No dia 6 de janeiro, a Igreja celebra a grande festa da Epifania do Senhor (ou Teofania, como a chamam os nossos irmãos bizantinos [1]): a revelação de Deus às nações e povos do mundo, representados pelos três sábios que, guiados pela divina Providência, caminharam das trevas do paganismo para a Luz do único Salvador da humanidade. Na cena da Epifania, vemos o núcleo da diversidade da Igreja: mãe, pai, bebê e sua família estendida; rainha, guardião, rei e cortesãos; judeus e gentios, pobres e príncipes, pequenos e grandes. No nível mais básico, vemos seres humanos, homens e mulheres cujas identidades e funções não foram atribuídas de forma aleatória e não podem ser trocadas livremente. 

Quando olhamos para a cena da Sagrada Família, podemos fazer uma pergunta inesperada: como Deus se revela para nós na masculinidade e na feminilidade?

“Adoração dos Magos”, de Carlo Dolci.

Recentemente, escolas católicas e seculares acolheram inúmeras discussões sobre a “expressão de gênero” e o chamado “gênero binário”. Não estamos falando de instituições obscuras, mas de locais famosos como Notre Dame, Villanova e a Universidade de San Diego. O pressuposto desses debates é a ideia de que “gênero” é algo fluido, capaz de assumir muitas formas diferentes, permitindo inclusive que uma pessoa mude de uma forma para outra. Como o conceito de “gênero fluido” é novo, até os fiéis católicos podem não saber como responder a essa situação. O que um católico crê a respeito da importância da masculinidade e da feminilidade? Como nos dirigimos a um mundo secular que está desorientado em relação à sexualidade [2]?  

A Igreja Católica fundamenta sua visão sobre a masculinidade e a feminilidade na Sagrada Escritura, que põe homem e mulher no centro de cada etapa da história da Salvação. Um breve tour por essa história, partindo de seu início, tornará manifestas a consistência e a profundidade de sua mensagem e também a razão pela qual seus protagonistas jamais poderiam ser redefinidos sem que sua mensagem fosse completamente subvertida — algo de que estão perfeitamente conscientes os mais inteligentes adversários do cristianismo, creio eu. Depois disso, analisarei o motivo pelo qual a cultura que nos circunda dificulta a compreensão dos ensinamentos contidos na Sagrada Escritura. Em seguida, apresentarei algumas reflexões sobre como podemos nos dirigir de modo eficaz a um mundo secularizado. Mas, antes, voltemo-nos para a história da Salvação.  

Criação. — No relato da Criação, o corpo humano torna visíveis coisas invisíveis. Quando Deus criou o primeiro homem, disse o seguinte: “Não é bom que o homem esteja só. Vou dar-lhe uma auxiliar que lhe seja adequada” (Gn 2, 18). O Criador sabe que fez os seres humanos para viver uns com os outros; como diz o Catecismo, fomos criados para ser uma “comunidade de pessoas” (§372). Mas, como relata o Gênesis, essa “comunidade de pessoas” foi inscrita diretamente em nossos corpos por meio da masculinidade e da feminilidade. A mulher foi feita do homem como uma “auxiliar que lhe seja adequada”, e o homem alegra-se quando a vê: “Eis agora aqui — disse o homem — o osso de meus ossos e a carne de minha carne!” (Gn 2, 23). Masculino e feminino são “adequados” um ao outro. Seus corpos, que são complementares, tornam exteriormente visível o que é verdadeiro em relação àquilo que lhes é mais íntimo.

Juntos, homem e mulher recebem a seguinte ordem: “Frutificai e multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a” (Gn 1, 28). Assim como seus corpos masculino e feminino mostram que são feitos um para o outro, também mostram que são feitos para servir outras pessoas — os filhos em primeiro lugar e, em última instância, a sociedade espalhada pelo mundo e fundada no amor procriador. O chamado ao espírito humano para viver em comunidade torna-se visível por meio do corpo sexuado [3]. 

