Deum non invocavérunt: illic trepidavérunt timóre, ubi non erat timor, “A Deus não invocaram; onde não havia o que temer, trepidaram de temor” (Sl 52, 6) [1]: estas palavras aplicam-se tão bem à atual situação da humanidade, que seria até preciso verificar se não foram escritas pelo salmista como profecia para 2020...
Brincadeira à parte, na verdade é uma ilusão pensar que as circunstâncias por que estamos passando são absolutamente inéditas. Não somos tão especiais assim: como diz o Eclesiastes, “não há nada de novo debaixo do sol” (1, 9). Além disso, não é sem razão que as Escrituras são inspiradas. O Espírito Santo pensou cada uma de suas linhas atemporais, e na leitura e meditação delas encontramos grande conforto em meio à tribulação [2].
Mas por que dizemos ser estas linhas tão apropriadas? Porque a atual pandemia desencadeou sobre o mundo uma verdadeira onda de terror. Desta não há quem tenha sido poupado. A uns, é o medo da doença e do sofrimento, da solidão e da morte. A outros, é o medo do caos social e econômico, do futuro incerto e nada alvissareiro: fala-se agora de um “Grande Reset” global, uma tentativa de transformar por completo as relações entre as pessoas no mundo pós-coronavírus, e as discussões éticas e políticas sobre vacinas só estão no começo. Motivos para temer, aparentemente, não faltam.
Ao citar o versículo acima, porém, nossa pretensão não é apontar o dedo aos outros e rir dos seus temores, pois também nós os sentimos. O medo é uma experiência universal, uma reação natural ao mal, que não podemos simplesmente “apagar” de nossa humanidade. Nosso Senhor mesmo, “provado como nós em tudo, exceto no pecado” (Hb 4, 15), experimentou o temor da morte no Horto das Oliveiras, com seu Preciosíssimo Sangue chegando a escorrer da pele como suor (cf. Lc 22, 39-46; STh III 15 7c.).
O problema não é, pois, o medo que sentimos, mas sim o que fazemos dele. O temor não chega a ser reprovável quando é só um sentimento, um frio na espinha ou um arrepio na nuca. Quando ele vai para o coração e passa a ser pensado, alimentado e até “racionalizado”, eis o grande perigo.
Perigo que se torna ainda maior quando o medo é nutrido por uma alma que não invoca a Deus. Deum non invocavérunt, diz o Autor Sagrado. É interessante observar que, embora este salmo comece fazendo uma clara alusão aos descrentes, a quem hoje chamamos de ateus — Dixit insípiens in corde suo: Non est Deus, “Disse o insensato em seu coração: Deus não existe” (v. 1) —, não são eles os únicos a “trepidar” nesta época de pandemia. O temor e o tremor são hóspedes também dos religiosos, dos cristãos, dos católicos. E para que eles sejam afetados é muito simples: basta que não rezem ou, se rezavam, que deixem de fazê-lo. Receita infalível da desgraça!
Não estamos falando do Terço ou de uma outra prática de piedade qualquer que, num dia determinado, alguém deixou de rezar, por cansaço ou por alguma eventualidade, não. Estamos falando de um ateísmo prático, de um hábito consolidado de viver como se Deus não existisse, de levar a vida, passar os dias, lidando só com as coisas materiais, correndo atrás apenas do que pode saciar a carne… sem dar a Deus o que é de Deus, sem voltar os olhos para o Céu e reconhecer que tudo o que temos e somos nos vem dele, e de que nosso futuro está, em última instância, nas mãos dele.
Estamos falando, em suma, da falta (ou da perda) de fé na Providência divina: eis a causa dos temores vãos em que vive grande parte da sociedade. Pois, apesar dos vírus microscópicos que atacam nosso sistema imunológico e dos poderosos globalistas que ameaçam a autonomia das nações, se as pessoas cressem realmente que Deus está no controle de tudo, seria fácil perceber que, para além das aparências, em nenhuma destas coisas há razão para ter medo. Se todos os fios de cabelo de nossa cabeça estão contados, por que temer os perigos deste mundo, que só nos podem atingir o corpo?
Agora, é claro, se a nossa alma não está com Deus, se não estamos em estado de graça, então, sim, temos o que temer. “Tudo concorre para o bem dos que amam a Deus” (Rm 8, 28), mas o mesmo não está garantido aos que não o amam. Dormindo e acordando no pecado mortal, encontramo-nos expostos à maior das desgraças que existe: a condenação eterna. Numa situação assim, tudo é motivo para temor. É por isso que quem vive no pecado nunca está tranquilo: o homem desgraçado pode até ter seguranças neste mundo, pode até ter muitos bens e riquezas, pode até ter uma “saúde de ferro”... Se a morte o apanhar, vai tudo por água abaixo. É por isso que também ele vive a trepidar.
O verbo usado na Vulgata é este mesmo: “trepidar”. Ao escutá-lo, a primeira imagem que nos vem à mente é a de um automóvel. Um carro que trepida onde não devia trepidar — conduzido por bom motorista e em pista regular — certamente está com problema mecânico e deve ser levado à oficina. Pois bem: do mesmo modo, uma pessoa que treme diante das adversidades desta vida precisa se resolver. Se seu problema é o pecado, ela precisa de arrependimento (e de um sacerdote, para se confessar). Se ela está em graça, no entanto, a única coisa que precisa fazer é parar de escutar a voz do inimigo e dar ouvido à palavra de Deus: Non timébis a timóre noctúrno, a sagítta volánte in die, a negótio perambulánte in ténebris: ab incúrsu, et dæmónio meridiáno, “Não temerás sustos noturnos, nem a seta que voa de dia, nem o inimigo que anda nas trevas, nem os assaltos do demônio do meio-dia” (Sl 90, 5-6).
O remédio para os nossos temores está, portanto, na obediência a Deus e na oração confiante dirigida a Ele. Qui confídunt in Dómino, sicut mons Sion: non commovébitur in ætérnum, qui hábitat in Ierúsalem, “Os que confiam no Senhor são como o monte Sião; nunca será abalado o que habita em Jerusalém” (Sl 124, 1-2).
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