Este texto não é de autoria do Padre Paulo Ricardo, mas do escritor Juan Manuel de Prada. A tradução do espanhol é de nossa equipe.

Não há desejo mais humano que o de abandonar este corpo que a natureza nos deu, substituindo-o por outro mais belo ou mais adequado. Esse desejo nasce de nossa nostalgia da divindade, pois — mesmo que nossa razão resista a aceitá-lo ou até o negue furiosamente — nossa alma sabe (como uma espécie de “memória genética”) que uma existência eterna e “transumanada” nos espera, uma metamorfose misteriosa que nos tornará resplandecentes e imortais, sem renunciarmos ao nosso corpo.

Essa vocação plenamente humana, alimentada pelas promessas divinas, encontrou sua paródia naquela outra promessa que a antiga serpente fez a Eva no Éden: “Sereis como deuses” (Gn 3, 5). Quer dizer, podeis revoltar-vos contra o ato criador de Deus, rejeitar os benefícios da Redenção e antecipar o desfrute de uma natureza gloriosa. Todos os truques da antiga serpente se resumem, em última análise, à promessa de um paraíso terrestre que antecipe as alegrias do além e glorifique a nossa carne mortal. E, dentre todas essas artimanhas, nenhuma é tão sugestiva quanto “tornar-nos como deuses”, libertando-nos dos limites biológicos da nossa natureza. Assim, o homem deixa de ser criatura para se tornar criador de si mesmo. 

Foi Dante Alighieri, no primeiro canto do Paraíso, que falou pela primeira vez em “transumanização” a fim de se referir ao objetivo último do homem, que não é outro senão o de alcançar a plenitude do ser após a morte, passando da condição de larva à de borboleta (como se lê também no décimo canto do Purgatório). 

Esse conceito usado por Dante seria retomado muitos séculos depois, com um sentido radicalmente oposto, pelo biólogo e eugenista Julian Huxley, irmão do famoso escritor [Aldous Huxley], que, em um texto intitulado significativamente Religion Without Revelation [“Religião sem Revelação”], escreveu: 

A espécie humana pode, se quiser, transcender a si mesma: não apenas esporadicamente, um indivíduo aqui de um jeito, outro ali de outro jeito, mas como um todo, como humanidade. Precisamos de um nome para essa nova crença. Talvez transumanismo possa servir: o homem continua a ser homem, mas transcende-se a si mesmo, por meio da realização de novas possibilidades. 

Huxley utiliza o termo de Dante para o transformar em uma paródia perversa, tal como a antiga serpente também transforma em paródia perversa a aliança entre Deus e os homens, prometendo-lhes ser como deuses durante toda a sua existência terrena. A “transumanização” deixa de ser uma recompensa divina, que permite ao homem deixar para trás a infelicidade e o sofrimento de sua vida mortal, para se tornar uma obra puramente humana, que pode superar os limites de sua natureza através da química, da cirurgia ou da tecnologia, transformadas em simulacros da Redenção, atalhos por meio dos quais ele pode alcançar nesta vida a transformação em um corpo glorioso. Em suma, seria uma paródia grotesca do ato criador de Deus, dos benefícios da Redenção e das promessas de uma vida futura, tudo ao mesmo tempo, numa compota teológica obtida através de hormônios e bisturis.

Mas tal paródia grotesca está longe de ser uma novidade. Já em suas Conclusões Filosóficas, Cabalísticas e Teológicas (1486), Pico della Mirandola escreve, pondo suas palavras na boca do próprio Deus (mas dando voz, na realidade, à antiga serpente): 

Não te dei uma forma ou função específica, Adão. Portanto, terás a forma e a função que desejares. A natureza das outras criaturas foi dada por mim, segundo meu desejo. Mas tu não terás limites. Definirás os teus próprios limites de acordo com o teu livre-arbítrio. Colocar-te-ei no centro do universo, para que te seja mais fácil dominar o que te circunda. Não te fiz nem mortal nem imortal; nem da terra nem do céu. Assim, poderás transformar-te naquilo que desejares. Podes descer à forma mais baixa da existência, como se fosses um animal, ou podes renascer para além do julgamento da tua própria alma. 

Ao ler essa passagem, precursora da ideologia “trans”, percebemos que aquilo a que a nossa época chama ideias novas não passa das mesmas velhas heresias, convenientemente reformuladas.

No coração da ideologia “trans” está a velha e errônea ideia de que o corpo é uma prisão a ser destrancada para que a nossa humanidade atinja a sua plenitude. Contra essa velha heresia, que destruiu tantas vidas com a promessa de melhorá-las, só existe a nova ideia cristã, hoje mais escandalosa e subversiva do que nunca: nosso corpo, assombrado pela decrepitude e pela morte, será “transumanado” em breve e para sempre.

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CR
Celia Ramos
1 Ago 2024

Excelente texto! E a tristeza maior é ver tentarem induzir crianças que não tem nenhuma capacidade de decisão acharem que também estão nessa situação. Se uma pessoa ficar falando, incutindo na cabeça de uma criança que ela é burra, com certeza é isso que ela vai achar, apesar de não ser. É a mesma coisa,  implantar uma ideologia na cabeça dela para que fique muito insegura e pense que é ela é isso. É um crime e um pecado gravissimo fazer isso. 

