O texto abaixo é excerto de um sermão do Pe. António Vieira, pregado certamente na antiquíssima festa de São Pedro ad vincula, isto é, “atado às correntes”, “acorrentado”. A celebração se fazia no dia 1.º de agosto e recordava a libertação milagrosa do primeiro Papa das mãos de Herodes, por intervenção de um anjo.

Infelizmente a festa não consta mais nem no calendário litúrgico do Novus Ordo, nem no do Vetus Ordo, pois sua remoção aconteceu no pontificado do Papa João XXIII, o último antes da reforma litúrgica subsequente ao Concílio Vaticano II. Nos livros litúrgicos mais antigos, porém, é possível apreciar os próprios desta festa, que atestam a proteção de Pedro, a existência do mundo angélico e o poder que tem a oração de toda a Igreja.

O Pe. António Vieira, por sua vez, dispensa apresentações. Este sermão merece ser lido na íntegra, mas abaixo destacamos apenas dois trechos, um do § II e outro do § V, suficientes para despertar em nossos leitores o desejo de apreciar o texto completo.


A ordem hierárquica da Providência divina, no governo de suas criaturas, é governar superiores e súditos, mas os súditos por meio dos superiores, e os superiores imediatamente por si mesmo. Uma e outra coisa temos nas chaves e nas cadeias de Pedro. Em todo o mundo cristão não há mais que um superior e um súdito, um Pedro e uma Igreja; e este superior e este súdito, este Pedro e esta Igreja, quem os governa? A Igreja governa-a a providência de Pedro, que tem o poder das chaves: Tibi dabo claves regni caelorum, “Eu te darei as chaves do Reino dos céus”; a Pedro governa-o a providência de Cristo, que o livrou das cadeias de Herodes: Ceciderunt catenae de manibus ejus, “As correntes caíram das suas mãos” (At 12, 7). Este é o desenho altíssimo, e esta a fábrica seguríssima da suprema Providência. A Igreja segura na providência de Pedro, e Pedro seguro na Providência de Cristo.

“A Libertação de São Pedro”, por José Antolínez.

Caso foi verdadeiramente admirável, e por isso notado e advertido pelo mesmo historiador sagrado, que cercado S. Pedro de guardas, e atado a duas cadeias, na mesma noite daquele dia em que havia de sair a morrer, como homem sem nenhum temor nem cuidado, estivesse dormindo: In ipsa nocte erat Petrus dormiens, “Nessa noite, estando Pedro a dormir” (At 12, 6). E se passarmos da terra ao mar, não é caso menos digno de admiração que, correndo fortuna a barca de Pedro com uma terrível tempestade, Cristo, que ia na mesma barca, também estivesse dormindo: Ipse vero dormiebat, “Ele dormia” (Mt 8, 24). Cristo e o vigário de Cristo, ambos dormindo? Cristo dormindo no meio da tempestade, e Pedro dormindo no meio das guardas e das cadeias, e ambos com a morte à vista, sem nenhum cuidado? Sim. Na tempestade dorme Cristo, porque a barca está segura na providência de Pedro; e nas cadeias dorme Pedro, porque Pedro está seguro na Providência de Cristo. Debaixo da Providência de Cristo dorme Pedro ao som das cadeias, e debaixo da providência de Pedro dorme Cristo ao som da tempestade e das ondas.

[...]

Assim como Deus deu a São Pedro as chaves do Céu, assim as tinha dado, por seu modo, antigamente a Elias, e com poder e autoridade universal e privativa, de que só ele pudesse abrir ou fechar os tesouros celestes, isto é, as chuvas e orvalhos do Céu, com que se fecunda a terra e vive o mundo. 

