Um protestante entrou em contato conosco há alguns dias, demonstrando sinceridade e vontade de aprender algumas coisas acerca da Eucaristia. Por considerarmos que a resposta às suas indagações poderá ser de grande utilidade para todos os nossos leitores, decidimos torná-la pública.

Comecemos pelas questões que ele coloca, por ordem:

  1. ele questiona o termo transubstanciação, com o qual a Igreja procurou descrever o mistério que se dá neste sacramento; depois,
  2. ele argumenta, “baseando-se nas escrituras sagradas”, “que a Igreja primitiva não tinha problema algum de chamar os elementos pão e vinho ao invés de corpo e sangue”, e pergunta: “se de fato fosse corpo e sangue, por que não evidenciar isso no decorrer dos textos?”;
  3. ele cita o trecho de Jo 6, 53-55, no qual Jesus fala de sua carne como “verdadeira comida” e de seu sangue como “verdadeira bebida”, e admite: “Esse texto poderia corroborar para a questão de realmente haver o milagre da transubstanciação”, não fosse Jo 6, 63 explicar que “o Espírito é que dá vida, a carne de nada aproveita”, com o que, ele supõe, a doutrina da transubstanciação fica comprometida;
  4. ele diz que o uso da expressão “Isto é o meu corpo”, presente nos Evangelhos e em 1Cor 11, 24, “não é algo tão explícito para comprovar a questão de que é de fato o corpo de Cristo”; e, por fim,
  5. ele argumenta que “milagres não são por si só provas”, certamente se referindo ao fenômeno dos milagres eucarísticos acontecidos na Igreja Católica, dos quais existem inúmeros exemplos ao redor do mundo.

Considerando que as questões, embora sejam cinco, lidam com três aspectos do problema, dividimos nossa resposta em três grupos de observações: primeiro, quanto à linguagem (1 e 2); segundo, quanto à interpretação das passagens relativas à Eucaristia (3 e 4); e, por fim, quanto aos milagres (5).

O problema da linguagem. — É evidente que na Igreja nascente não existia o termo “transubstanciação”. O Manual de Teologia Dogmática de Ludwig Ott fala de sua origem no século XII, ou seja, mais de um milênio após a morte de Cristo [1].

“Pronto”, o protestante mais afoito responderá, dando por encerrada a questão, “a Igreja Católica inventou a transubstanciação”.

Ora, não é porque a palavra transubstanciação passou a constar nos documentos da Igreja só a partir do segundo milênio que a realidade a que ela faz referência não existia já antes. Na verdade, foi justamente para proteger o que os cristãos desde o princípio acreditavam a respeito da Eucaristia que a Igreja passou a adotar esse termo em seus ensinamentos. É que barreiras de proteção normalmente só são necessárias diante de perigos e ameaças. São Pedro Apóstolo, ao dizer a Jesus: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”, estava claramente confessando a divindade de Cristo. Mas, quando alguns começaram a negar essa verdade, a Igreja no Concílio de Niceia se viu obrigada a incrementar a profissão de fé apostólica: Jesus Cristo passou a ser crido como o Filho “gerado, não criado, consubstancial ao Pai, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, Luz da Luz”. Não que Ele já não o fosse antes. Mas diante da ameaça dos arianos, que diziam ser Ele uma simples “criatura” do Pai, foi necessário ser mais específico, enfático e explícito.

Ora, o primeiro milênio praticamente não viu surgirem heresias eucarísticas. Daí o “menor cuidado”, por assim dizer, com as formulações a respeito desse sacramento. Mas se esse cuidado ainda não se via tão claramente no campo da linguagem, o zelo dos primeiros cristãos com a liturgia revestia-se de uma piedade verdadeiramente exemplar: havia clara consciência de se estar diante de um mistério tão grandioso, tão excelso, tão superior, que precisava ser velado de algum modo, escondido do olhar dos curiosos, preservado da incredulidade pagã. Era a chamada “disciplina do arcano” (disciplina arcani), que levou os cristãos a celebrarem secretamente a Eucaristia, para preservá-la.

A consciência do mistério traduz-se com muita simplicidade nos escritos dos Santos Padres. Notem todos que, mesmo não havendo ainda o termo “transubstanciação”, os elementos a que faz referência essa expressão já estavam todos presentes [2]: sabia-se que na consagração do pão e do vinho acontecia (i) a conversão de um e de outro no Corpo e Sangue de Cristo, (ii) operada por força das palavras do Senhor, (iii) ao mesmo tempo que se mantinham, por outro lado, certos aspectos do pão e do vinho — isto é, os seus “acidentes”.