Mas esse é apenas o início. Em última análise, temos um chamado para a vida em comunidade porque somos feitos à imagem da Trindade, a comunhão na unidade entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo. O Gênesis pode inclusive aludir a isso quando diz: “Deus criou o homem à sua imagem; criou-o à imagem de Deus, criou o homem e a mulher” (Gn 1, 27). No final das contas, o que o corpo humano torna visível (em seu dimorfismo essencial) é uma realidade divina que transcende o corpo, mas é capaz de ecoar nele. É uma obra-prima da arte de Deus.

Redenção. — Masculinidade e feminilidade tornam-se ainda mais importantes depois da queda de nossos primeiros pais. Já no Antigo Testamento os profetas falam de Deus como esposo de Israel e do povo escolhido como noiva dele: “Eu a desposarei para sempre, conforme a justiça e o direito, com benevolência e ternura. Eu a desposarei com fidelidade e conhecerás o Senhor” (Os 2, 21-22). No Novo Testamento, esse “casamento” entre Deus e o homem adquire um sentido muito mais profundo porque “o Verbo se fez carne” (Jo 1, 14), fazendo com que Deus e a humanidade se unam literalmente numa só carne. No Gênesis, os corpos masculino e feminino tornaram a pessoa humana visível externamente, mas nos Evangelhos o corpo de Jesus torna externamente visível a própria pessoa de Deus [Filho]! 

Para os católicos, a Encarnação dá pleno sentido ao corpo humano. Sentimos a importância de nossa união com o próprio corpo de Deus sempre que nos aproximamos da Sagrada Eucaristia, sobre a qual Jesus disse: “Isto é o meu corpo, que é dado por vós” (Lc 22, 19). O corpo de Cristo, crucificado no Calvário e glorificado no Céu, é a maior obra de arte feita por Deus. Esse corpo é o seu autorretrato definitivo! E a Encarnação também nos traz Maria, Mãe de Deus, a pessoa humana mais venerada em todo o universo e que recebeu sua elevada vocação precisamente por ser mulher.

A vida em Cristo. — Após a ascensão de Cristo ao Céu, a Encarnação continua a dar sentido aos nossos corpos. O Batismo santifica a nossa alma e o nosso corpo pelo poder de sua Cruz. O casamento místico de Cristo com a Igreja significa que os nossos corpos são membros dele. Dirigindo-se a cristãos viciados em fornicação, S. Paulo lhes pergunta: “Não sabeis que vossos corpos são membros de Cristo?” (1Cor 6, 15). Ele prossegue e os confronta: “Ou não sabeis que o vosso corpo é templo do Espírito Santo, que habi­ta em vós, o qual recebes­tes de Deus e que, por isso mesmo, já não vos pertenceis?” (1Cor 6, 19). É desafiador viver à altura da santidade do corpo cristão!

Do mesmo modo, as ações corporais dos cristãos são poderosas. Como seus corpos são membros de Cristo e templos do Espírito, a união física no matrimônio cristão é inclusive um sacramento, sinal e fonte de graça sobrenatural. S. Paulo diz aos romanos: “Eu vos exorto, pois, irmãos, pelas misericórdias de Deus, a ofere­cerdes vossos corpos em sacri­fício vivo, santo, agradável a Deus: é este o vosso culto espiritual” (Rm 12, 1). Este é o motivo fundamental pelo qual somos seres litúrgicos: Deus não nos deu apenas uma mente com a qual devemos pensar nele, mas um corpo no qual e pelo qual devemos adorá-lo e louvá-lo. A liturgia está completamente envolta pela corporeidade, particularmente pela comunhão numa só carne entre Cristo, o esposo, e a Igreja, sua esposa [4].  

Consumação. — O relato da história da Salvação terminará com uma forte ênfase no corpo humano quando todos os mortos ressuscitarem para o Juízo. A ressurreição demonstra de uma vez por todas a importância eterna do corpo no plano de Deus, porque a vitória de Cristo seria incompleta sem a salvação do corpo. O livro do Apocalipse descreve aquele último dia como as “as núpcias do Cordeiro”, quando Cristo finalmente desposará para sempre sua “noiva”, a Igreja (Ap 19, 7).

