A última semana foi agitada não só pelo início dos Jogos Olímpicos de Paris, mas especialmente pela cerimônia de abertura, que causou consternação mundo afora.
Só ficou bom quando acabou. A performance da cantora Céline Dion, que encerrou a cerimônia de abertura dos jogos, na sexta-feira, dia 26 de julho, foi arrebatadora. Céline sofre há anos de uma doença rara chamada “síndrome da pessoa rígida”, que atingiu suas cordas vocais, retirando-a dos palcos. A intérprete de My heart will go on, do Titanic, lançou recentemente um documentário em que narra o pesadelo de sua condição física: espasmos, convulsões e perda da voz. Por isso, vê-la e ouvi-la cantar Hymne à l’amour, de Édith Piaf — canção cuja letra fala de um amor que supera a morte — foi mesmo inspirador. “Ela não é uma vencedora, é um milagre”, disse uma jornalista.
O “milagre” de Céline Dion, no entanto, não foi suficiente para apagar a tragicomédia que a precedeu naquela noite. A cerimônia de abertura das Olimpíadas de Paris foi tão confusa e fragmentada, que chocou a audiência mundial pelo excesso de bizarrices e simbologia ocultista. As cenas já são conhecidas. Numa suposta paródia, cafona e blasfema, da Santa Ceia, um grupo de drag queens e travestis simulou um rito pagão ao deus grego do vinho, Dionísio. Também a figura de um cavaleiro branco, caminhando à frente de um pelotão com as bandeiras das delegações, deu o tom anticristão e apocalíptico do espetáculo. Até o martírio de São Dinis, que evangelizou a Gália no século III, foi representado de forma indecorosa.
Como era de esperar, as cenas provocaram a reação imediata do público. “Desejamos que eles compreendam que a celebração olímpica vai muito além dos preconceitos ideológicos de alguns artistas”, enfatizou a Conferência Episcopal Francesa em nota de repúdio [i]. Por sua vez, Philippe Katerine, que interpretou Dionísio na celebração, pediu perdão aos cristãos, mas sem se arrepender da performance [ii]. Para ele, bem como para os organizadores do evento, a intenção não era desrespeitar qualquer grupo religioso, nem a Última Ceia teria inspirado a apresentação. Thomas Jolly, diretor artístico do evento, afirmou ainda que “queria fazer uma cerimônia que reparasse, que reconciliasse” e que “reafirmasse os valores da nossa República” [iii].
Acredita quem quiser. Paródia ou não da Última Ceia, a verdade é que a celebração foi uma ode ao paganismo. Cabe, então, a pergunta: a exaltação de bacanais míticos, como a “Festa dos deuses”, seria a melhor maneira de reparar, reconciliar e reafirmar os valores franceses? Certamente não. Mas a sanha revolucionária de Robespierre ainda persiste em vários corações daquela que já foi considerada “a filha primogênita da Igreja”. A Revolução segue em curso, não já pela guilhotina, talvez, mas pelo revisionismo histórico e ideológico que tenta apagar da alma francesa o batismo de Nosso Senhor.
“França, és fiel às promessas do teu batismo?”, questionou São João Paulo II a primeira vez que esteve no país, em 1980 [iv]. Por várias ocasiões, aliás, o Papa solicitou ao então presidente francês, Valéry Giscard, que mencionasse as “raízes judaico-cristãs da Europa” no preâmbulo da Constituição europeia, o que foi prontamente recusado. Curiosamente, o mesmo Papa teve a sua imagem removida de um espaço público da França, em 2018, por suposta violação da lei de 1905, que proíbe “a criação ou afixação de qualquer sinal ou emblema religioso” em espaço público [v].
A lei, que determinou a separação da Igreja e do Estado, foi o último golpe da Revolução Francesa no catolicismo. Julgava-se a fé católica um obstáculo ao progresso social e ao desenvolvimento da República. Assim, o governo francês pôs fim à Concordata de 1801, com a qual Napoleão havia assegurado ao Vaticano um estatuto oficial. Para o ex-primeiro ministro francês (2005-2007) Dominique de Villepin, essa lei decorreria “diretamente da filosofia inspiradora dos direitos do homem de 1789”:
Um princípio está no centro da Lei de 1905 — Liberdade. A lei estabeleceu uma linha direta entre a sociedade secular e os ideais revolucionários consagrados na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Nunca mais qualquer religião poderia exercer influência nas decisões do Estado [vi].
Em nome da liberdade, este mesmo Estado se tornou, em março de 2024, o primeiro do mundo a incluir na Constituição o direito ao aborto. Com toda pompa, o presidente francês Emmanuel Macron anunciou ainda que lutaria para que essa decisão se expandisse pela União Europeia [vii]. Se a mãe de Céline Dion tivesse ouvido antes os profetas dessa Revolução do que a Santa Igreja Católica, a França não teria assistido à grande cantora numa noite digna de esquecimento. Céline mesmo confessa: “Devo minha vida a um padre” [viii].
No dia seguinte à abertura das Olimpíadas, a chamada “cidade das luzes” sucumbiu às trevas de um apagão. Iluminada, no topo do monte Martre, ponto mais alto da capital francesa, restou a Basílica do Sacré-Coeur (Sagrado Coração). Um aviso de Deus aos franceses? Pode ser. Todavia, o pior “apagão” da França não é o elétrico, mas o espiritual, “apagão” moral que a tornou uma nação em franca decadência.
Gloriosa França das disputas entre Boaventura e Tomás de Aquino, na Universidade de Paris; gloriosa França do reinado de São Luís; gloriosa França de Vianney, na humildade de Ars; gloriosa França de Teresinha, na discrição de Lisieux… Apenas uma mente fanática e anticristã apagaria tão grande tesouro da própria história para, em seu lugar, exibir uma figura ridícula como a que vimos naquela cerimônia. Mas esta é a França republicana e anticlerical, a França de Duchamp, que glorifica um vaso sanitário.
Por ironia, a organização das Olimpíadas de Paris vem sendo justamente criticada por isto: fezes no Rio Sena. “Bebi muita água, então amanhã saberemos se estou doente ou não. Não tem gosto de Coca-Cola ou de Sprite, é claro. Enquanto nadava sob a ponte, senti e vi coisas sobre as quais a gente não deveria pensar muito”, declarou a nadadora belga Jolien Vermeylen, após a prova de triatlo [ix].
A cerimônia de abertura das Olimpíadas de Paris, no fim das contas, serviu apenas para dar razão à advertência de um filósofo brasileiro: “Visite a França antes que acabe”.
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