Na Quaresma, confrontamos a barreira que nos separa de Deus, nossa condição pecadora e muitos pecados pessoais. Por isso se recomendam a oração, o jejum e a esmola, mas um livro que nos guie também pode ser útil. O Purgatorio de Dante é um dos melhores que conheço. As crises do mundo são sempre crises de pecado.
Durante cerca de quarenta anos, li e ensinei Dante. Mas minha incumbência este ano, dada por meu jovem diretor, um medievalista, era ensinar não o Inferno em um curso introdutório à literatura medieval, mas o Purgatório. “É teologicamente mais interessante”, opinou ele. Tendo visto jovens não católicos em várias escolas e colégios seculares paradoxalmente se erguerem entusiasmados para ouvir a descida de Dante aos círculos estreitos e excruciantes do adultério, da usura, da curiosidade, da fraude e da traição, desde Paolo e Francesca, arrastados pela ventania, até Judas, Cássio e Brutus, confinados ao gelo, eu temia que a laboriosa subida da Montanha do Purgatório, desde a Superbia (Soberba) até a Luxuria, fosse entediar estes leitores de primeira viagem. Em literatura — como defendia William Blake a respeito do Paraíso Perdido, de John Milton, cujo Satanás superou a Cristo em termos de protagonismo —, o vício frequentemente chama mais atenção do que a virtude. Pela primeira vez, no entanto, vi-me a ensinar o estudante florentino de Tomás de Aquino numa escola irrestritamente católica, trazendo às costas o peso da confiança de pais que queriam proteger os filhos das toxinas da cultura moderna, e senti aí uma circunstância particularmente especial. Iria eu querer lançar de um golpe o horror gráfico da danação eterna nos doces olhos e ouvidos de minha neta de treze anos? Com certeza Dante não pensava em tal inocência como ponto de partida.
Acontece, ao fim e ao cabo, que o Purgatorio é também um bom começo para anciãos culpados, envergados e alquebrados pelo pecado. É um compêndio prático das estratégias tradicionais da Igreja para galgar até a luz. Cada canto se move para frente e para cima, e não para baixo e para fora. Ele segue, ademais, a hierarquia dos pecados, mas trajado de uma valiosa armadura para lidar com os sete pecados capitais: cânticos, orações, as virtudes opostas, os mistérios do Rosário, além de exemplos clássicos e bíblicos como corde (cordas ou “rédeas”) e frene (freios ou “aguilhões”). A Igreja, Dante o sabia, possui uma multidão de meios para estimular virtudes e proteger de vícios. Ela é uma organização construtora de virtudes e destruidora de vícios, e Dante reúne suas tradições na forma de um manual “Faça você mesmo”.
Ao sopé da montanha de sete andares, os Orgulhosos, que tentaram elevar-se acima dos outros, sofrem sem poder mover-se, oprimidos pelas rochas do amor-próprio, num equivalente purgatorial do infernal contrapasso [i], a punição apropriada para o pecado. Na lei moral natural, os pecadores recebem exatamente o que querem, e é por isso que Paolo e Francesca, que cederam aos movimentos de seus corações adúlteros, foram condenados para sempre aos ventos variáveis do desejo. De modo semelhante, mas contrário, já que os que estão no Purgatório morreram livres de pecado mortal e sujeitos apenas a seus efeitos temporais remanescentes, o contrapasso é também um meio adequado de escapar, mais do que uma simples punição. Os pecadores têm à disposição muitos outros meios adequados de escalar [a montanha].
Lex cantandi, lex vivendi: vivemos como cantamos. Como já disse a meus estudantes: não haveria realmente nenhuma diferença para as almas se ouvissem gregoriano em vez de bateria e guitarra elétrica? Os orgulhosos entoam o Te Deum, louvando ao Deus a quem o seu amor próprio impediu de conhecer e amar o suficiente. A humildade é a virtude que lhes confronta o orgulho; eles não se curvaram, não cederam, não deram lugar aos outros. “Bem-aventurados os pobres em espírito” é a beatitude específica para essa virtude oposta. A Anunciação de Maria é o mistério gozoso e uma das “cordas” que impulsionam a humildade contra o orgulho: ela aceitou em sua pequenez o belo fiat da Encarnação. Os contraexemplos, ou “freios”, que afastam do orgulho, incluem Nemrod, que projetou a Torre de Babel e, como o orgulho é o mais pesado dos pecados, o próprio Satanás, um altivo relâmpago esculpido na encosta da montanha, fulminante mas inútil. Um sacerdote me disse certa vez que as mulheres confessam esse pecado regularmente, o que mostra sua superioridade espiritual; o que os homens mais confessam, ele nem precisou me dizer qual era.