Mas que fez Elias com estas chaves na mão, e como usou delas? Vivit Dominus — disse ele falando com El-Rei Acab — si erit annis his ros et pluvia, nisi juxta oris mei verba: “Pela vida do Senhor, não cairá orvalho nem chuva nestes anos senão à minha ordem” (3Rs 17, 1): “Eu tenho na minha mão as chaves do Céu, e tu, ó rei, desengana-te, que nestes anos do meu governo, nem uma só gota há de cair de água ou estilar de orvalho sobre a terra, senão pelo império da minha voz. A terra abrasada e ardendo abrirá mil bocas, com que gemerá e gritará ao Céu; mas o Céu, debaixo das minhas chaves, não se moverá a brados nem a gemidos, e se mostrará tão seco e duro, como se fosse de bronze”. Parece-vos boa providência esta das chaves do Céu entregues ao arbítrio de um homem? 

Pois ainda não ouvistes outra circunstância mais terrível, para não dizer desumana. No mesmo tempo, diz o texto, morava Elias mui descansado sobre as ribeiras do rio Carit, e um corvo, “manhã e tarde, lhe trazia pão e carnes”: Panem et carnes mane, panem et carnes vesperi (3Rs 17, 6). De maneira que nos mesmos anos em que o povo encomendado à providência de Elias andava caindo e expirando à fome, Elias, com provisão sempre nova e abundante, comia e se regalava duas vezes ao dia. Nos campos não se via uma folha, nas searas não se colhia uma espiga, e a Elias sobejava-lhe o pão. As aves não tinham mais que as penas, nem os gados mais que os ossos, e a mesa de Elias abastecida de carne sobre carne. As fontes secas e mudas, sem correr ou suar delas uma só gota, e Elias com a água a rios. É boa ou será boa esta providência das chaves do Céu? 

E mais, se as mãos que tiverem o domínio das chaves não forem as de Elias? Logo — argumenta o herege [...] — logo o mesmo poderá acontecer às chaves do Céu entregues à providência de Pedro.

Primeiramente digo que não poderá. E por quê? Porque se a providência de Pedro faltasse ao ofício de vigário de Cristo, a Providência de Cristo faria o ofício de vigário de Pedro. Estava Cristo na Cruz, pouco antes de render o espírito, quando o ladrão convertido lhe apresentou o seu memorial, dizendo: Domine, memento mei, cum veneris in regnum tuum, “Lembra-te, Senhor, de mim, quando vieres no teu Reino” (Lc 23, 42). Respondeu-lhe o Senhor incontinenti: Hodie mecum eris in paradiso, “Hoje mesmo estarás comigo no Paraíso” (Lc 23, 43). E esta foi a primeira vez que se abriram as portas do Céu, até aquela hora cerradas. 

Mas vede como replica e acode, pela jurisdição de Pedro, Arnoldo Carrotense. — “O ofício e jurisdição de abrir as portas do Céu, vós Senhor, não a tendes dado a Pedro? Sim. Como, logo, não remeteis este memorial ao vosso vigário? Porventura porque vos negou no átrio do pontífice, tende-lo privado do cargo?” Não, que Pedro já estava arrependido, e emendado e restituído à graça. Como, logo, usa Cristo das chaves de Pedro, e abre por si mesmo a porta do Céu? Agudamente o mesmo Arnoldo: Absens eras, o Petre, et ministerii tui claves modo non profers; supplet vicem tuam — notai as palavras — supplet vicem tuam Summus Sacerdos, apertisque serias antiquis, aperiente Christo, introducitur latro in regnum caelorum — “Estavas ausente, ó Pedro, sem ter ainda contigo as chaves do teu ministério; supre as tuas vezes o próprio Sumo Sacerdote; e abertas as portas antigas, abrindo-as Cristo, é o ladrão introduzido no Reino dos céus”. Quando o ladrão apresentou o seu memorial, estava Pedro ausente; e como o tempo era brevíssimo, e o negócio tão urgente que não sofria dilações, fez-se Cristo substituto do seu vigário, e supriu a ausência de Pedro com a sua presença. Trocou o crucificado Senhor os cravos com as chaves, e abriu as portas do Paraíso ao repentino penitente. E porque Pedro não acode à obrigação de seu ofício, como vigário de Cristo, acudiu Cristo a ela, como vigário de Pedro: Supplet vicem tuam, o Petre.