O Papa Paulo VI faz uma ótima compilação dessas passagens em sua encíclica Mysterium Fidei (n. 50-53):

Assim instruído e acreditando com a maior certeza que aquilo que parece pão não é pão, apesar do sabor que tem, mas sim o Corpo de Cristo; e que o que parece vinho não é vinho, apesar de assim parecer ao gosto, mas sim o Sangue de Cristo... tu fortalece o teu coração, comendo aquele pão como coisa espiritual, e alegra a face da tua alma (São Cirilo de Jerusalém, Catech. 22, 9: PG 33, 1103).

Quem faz que as coisas oferecidas se tornem o Corpo e o Sangue de Cristo não é o homem, é Cristo que foi crucificado por nós. Como representante, pronuncia o sacerdote as palavras rituais; a eficácia e a graça vêm de Deus. Diz ‘isto é o meu Corpo’: esta palavra transforma as coisas oferecidas (São João Crisóstomo, De prodit. Iudae, Homil. 1, 6: PG 49, 380).

(Cristo) afirmou de maneira categórica ‘isto é o meu Corpo e isto é o meu Sangue’. Não vás tu julgar que as realidades visíveis são figura, mas fiques sabendo que Deus Onipotente transforma, de modo misterioso, algumas das coisas oferecidas, no Corpo e no Sangue de Cristo; quando destes participamos, recebemos a força vivificante e santificadora de Cristo (São Cirilo de Alexandria, In Matth. 26, 27: PG 72, 451).

Persuadamo-nos que já não temos o que a natureza formou, mas o que a bênção consagrou; e que a força da bênção é maior que a força da natureza, porque a bênção muda até a natureza [...]. A palavra de Cristo, que pode fazer do nada aquilo que não existia, não poderá mudar as coisas que existem naquilo que não eram? Criar coisas não é menos que mudá-las (Santo Ambrósio, De myster. 9, 50-52: PL 16, 422-424).

Esses testemunhos servem para nos mostrar como as doutrinas definidas pelo Magistério da Igreja não surgem por “geração espontânea”. Não é que, do dia para a noite, um sínodo ou um Concílio ecumênico tenha decidido “decretar” o dogma da transubstanciação. Não. Com o passar dos anos, vai crescendo na mente dos Doutores e no coração dos fiéis a compreensão das verdades de fé e, assim, quando surge no século XI um Berengário de Tours ousando ensinar que a Eucaristia não passa de um “símbolo”, o que faz a Igreja? Simplesmente o obriga a retratar-se, com uma fórmula já repleta de cuidados:

Eu, Berengário, creio [...] que o pão e o vinho que são postos sobre o altar, em virtude do mistério da santa oração e das palavras de nosso Redentor, são transformados, quanto à substância [substantialiter converti], na verdadeira e própria vivificante carne e sangue de nosso Senhor Jesus Cristo; e que, depois da consagração, são o verdadeiro corpo de Cristo [verum Christi corpus], que nasceu da Virgem e para a salvação do mundo foi pendurado na cruz e está sentado à direita do Pai, e o verdadeiro sangue de Cristo [verum sanguinem Christi], que foi derramado do seu flanco (Profissão de Fé de Berengário de Tours, 11 fev. 1079: DH 700).

Por que agiu assim a Igreja? Porque ela tinha um mistério a guardar! A Eucaristia é um mistério do qual o Papa e os bispos em comunhão com ele são apenas depositários e, por isso, eles não tinham (e não têm) o direito de “manipular” essa realidade com qualquer linguagem, se isso significasse pôr em risco o ensinamento de Cristo e o que os cristãos sempre haviam entendido, desde o começo, como sendo o ensinamento de Cristo.

Mas o que os cristãos receberam de Cristo, afinal? Com essa pergunta, entramos em nosso segundo problema: a interpretação do texto bíblico.

O problema da interpretação bíblica. — Discutir exegese bíblica com protestantes é sempre um desafio, porque, não estando eles dispostos a aceitar a autoridade da Igreja Católica — a única estabelecida por Cristo Jesus —, só o que resta é o “livre exame”, ou a criação artificiosa de alguma autoridade humana para resolver as controvérsias que inevitavelmente surgem da leitura das Escrituras.