De olhos fechados e vestindo um rude tecido como cilício, os Invejosos, que olharam demais para as vestimentas dos outros, se sentam ombro a ombro em volta de uma pedra azul escura, feridos e se ferindo em sua tristeza pelo bem alheio, já que foram cegos aos corações dos seus próximos e se concentraram na externalidade deles. Amparando-se mutuamente em solidariedade, eles cantam a Ladainha de Todos os Santos, já que foi a comunhão [uns com os outros] a dificuldade deles. O amor ao próximo é a virtude que neles era escassa, e “bem-aventurados os misericordiosos” a beatitude que neles faltava. A festa das bodas de Caná, quando Maria generosamente pensou nos convidados, é uma “corda” meditativa adequada, e Caim, que matou seu irmão por inveja, um “freio” apropriado do Velho Testamento. Uma voz incorpórea repete: “Amai os vossos inimigos”, o ensinamento mais difícil e singular do Sermão da Montanha, um ditado que “chicoteia com amor” os que fracassaram em amar.
Na cornija logo acima, os olhos dos Iracundos lacrimejam em meio à fumaça à medida que esses pecadores se acotovelam, rezando “por paz e misericórdia”. A ira é um pecado de agitação, que deve ter o seu nó afrouxado pelo canto do Agnus Dei “em concórdia”, já que a discordância de vozes conflitantes foi o problema deles na Terra. Faltou-lhes mansidão, e a beatitude de que necessitam é “bem-aventurados os pacíficos”. O mistério gozoso do Encontro no Templo é uma “corda” surpreendente. Talvez a Santíssima Virgem tenha louvado seu Filho por seguir sua vocação celeste ao invés de o ter disciplinado por uma aparente desobediência temporal. Amã, que no livro de Ester quis a morte de Mardoqueu e dos judeus cativos na Pérsia, é ele mesmo crucificado como um “freio” para os culpados de injusta vingança. Não que o Purgatorio tenha menos ira justa que a Sagrada Escritura: como ensinou Santo Tomás de Aquino, trata-se de uma resposta adequada da vontade racional à injustiça, à apatia e à negligência, constituindo pecado algumas vezes, de fato. Claramente, moderação é a chave aqui.
Os primeiros três pecados são, de modo especial, pecados de amor na direção errada, voltados para dentro, enquanto o próximo, de uma classe própria, é uma falta completa de amor, até por si mesmo. Exatamente no nível mediano, os Preguiçosos correm constantemente, necessitados da virtude do zelo, já que eles foram lentos em apreciar a Criação, por “tristeza para com seu próprio bem”. O guia de Dante, Virgílio, discorre longamente sobre a relação entre amor e livre-arbítrio como uma canção secular apropriada capaz de ajudar os desanimados neste mundo, tanto os hiperativos quanto os paralisados, a despertar e transformar seu luto beatitudinal em uma bênção. Assim como o amor liberta a alma aprisionada, o luto olha para fora, além das correntes por ela usadas para acorrentar a si mesma. Correndo às montanhas para ver Isabel no mistério da Visitação, Maria exorta ao zelo. O tempo está passando. Não seja como os israelitas que resmungaram no deserto e morreram antes de ver a Terra Prometida. As pessoas que sofrem com depressão, e os que as aconselham hoje em dia, muitas vezes não percebem a acídia como um pecado de negligência. A psicologia de Dante a apresenta como algo sujeito à força de vontade e relacionado à gratidão.