Essa maneira de descrever o fim resolve um enigma. Homens e mulheres ressuscitarão com seus respectivos corpos masculinos e femininos; apesar disso, Jesus diz que “não terão mulher nem marido” (Lc 20, 35). Isso quer dizer que masculinidade e feminilidade não serão mais importantes? Não, isso mostra que o significado natural do corpo humano se tornará pleno quando virmos Deus “face a face” (1Cor 13, 2), num “matrimônio” com nosso Criador. O fato de que fomos feitos para a comunhão significa não apenas que fomos criados à imagem da comunhão trinitária, mas que, em última instância, fomos feitos para a comunhão com o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Mesmo agora, neste mundo, vemos esse significado definitivo do corpo humano naqueles que escolheram a virgindade “por amor ao Reino dos Céus” (Mt 19, 12).  

Uma visão de mundo secular. — Portanto, vemos que a história da nossa salvação não diz respeito apenas à salvação das almas, mas também à do corpo — do início ao fim! Mas, embora a fé católica tenha muito a dizer sobre o corpo humano, falar para um mundo secularizado não é tão fácil quanto citar muitos trechos da Sagrada Escritura. A má filosofia permeou nossa cultura, criando uma barricada que impede que até pessoas de boa vontade compreendam o que a Igreja tem a oferecer. Isso está relacionado com o modo de o mundo moderno enxergar o corpo humano. 

De acordo com o Catecismo

a unidade da alma e do corpo é tão profunda que se deve considerar a alma como a ‘forma’ do corpo; quer dizer, é graças à alma espiritual que o corpo, constituído de matéria, é um corpo humano e vivo. No homem, o espírito e a matéria não são duas naturezas unidas, mas a sua união forma uma única natureza (§365). 

Em geral, os ocidentais entendem que os seres humanos são livres e têm direitos apenas por serem humanos; não podemos simplesmente fazer o que desejamos com um ser humano. A Igreja Católica ensina que os corpos humanos são também humanos e que, portanto, não podemos fazer o que bem entendermos com eles.

No entanto, a modernidade passou a enxergar o mundo de uma perspectiva mecanicista. Tendemos a imaginar que há tanta “natureza” num corpo humano quanto num automóvel. As pessoas se revoltam com a ideia de que a “mera” biologia possa decidir como deveríamos viver, porque não percebem que o mundo biológico possui em si mesmo um sentido. Por que ter um corpo feminino supõe uma vocação para a maternidade? Por que ter um corpo masculino implica ser responsável por uma família?

Consequentemente, nossa cultura não vê o corpo humano como obra-prima de Deus, mas como uma tela em branco na qual podemos pintar qualquer coisa. “O que farei do meu corpo? Será masculino, feminino ou algo diferente disso? Será fértil ou estéril? O que devo fazer?” Já se passou um bom tempo desde que nossa cultura começou a promover o controle de natalidade como uma forma de separar o corpo de sua vocação. O aborto tem sido promovido como sinônimo do controle que a mulher teria sobre seu corpo. Tudo isso nasce da mesma fonte: as pessoas falam em “expressar-se” por meio de seus corpos porque não acreditam mais que o corpo já as expresse naturalmente. No final das contas, temos o “gênero fluido” e a “expressão de gênero”. 

Como vimos acima, o significado natural do corpo é que a pessoa humana foi feita para a vida em comunidade. Mas quando nossa cultura abandonou a ideia de qualquer “natureza” do corpo, também abandonou a ideia de que a sociedade é “natural” [5]. Os indivíduos são vistos como absolutos e autônomos, ao passo que a sociedade é considerada algo artificial que construímos por conveniência. Até a família, a sociedade mais obviamente natural, vai para o ralo quando se perde o sentido natural do corpo. O resultado é uma noção de direitos humanos radicalmente individualista segundo a qual cada pessoa tem o “direito” de decidir qual será o seu significado espiritual e corpóreo, ainda que essa decisão seja ruim para a sociedade como um todo — e, de fato, ruim para o indivíduo que se rebela contra a personalidade humana.

Falando para um mundo secular. — Se quisermos ser bem-sucedidos em nossa comunicação com o mundo secular, teremos de remover da melhor maneira possível as barreiras filosóficas e emocionais. Não existe um jeito rápido e fácil de consertar uma visão de mundo deturpada, mas três regras práticas se mostrarão úteis. 