O trecho citado por nosso amigo protestante é, de fato, o mais forte de toda a Bíblia a respeito da Eucaristia: em Jo 6, 53-55, Jesus fala de sua carne como “verdadeira comida” e de seu sangue como “verdadeira bebida”, dizendo ainda que seria necessário τρώγειν (lit., “roer, mastigar, comer”) o seu corpo para ter a vida eterna.

Ora, palavras tão contundentes assim, de cuja literalidade Jesus fez questão de não “arredar o pé” em momento algum… “anuladas” por uma referência ao Espírito que dá vida e à carne que de nada aproveita?

Bom, se o leitor está disposto a se servir de qualquer versículo que seja para negar a transubstanciação… então aí está a oportunidade! Mas Santo Tomás de Aquino, a partir de São João Crisóstomo e de Santo Agostinho, dá ao versículo 63 uma interpretação muito mais em harmonia não só com o restante do discurso do pão da vida, mas com tudo o que a Igreja sempre creu a esse respeito:

Deve-se saber […] que as palavras de Cristo podem entender-se num duplo sentido: (a) em sentido espiritual e (b) em sentido corporal. E por isso diz: “O espírito é que vivifica”, isto é, “se entenderdes as palavras que vos disse segundo o espírito”, ou seja, segundo o seu sentido espiritual, “minhas palavras vos vivificarão”; “a carne de nada serve”, isto é, “se as entenderdes em sentido carnal, elas de nada vos aproveitarão: antes, vos farão mal”. Porque, como se diz em Rm 8, 12, “se viverdes segundo a carne, haveis de morrer”.

Pois bem, as palavras do Senhor a respeito de sua carne dada como comida entendem-se carnalmente quando se interpretam tal como as palavras soam externamente, e referidas à natureza da carne; e era deste modo que eles as entendiam [...]. Mas o Senhor dizia que se lhes havia de dar como alimento espiritual, não porque no sacramento do altar não esteja presente a verdadeira carne de Cristo, mas porque ela é consumida de um certo modo espiritual e divino. Assim, portanto, o sentido adequado destas palavras não é carnal, mas espiritual. Eis porque acrescenta: “As palavras que vos tenho dito”, a saber, acerca de minha carne dada como comida, “são espírito e vida”, ou seja, têm um sentido espiritual e, assim entendidas, dão vida. E não é estranho que tenham um sentido espiritual, porque são palavras vindas do Espírito Santo: “Fala coisas misteriosas, sob a ação do Espírito” (1Cor 14, 2). E é por isso que os mistérios de Cristo vivificam: “Jamais esquecerei vossos preceitos, porque por eles é que me dais a vida” (Sl 118, 93).

Mas, de acordo com Agostinho, essa passagem se explica de outro modo, pois isto que o Senhor disse: “a carne de nada serve”, refere-se à carne de Cristo. É evidente, com efeito, que a carne de Cristo, enquanto unida ao Verbo e ao Espírito, traz muito proveito e de todas as maneiras: do contrário, em vão o Verbo se teria feito carne, em vão o Pai o teria manifestado na carne [...]. E por isso se deve dizer que a carne de Cristo, considerada em si mesma, de nada serve, e não tem efeito mais benéfico que o de outra carne. De fato, se a carne de Cristo é separada, idealmente, da divindade e do Espírito Santo, não tem mais virtude do que outra carne; mas, se está unida ao Espírito e à divindade, é de proveito para muitos, porque faz os que a comem permanecerem em Cristo. Com efeito, é pelo Espírito de caridade que o homem permanece em Deus: “Nisso é que conhecemos que estamos nele e Ele em nós, por Ele nos ter dado o seu Espírito” (1Jo 4, 13). Eis porque diz o Senhor: este efeito (ou seja, o da vida eterna) que eu vos prometo, não deveis atribuí-lo à carne considerada em si mesma, pois a carne assim considerada de nada serve; mas, se o atribuirdes ao Espírito, e à divindade unida à carne, assim é que ela dá a vida eterna: “Se vivemos pelo Espírito, andemos também de acordo com o Espírito” (Gl 5, 25). E é por isso que acrescenta: “As palavras que vos tenho dito são espírito e vida”, isto é, devem ser referidas ao Espírito unido à carne; e, assim entendidas, são vida, a saber: vida da alma. Pois assim como o corpo vive com vida corporal graças ao espírito corporal, assim também a alma vive com vida espiritual graças ao Espírito Santo: “Enviai o vosso Espírito, e tudo será criado” (Sl 103, 5) (Comentário ao Evangelho de São João, VI, l. 8, n. 992-993, destaques nossos).