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JJ
Juliana Jamel
19 Mar 2024

Artigo necessário, que mais jovens deveriam ler para não serem influenciados pela essa sociedade tão desordenada. 

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AL
Ana Luiza
14 Mar 2024

Artigo Necessário ! Atualmente , o número de meninas vítimas dessa ideia trans humanística  é assustador ! Necessário resgatar o ser homem para se resgatar o ser mulher ! Vejo com tristeza tanta idea nefasta na cabeça de meninas de 11/12/13 anos ! 

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MS
Maria Schueler
13 Mar 2024

Ótimo texto. Esta ideologia trans é algo realmente demoníaco. Me entristece ver o homem, criado por Deus e que recebeu Dele a redenção pela cruz, ficar assim decaído e transumanizado.

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RC
Robson Cola
10 Mar 2024

Veja, na ficção científica, a criação dos Replicantes, na série de filmes "Blade Runner!. Não duvido que já exista tecnologia para criação de seres humanos em laboratório! E que as grandes potências já estejam secretamente os produzindo!!!!

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VB
Vilson Brito
10 Mar 2024

Excelente texto e uma profunda analise que homem sem o criador é um eterno infeliz.

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NP
Náudima Pintor
10 Mar 2024

Dentro da minha conversão verdadeira e recente, conforme peço a Deus discernimento eu percebo que esses temas não cercam só o conteúdo da origem desde o Éden na bíblia. Sou formada em design digital e na faculdade eu me deparei com esse tipo de mentalidade do transumanismo, onde a tecnologia é uma extensão do homem. Dentro do conceito que ele pode se recriar no cyber mundo, a internet. A metáfora da internet está ligada com essa teologia de uma forma tão intrínseca que é bem doentio quando você tenta se aprofundar nas ferramentas tecnológicas. Por que eles tentam de fato "libertar" o homem de Deus e projetar uma nova imagem de si mesmo. Eu tive muita dificuldade para entender essas coisas na época, por que de fato os professores vendem como algo extraordinário. É como a pura positividade das redes sociais e ao mesmo tempo condenam a visão católica apostólica romana ou a simples ordem de que homem é homem e máquina e máquina. Existe uma fundição entre as realidades para que elas se tornem confusas e aqui entra a auto percepção de tudo, especialmente do próprio corpo. Isso gera ódio e revolta, por que não se distingue o corpo como algo natural que serve pro bem maior, mas uma prisão que condena a liberdade de ser dentro dessa teologia. É muito profundo, por que isso começa como uma corrente de pensamento, se torna uma ideia disseminada tão forte que as consequências são terríveis. Enfim só compartilhando que esse artigo está além da prova de que a "evolução" humana caminha a largos passos para auto destruição de si mesmo com essa teologia. Paz  de Deus e o amor de Maria.

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MB
Maria Brito
10 Mar 2024

Penso muito sobre Deus, criuo o homem , deu-lhe inteligência e vontade,tb a liberdade! E o homem caminha de mal à pior, o Cosmo criado por Deus ,transformado em Caos pelo homem! desobediência e orgulhoso 

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GC
Gilberto Coelho
10 Mar 2024

Muito bom. As deformações provocadas pelas cirurgias de mudança de sexo em mulheres deixam qualquer filme do Frankenstein como história pueril. Nossa natureza, divinamente planejada, não pode ser mudada, mas pode ser destruída. O demônio está nos assolando cada vez mais.

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LF
Laércio Ferreira
9 Mar 2024

Mostra que, de certa forma, a Ideologia trans nada mais é que um ataque direto ao Sagrado. De certa forma, o mais ateu dos humanos, ao aderir à esta Ideologia moderna e dita "social", torna-se um instrumento usado na batalha pela "antiga serpente", escondido nas mentes destas pessoas. Se dizem livres de tabus, mas não percebem o quanto estão presas às idéias e a obrigatoriedade ao comportamento pagão, vindo de sua escolha e opção, digna das festas de Baco. Passam a achar que o escândalo é a vulgaridade são "conquistas de sua nova liberdade". Lamentável. 

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CM
Cristina Moreira
9 Mar 2024

importa esclarecimento. Gostei! 

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MK
Maria Klein
9 Mar 2024

Amei o contraponto desse texto. 

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JA
Josiara Allem
9 Mar 2024

Muito bom! Ilustra bem como chegamos nessa "cultura trans" tão promovida hoje! 

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LR
Luis Rosa
9 Mar 2024

Excelente texto.

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MM
Marília Moraes
8 Mar 2024

Uma das visões mais claras sobre o assunto. 

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SR
Salve Rainha
7 Mar 2024
(Editado)

Não importa o quanto tente, o homem nunca será como Deus e jamais conseguirá alterar a estrutura da realidade. Mesmo com todos os recursos científicos, tecnológicos e financeiros, o ser humano nunca será capaz de modificar a ordem natural das coisas. Podem criar teorias, lobotomizar a população com ideologias, porém, no fim das contas, todo esse esforço será apenas uma grande e insana ilusão. Só é lamentável que tantas pessoas tenham que destruir suas próprias vidas para servir a mais um intento soberbo da sociedade moderna.

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