Os últimos três pecados são de amor imoderado. Os Avarentos jazem estendidos no chão, com as mãos e pés amarrados e as faces por terra, por não haver levado em conta as coisas mais elevadas do alto. Eles estocaram e desperdiçaram a Criação, recusando-se a partilhar. O hino litúrgico correspondente a eles é o Gloria in excelsis Deo, que os dirige para cima, a Deus, “nas alturas”. A pobreza é a virtude que lhes faltou, mas sua beatitude não é “bem-aventurados os pobres”, senão “bem-aventurados os que têm sede” — de justiça e não de riquezas materiais. O mistério gozoso da Natividade, também uma “corda”, apresenta o tradicional fruto da pobreza. [O personagem da mitologia grega] Midas, que desejou tanto o ouro a ponto de até mesmo os alimentos por ele tocados se transformarem na pedra, é o “freio” perfeito aqui.
O peregrino Dante se move cada vez mais rápido à medida que escala a montanha. Os pecados da carne podem até nos deixar menos pesados que os espirituais, mas são os últimos a desaparecer. Magros agora, já que a comida não os nutriu adequadamente, os Gulosos jejuam e cantam: Domine, labia mea aperies, et os meum annuntiabit laudem tuam, “Abri os meus lábios, ó Senhor, e minha boca anunciará vosso louvor” (Sl 50, 17). O uso mais elevado da boca e dos lábios é para o louvor de Deus e não para a degustação e mastigação. Essas almas “têm fome de justiça” e não de carne. Uma vez mais, o mistério da festa das bodas em Caná é uma “corda”, pois Maria procurou satisfazer aos convidados do casamento “mais do que à própria boca”. Não surpreendentemente a abstinência é o que se opõe à gula, e Eva, que comeu o fruto proibido da desobediência e da curiosidade, é o contraexemplo.
Vamos enfim à última cornija, sobre a qual eu vejo meus leitores homens meditando desde já. Os Luxuriosos, envoltos em chamas, cantam Summae Deus clementiae, um hino que invoca o “Deus de suma clemência”, com um “coração purificado das coisas sórdidas”: corde puro sordibus. Para que não nos enganemos com um regime de práticas perfeitas, somos lembrados assim de que não nos salvamos a nós mesmos como super-heróis pelagianos, mas rezamos por nossa salvação como pecadores desamparados. Uma vez mais, o mistério da Anunciação, desta vez oferecendo a virtude da castidade (“não conheço homem…”), é uma “corda” gozosa. Os sodomitas, que passam por Dante na direção errada, são o principal “freio”, pois a perversão que eles fazem do ato conjugal é a expressão essencial de toda luxúria.
Vencer o pecado é aproximar-se do Paradiso. Tendo “esquecido” seus efeitos temporais com as águas do Letes, o peregrino Dante vê o Jardim do Éden e um imenso Cortejo Celestial, a Carruagem da Igreja Triunfante puxada pelo Grifo de duas naturezas Homem-Deus e acompanhada pelas velas das Quatro Virtudes Cardeais e das Três Virtudes Teologais e pelo Velho e Novo Testamento como anciãos a marchar. A alegoria explode em um triunfo, um desfile de vitória sobre o pecado.
Seria possível tomar um pecado por semana para subir a montanha da Quaresma, ou gastar todas as seis semanas e meia no seu pecado mais espinhoso, usando os hinos sugeridos acima para purificar a sua alma e os exemplos e contraexemplos da Sagrada Escritura (e muitos da mitologia secular) para dirigir o seu caminho. É claro que Dante Alighieri não pensou seu Purgatorio como um prelúdio quaresmal para a Páscoa, especialmente porque o Inferno começa na Sexta-feira Santa e o Purgatorio termina bem na semana da Páscoa [ii], mas na cúspide do Paradiso o peregrino Dante emerge da la santissima onda / rifatto sí come piante novelle / rinovellate di novella fronda, / puro e disposto a salire a le stelle: “da onda santa, / como de novas folhas, ao rompê-las / de sua ramagem, se renova a planta: / puro e disposto a subir às estrelas”. Não há garantia de que essas meditações preparatórias farão isso por você, mas vale a pena tentar. Meu jovem diretor estava certo.
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