Primeiro, seja positivo e trabalhe com o que é fundamental. Antes de chegarmos ao “não…”, temos de repetir de todas as maneiras possíveis que o corpo humano é algo maravilhoso que merece respeito. Temos de insistir na verdade fundamental de que o corpo humano não é apenas algo mecânico: é algo que possui sentido. Tem uma natureza, um princípio de identidade e operação intrínseco, que é anterior a qualquer coisa que pensemos a respeito dele. Essa natureza não é o resultado de uma interação de átomos ou moléculas, mas é realmente anterior às partículas, e as utiliza para se fazer visível. Além disso, faz parte de um todo maior conhecido como pessoa, que é esse corpo (embora também mais do que somente esse corpo) e se comunica em e pelo corpo.  

Segundo, não faça da desaprovação retumbante seu principal modus operandi. Nossa natureza está caída e ferida por causa do pecado. Todos nós experimentamos tendências e desejos que contradizem o verdadeiro significado do corpo, independentemente de nossa “orientação” ou situação na vida. Muitas vezes um jovem herda dos pais ou de outros mentores uma condição fragmentada que gera ainda mais confusão. Às vezes, essa confusão leva a desvios sexuais “heterossexuais”, “gays” ou de outro tipo, mas o fato é que a confusão relacionada ao gênero faz parte de uma fragmentação generalizada da sexualidade, experimentada em maior ou menor grau por todos nós. “Se dizemos que não temos pecado, enganamo-nos a nós mesmos, e a verdade não está em nós” (1Jo 1, 8) — sem dúvida, isso é verdade em relação à concupiscência desordenada, que aflige a todos nós. Nossa própria experiência de tentação ou luta deveria nos tornar humildes, compassivos e capazes de oferecer bons conselhos que nós mesmos testamos antes de oferecer.  

Finalmente, enfatize a coragem. A santidade que Cristo deu ao corpo por meio de seu próprio corpo chagado e ressuscitado é para todos, independentemente das inclinações que possamos experimentar; mas é necessário ter coragem e convicção para viver à altura de nossa elevada vocação. A moralidade sexual não equivale ao cumprimento de um conjunto de regras; é, antes, o árduo caminho de nos tornarmos o que somos e quem somos chamados a ser em Cristo. Fingir que é algo fácil para pessoas “boas” não ajuda ninguém. Se nos concentrarmos na verdadeira natureza da castidade, que não implica ficar numa zona de conforto, mas vencer uma batalha para alcançar a integridade, o autodomínio e a capacidade de amar, creio que veremos uma resposta daquela pequena parcela do legado de nossa civilização que ainda anseia pela grandiosidade. 

Notas

  1. Neste outro artigo, encorajo a celebração da Epifania como ela merece ser celebrada: no décimo segundo dia depois do Natal, como sempre se fez na tradição cristã, tanto no Oriente como no Ocidente — e critico o fato de ela ter sido empurrada para o domingo mais próximo, algo um tanto incoerente com o próprio mistério que ela celebra.  
  2. Este artigo deve sua gênese e essência às sábias reflexões de um amigo próximo, que me encorajou a tomar essas ideias, desenvolvê-las e publicá-las. Fico muito satisfeito em fazê-lo, pois a verdade é a verdade e merece ser compartilhada. Não creio no mito iluminista de busca da originalidade a todo custo.
  3. É verdade que, hoje, a maioria das pessoas diria “corpo com gênero”, mas temos de ser muito claros a respeito disso: sexo é um fenômeno biológico e pessoal, ao passo que gênero é um fenômeno gramatical. Muitos idiomas têm os gêneros “masculino, feminino e neutro” para substantivos e adjetivos, mas os animais só possuem dois sexos: masculino e feminino.  
  4. Para ler mais sobre essa perspectiva, recomendo o meu artigo Incarnate Realism and the Catholic Priesthood.
  5. Aqui podemos ver a profunda conexão entre a revolta (ocorrida no início da modernidade) contra a filosofia natural aristotélica, com sua ênfase na forma e na finalidade, e o subsequente desenvolvimento da filosofia política do “contrato social”, que também rejeita a ideia de que a sociedade possui forma e finalidade inerentes. Ela seria, antes, um conglomerado material de partes sobre as quais alguma ordem é imposta de modo extrínseco, para servir aos objetivos particulares das partes que a compõem ou daquele que ordena.

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