Como leigo no banco da igreja, vira e mexe me pergunto por que os clérigos não pregam mais vezes sobre o sentido simbólico dos ritos, gestos e objetos da Liturgia, para não falar dos textos (especialmente dos Próprios da Missa — para os lugares afortunados em que ainda se utilizam os Próprios). Ora, já que a Liturgia é o objeto mais óbvio e comum de percepção e meditação para todos os presentes, parece útil e adequado pregar de tal modo, que os fiéis alcancem pouco a pouco uma compreensão mais profunda do que estão vendo e fazendo. É verdade que isso pode tornar-se pesado e excessivamente didático; mas, pelo menos, permite abordar o conteúdo de uma dada celebração — não me refiro aqui às leituras, que são o centro de atenção, mas aos outros elementos da Liturgia que se desenvolvem em torno das leituras. Um sinal de que isso é oportuno pode ser visto na incrível quantidade de pregações patrísticas e medievais dedicadas a desvelar o sentido da Liturgia aos fiéis.
Uma boa oportunidade está se aproximando rapidamente: refiro-me à grande Vigília de Páscoa, quando se acende e ilumina com fogo novo o Círio Pascal. Todos nós, é provável, já ouvimos alguma menção em homilias ao fogo e à luz, mas tudo envolto em aparentes generalidades, o que tem a eficácia de clichês. Por que não seguir os passos de S. Tomás de Aquino e meditar o simbolismo profundo do fogo — em concreto, quais são as razões por que Deus mesmo é comparado ao fogo? Em seus comentários à Escritura, o Doutor Angélico comenta várias vezes por que Deus e sua ação são comparados ao fogo.
- Em Super Isaiam 33, dá três razões: o fogo purifica, põe outras coisas em chamas e condena;
- Em Super Hebraeos 12, l. 5, onde se diz que o fogo, entre as coisas sensíveis, é a mais nobre, a mais brilhante, a mais ativa, a de maior altura e a de maior poder de purificar e consumir;
- Em Super Isaiam 30, dá cincos razões para simbolizar a caridade como fogo: ela ilumina, faz ferver o coração (exestuat), atrai as coisas para si, torna a pessoa pronta para agir e leva para o alto;
- Super Ieremiam 5 dá cinco razões pelas quais a palavra do Senhor é como fogo: ela ilumina, põe em chamas, penetra, derrete e consome o desobediente.
Tais descrições do fogo guardam quase sempre um paralelo com a doutrina de S. Tomás sobre os efeitos do amor. Por exemplo, tanto em In III Sent., dist. 27, q. 1, a. 1 ad 4 quanto em STh I-II 28, 5, S. Tomás explica como um amor intenso causa fervor ou ardor, como ele derrete ou “liquefaz” o coração e como ele faz o amante penetrar no mais íntimo do amado. É por isso, com efeito, que o êxtase (para S. Tomás, um dos vários efeitos do amor) é com muita propriedade comparado ao fogo, o qual parece estar sempre a elevar-se sobre si mesmo e a desaparecer no ar, tendendo sempre para fora e para cima. S. Tomás nota com delicadeza que é próprio dos que se amam não ser capazes de manter o seu amor em segredo: ele se expande porque suas chamas não podem ser contidas dentro do peito [1]. E noutra passagem: “O fervor procede, com efeito, da abundância do calor, daí que se chame ‘fervor de espírito’, porque, devido à abundância do amor divino, o homem todo arde por Deus” [2].
O comentário mais amplo sobre o simbolismo do fogo aplicado a Deus está no comentário de S. Tomás a Isaías, capítulo 10:
Nota sobre aquela palavra, e a luz de Israel se tornará um fogo (Is 10, 17), que nosso Deus se diz fogo: primeiro, porque é sutil; e quanto a isso, diz-se sutil, [primeiro], quanto à substância, porque se diz espírito: “Deus é espírito” (Jo 4, 24); segundo, quanto à ciência, porque é penetrante: “A Palavra de Deus é viva, eficaz, mais penetrante do que uma espada de dois gumes” (Hb 4, 12); (c) terceiro, quanto à aparência, porque é invisível: “Mas a [sua] sabedoria onde se encontra” (Jó 28, 12), e abaixo, o mesmo: “Um véu a oculta de todos os viventes” (Jó 28, 21), ou: “Todos os homens [a contemplam, mas cada um a considera de longe]” (Jó 36, 25).
Segundo, porque é lúcido. O que porém seja lúcido, é evidente, primeiro, porque manifesta [outras coisas], quanto ao intelecto: “É na vossa luz que vemos a luz” (Sl 35, 10); segundo, porque agrada quanto ao afeto: “Que felicidade posso eu ter ainda? Estou nas trevas, sem poder ver a luz do céu?” (Tb 5, 12); terceiro, porque dirige quanto ao ato. Abaixo, c. 60: “As nações se encaminharão à tua luz, e os reis, ao brilho de tua aurora” (Is 60, 3).
Terceiro, porque é cálido; e isto, primeiro, porque vivifica: “Deixa-os aquecer sobre a areia” (Jó 39, 14); “Até aos meus ossos lançou ele do alto um fogo que os devora” (Lm 1, 13); segundo, porque purga: “O vapor do fogo cresta as suas carnes, e ele aguenta-se contra o calor da frágua” (Eclo 38, 29); terceiro, porque devasta: “Acendeu-se o fogo da minha cólera, e arderá até ao fundo da habitação dos mortos” (Dt 32, 22).
Quarto, porque é leve; e isto, primeiro, por causa do movimento [isto é, da finalidade], porque “tudo fez o Senhor para [glória de] si mesmo” (Pr 16, 4); segundo, por causa do lugar, porque “está sentado nas alturas” (Sl 112, 5); terceiro, por causa do modo impermisto: “[A sabedoria é mais ágil que todo o movimento], tudo atravessa e penetra por causa da sua pureza. Ela é um sopro do poder de Deus, [uma pura emanação da glória do Onipotente: por isso não se pode encontrar nela a menor impureza]” (Sb 7, 24s).
É bom lembrar mais uma vez, por meio de textos tão brilhantes como esse, que demonstram uma maestria agostiniana de exegese e nos brindam com abundantes referências cruzadas que se iluminam mutuamente, que o Doutor Angélico era e via-se a si mesmo, antes de tudo, como um comentador da Escritura, um Magister Sacrae Paginae, um professor de página sacra. O restante de suas eminentes atividades intelectuais fluíam de uma sistematizada lectio divina das escolas. Isso pode sugerir ainda uma espécie de reconciliação entre pregar sobre o Lecionário e pregar sobre os ritos e símbolos litúrgicos. Ao fim e ao cabo, tais ritos e símbolos estão em si mesmos radicados na Escritura, e a Escritura, por sua vez, é poderosamente ilustrada e atualizada por eles. Expor o sentido da Liturgia não é, por conseguinte, contrário à reflexão sobre as leituras, mas o contexto essencial para ela.
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