Riquíssimos de espiritualidade são esses comentários, e mais belo ainda é ver como eles se articulam com outros mistérios de nossa fé, como a união hipostática. Nosso Senhor, sendo o próprio Deus feito homem, dá-nos de sua carne justamente para nos fazer participantes de sua natureza divina (cf. 2Pd 1, 4). Assim, nós, católicos, quando comungamos (com fé e em estado de graça, é claro), tomamos parte na vida do próprio Deus, recebemos nesse banquete toda a força necessária para lutarmos contra o pecado e nos elevarmos acima de nossa condição decaída… É a Redenção que atua diretamente em nossa vida, transformando-nos nos santos que Deus quer que sejamos.

Quanto a “Isto é o meu corpo” ser expressão insuficiente para se defender a presença real de Cristo na Eucaristia, respondemos com Ludwig Ott que, aqui, vários fatores exigem a interpretação literal dessas palavras:

a) O texto das palavras. Não existe nada no texto que possa servir de fundamento para uma interpretação figurada, pois o pão e o vinho não são, nem por natureza nem por uso geral linguístico, símbolos do corpo e do sangue. A interpretação literal não encerra em si contradição alguma, uma vez que pressupõe, desde já, a fé na divindade de Cristo.

b) As circunstâncias. Cristo tinha de acomodar-se à mentalidade dos Apóstolos, que entenderam suas palavras tal como foram pronunciadas. Se não queria induzir ao erro toda a humanidade, tinha de servir-se de uma linguagem que não se prestasse a falsas interpretações, sobretudo naquela ocasião, quando ia instituir um sacramento e um ato de culto tão sublime, quando ia fundar a Nova Aliança e legar-nos seu testamento.

c) As conclusões práticas que deduz o apóstolo São Paulo das palavras da instituição. Diz o Apóstolo que quem recebe indignamente a Eucaristia peca contra o corpo e o sangue do Senhor; e quem a recebe dignamente faz-se participante do corpo e do sangue de Cristo (cf. 1Cor 10, 16; 11, 27ss) [...].

d) A insuficiência dos argumentos apresentados pelos adversários. Se é verdade que o verbo “é” tem em vários lugares da Escritura (v.g. Mt 13, 38: “o campo é o mundo”; cf. Jo 10, 7a; 15, 1; 1Cor 10, 4) um significado equivalente a “simboliza” ou “representa”, não é menos certo também que em tais casos o sentido figurado dessas passagens deduz-se sem dificuldade da natureza mesma do assunto (v.g., quando se trata de uma parábola ou alegoria) ou pelo uso geral da linguagem. Mas no relato sobre a instituição da Eucaristia não ocorre nenhuma dessas coisas [3].

O problema dos milagres. — É claro que, para quem não está disposto a crer, nem mil provas serão suficientes: pode-se-lhe mostrar a Bíblia, os testemunhos da Tradição, as manifestações do Magistério perene da Igreja e até os milagres eucarísticos ao longo dos séculos, verdadeiros “carimbos” de Deus para confirmar a autenticidade da fé católica na Eucaristia… mas será tudo em vão. Enquanto não estivermos dispostos a aceitar a autoridade do Deus revelante, que não se engana nem nos pode enganar, e que instituiu a Igreja Católica para guardar o depositum fidei…  serão em vão todas e quaisquer argumentações.

O que precisamos, no fundo, para aceitar a transubstanciação, é simplesmente de um ato de fé, como este: “Eu acredito que no Sacramento da Eucaristia está verdadeiramente presente Jesus Cristo, porque Ele mesmo o disse, e assim no-lo ensina a Santa Igreja” (Catecismo de S. Pio X, 596). Nada mais.

Isso pode parecer pouca coisa, caro leitor, mas é o passo decisivo… e, no momento extraordinário em que ele for dado, tenha a certeza de que Nosso Senhor, dos céus, estará lhe dirigindo as mesmas palavras que, um dia, ele pronunciou a São Pedro: “Bem-aventurado és”, meu filho, “porque não foi a carne nem o sangue que te revelou isto, mas meu Pai que está nos céus” (Mt 16, 17).

Referências

  1. Ludwig Ott, Manual de Teología Dogmática. 7.ª ed., Barcelona: Herder, 1969, p. 562.
  2. Cf. Id., p. 563, onde se fala dos elementos que compõem a noção “transubstanciação”.
  3. Cf. Id., pp. 557-558.

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