Eis aqui como nunca pode faltar a providência das chaves de Pedro, ainda no caso em que ele por si mesmo faltasse. Mas, antes que desçamos em particular ao cuidado, vigilância e admirável circunspecção desta universal providência, quero eu acudir pela honra de Pedro, e não refutando a sua improvidência neste caso com a sua providência em todos, mas sarando gloriosamente uma improvidência com outra. Dai atenção ao sucesso, tão digno de ser ouvido, como imitado.

“A Cura da Sogra de Pedro”, de James Tissot.

Entrou Cristo em casa de S. Pedro: Introivit Jesus in domum Simonis, “Entrou Jesus em casa de Simão” (Lc 4, 38), e havia muito tempo que estava na mesma casa a sogra do mesmo Pedro, tão enferma e prostrada de umas gravíssimas febres, que nem para receber o Senhor se pôde levantar. Essa força tem a palavra tenebatur do evangelista: Socrus autem Simonis tenebatur magnis febribus, “A sogra de Simão achava-se retida por grandes febres”. Grande febre e grande caso! Quem haverá que não repare e note aqui muito a pouca providência de S. Pedro, antes o demasiado descuido e negligência de atender ao remédio de sua casa e à necessidade dos seus domésticos e parentes? A sogra de Pedro em casa de Pedro ardendo em febres, e sem cura; padecendo dores, e sem alívio; atada tanto tempo a um leito, sem saúde, nem sequer melhoria? Não é este aquele mesmo Pedro, que passando pelas ruas e pelas praças, só com a sombra sarava todos os enfermos? Como, logo, abusa de tal modo do seu poder que, curando a todos, só aos seus domésticos não cura? Tantos milagres para as casas dos outros, e só para a sua casa nenhum milagre? Sim. E este creio eu que foi o maior milagre de S. Pedro. Entre todos os milagres deste grande prodígio do mundo, o maior milagre foi não ser milagroso em sua casa. Fora de casa e ao sol fazia sombra, e obrava milagres; chegado à sua casa, não obrava milagres, porque já não tinha sombra.

Mas que farão em tal caso os domésticos de Pedro, e que será deles? Vós, senhores, que servis a S. Pedro nesta sua casa, sois mais propriamente os seus domésticos. E que será de tantos, que somente vivem da sua sombra? Não tenhais medo, porque como Cristo nos casos de necessidade é vigário do seu vigário, se vos faltar a sombra de Pedro não vos faltará a mão de Cristo. Assim foi. Chega-se o Senhor ao leito da enferma: Stans super illam, “Inclinando-se sobre ela” (Lc 4, 39), dá-lhe e toma-lhe a mão: Aprehensa manu ejus, “Pegou-lhe na mão” (Mc 1, 31), e no mesmo ponto não só ficou livre da febre, mas sã, e com todas as suas forças: Surgens ministrabat illis, “Levantou-se e serviu-os” (Lc 4, 39). Assim provê a Providência de Cristo milagrosamente, onde a providência de Pedro, com maior milagre, não provê. Antes digo, que assim como o não prover em Pedro foi milagre, porque é obrigação natural da Providência de Cristo prover ele onde Pedro não provê, se Pedro, por excesso de generosidade, se descuidar dos seus domésticos, Cristo, por excesso de providência, tomará cuidado deles; e se Pedro, abusando gloriosamente do poder das suas chaves, fechar a porta da sua casa a todo o favor, Cristo, tomando-lhe as chaves, abrirá a mesma porta, e, cheio de favores e graças, entrará em casa de Pedro: Introivit Jesus in domum Simonis. Assim que seguros estão sempre os efeitos da providência de Pedro, porque quando ele, por qualquer acidente, ou como homem, ou como mais que homem, não usar dos poderes das chaves por si mesmo, fá-lo-á melhor por Cristo, ou Cristo por ele.

Referências

  • Trecho do Sermão das Cadeias de São Pedro (pregado na Igreja de São Pedro, em Roma, em 1674). In: Pe. António Vieira. Sermões Hagiográficos II. São Paulo: Edições Loyola, 2015, pp. 281-284.

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