais alto e na mesma direção em que se explica a diversidade dos homens. Além da variedade de pessoa para pessoa, a idéia de homem, pensada e criada por Deus, precisa da variedade de grupos. Existem nações com timbres culturais diferentes, como existem instrumentos diversos da mesma sinfonia. E cada nação traz ao mundo a contribuição preciosa de um timbre, de um matiz, de um odor que compõe a grande apoteose do plano de Deus, no centro da qual está a Cruz do Salvador como grande síntese do pensamento de Deus sobre o Homem, ou melhor, do pensamento de Deus tornado Homem.

Em palavras mais frias diremos que as nações têm vocações diversas na partitura, e idênticas no objetivo final que é a glória de Deus e a exposição universal das obras e feitos do homem, que se completará no dia do juízo final. Por aí se vê que as nações, não só para as trocas imediatas de utilidades, existem, umas para outras numa grande e essencial solidariedade. E é nessa perspectiva que deveriam ser armados todos os problemas nacionais, e não na mesquinha e tola perspectiva do egoísmo coletivo que faz da nação um fim em si mesma.

“Primeira Missa no Brasil”, de Vítor Meireles.

E qual será, nessa ordem de idéias, a razão de ser do Brasil? Qual será a vocação coletiva, a vocação nacional deste povo que anda perplexo, tonto, sem saber o que fazer de seu imenso território, e sem o tipo de almas que aqui vive, trabalha, canta, chora e ri. E ri, e chora, com um sotaque espiritual diferente dos outros povos. E dança como o francês ou o russo não sabem dançar. Dizem que o Garrincha, assistindo um jogo dos russos, sorria com ar de certa superioridade, e quando lhe perguntaram se não estava com medo do treinadíssimo time soviético, respondeu: — “Não. Eles são duros de cadeiras.” E era verdade. Eles não tinham os requebros de nossa astúcia física, a flexibilidade de nossa graça felina, certamente serão duros de cadeiras em muitas outras coisas em que somos graciosos e ágeis.

A verdade manda confessar que, fora do futebol, pouca coisa trouxemos para a tal apoteose da essência humana. Qual será a riqueza de que estamos incumbidos? Qual será a partitura que devemos executar no maravilhoso concerto que tem por ouvintes as hierarquias dos anjos?

Por mais insensato que possa parecer tal idéia aos que vivem estudando os chamados problemas brasileiros, é nesta perspectiva profética, teológica, metafísica, que deveriam estar situadas todas as pesquisas. Há problemas imediatos, como o socorro devido às vítimas do nordeste, mas há o grau de problema da vocação, da direção geral, que anda esquecido, ou que está sob a ameaça de uma trágica apostasia. E aqui — deixando para outro dia a continuação desta louca conversa — ouso dizer o que penso de um Brasil que trai a sua vocação e que se desvia dos caminhos de Deus. Rasguem as vestes os fariseus do nacionalismo materialista (aliás outro não há), dêem-me os títulos que quiserem: ouso dizer que prefiro vê-lo apagado do mapa, afundado na terra, tragado pelo mar, do que vê-lo instalado num desenvolvimento que nem sequer traz a felicidade material, animal, das multidões, e que volta as costas ao chamamento de Deus e à esperança dos homens.

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