Por que devem as almas sofrer tanto no Purgatório antes de serem admitidas à presença de Deus? Qual é a matéria e o sujeito dessas expiações? O que o fogo desse lugar tem a purificar, a consumir nessas pessoas?

Trata-se, dizem os santos Doutores, de manchas deixadas pelos pecados que foram cometidos.

Mas o que se entende aqui por “manchas”? De acordo com a maioria dos teólogos, não é a culpa do pecado, mas a pena que procede do pecado. Para entender bem essa questão, é necessário lembrar que o pecado produz um duplo efeito na alma, a saber, a culpa e o chamado “reato” da pena [1]; em outras palavras, o pecado torna a alma não somente culpada, mas também merecedora de punição ou castigo. O que acontece geralmente é que, depois de a culpa ser perdoada, resta uma penitência a ser cumprida, e isso se dará seja na vida presente, plena ou parcialmente, seja na vida futura.

As almas no Purgatório não retêm a mínima mancha de culpa; a culpa venial que elas tinham no momento de sua morte extinguiu-se no fogo da caridade, da qual elas se encontram inflamadas na outra vida, mas elas ainda trazem consigo o débito da penitência, do qual não se exoneraram antes da morte.

Esse débito procede de todas as faltas cometidas em vida, especialmente pecados mortais remidos quanto à culpa, mas que as almas foram negligentes em expiar através de frutos maduros de penitência externa.

Tal é o ensino comum dos teólogos, que Suárez sintentiza em seu Tratado sobre o sacramento da Penitência (v. XIX, De Poenit., d. XI, s. 4). “Concluímos, então”, ele diz, “que todas as faltas veniais com que um homem justo morre são remidas quanto à culpa, no momento mesmo em que a alma é separada do corpo, em virtude de um ato de amor a Deus e da contrição perfeita que ele motiva sobre todos os seus pecados passados. Nesse momento, a alma sabe perfeitamente de sua condição, bem como dos pecados de que se tornou culpada diante de Deus; ao mesmo tempo, ela é senhora de suas faculdades, para ser capaz de agir.

Por outro lado, da parte de Deus, os socorros mais eficazes são dados à alma, a fim de que ela aja de acordo com a medida de graça santificante que possui. Segue-se, pois, que nessa disposição perfeita a alma age sem a mínima hesitação. Ela se volta diretamente para o seu Deus e se vê livre de todas suas faltas veniais por um ato de soberana aversão ao pecado. Esse ato eficaz e universal é suficiente para remir-lhes a culpa.”

Toda mancha de culpa desapareceu, portanto, mas resta a pena a ser satisfeita, em todo o seu rigor e longa duração, pelo menos para aquelas almas que não são assistidas pelos vivos. Elas não podem obter o mínimo alívio para si mesmas, porque o tempo do mérito já se esgotou; elas não mais podem merecer, restando-lhes tão somente padecer e, dessa forma, pagar à terrível justiça de Deus tudo o que devem, até o último centavo, como diz o Evangelho: Usque ad novissimum quadrantem (Mt 5, 26).

Esse reato da pena são os resquícios do pecado, um tipo de mancha que impede a visão de Deus e põe obstáculo à união da alma com seu último fim. Uma vez que as almas no Purgatório são libertas da culpa do pecado, escreve Santa Catarina de Gênova [2], não há nenhuma outra barreira entre elas e sua união com Deus senão esses resquícios do pecado, dos quais elas devem se purificar.

Esse entrave que elas sentem interiormente faz-lhes sofrer os tormentos dos condenados ao Inferno e retarda o feliz momento em que sua atração a Deus, soberana beatitude, atingirá a plena perfeição. As almas do Purgatório vêem claramente o quão sério é diante de Deus até mesmo o menor dos obstáculos levantados pelos resquícios de seus pecados, e sabem também que é por necessidade de justiça que Deus adia a recompensa completa do desejo que elas têm da eterna felicidade.

Esse conhecimento acende nessas almas uma chama ardente, como a do Inferno, ainda que sem a culpa do pecado.

Referências

  1. Cf. Suma Teológica, III, q. 86, a. 4, onde o Doutor Angélico responde a uma das principais objeções protestantes ao Purgatório (ad 3): “A paixão de Cristo é por si mesma suficiente para obter a remissão de todo o reato da pena, não só eterna como temporal. Assim, naquela medida em que o homem participa do poder da paixão de Cristo, nesta mesma medida participa do perdão do reato da pena. Ora, no batismo, o homem participa plenamente do poder da paixão de Cristo, ao morrer com Cristo para o pecado pela água e pelo Espírito Santo e ao regenerar-se em Cristo para uma nova vida. E, assim, no batismo, o homem obtém a remissão do reato de toda a pena. Na penitência, porém, obtém a eficácia da paixão de Cristo segundo a medida de seus atos, que são a matéria deste sacramento, como a água o é do batismo. Por isso, o reato de toda a pena não é suprimido logo pelo primeiro ato da penitência, pelo qual se perdoa a culpa, mas somente depois de realizados todos os seus atos.”
  2. Traité du Purgatoire, c. III.

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