“Acredito que levará séculos para desfazer o nó de confusão e estupidez que se atou quando os reformadores, de modo um tanto irracional, separaram a Bíblia da Igreja”.
Embora G. K. Chesterton seja admirado tanto por protestantes quanto por católicos, e até mesmo por não-cristãos, as linhas transcritas acima não são exatamente um modelo de ecumenismo. Mas, uma vez que assistimos este ano ao quinto centenário da Reforma, é conveniente que tentemos entender de que maneira Chesterton identifica o problema que há meio milênio vem atormentando o mundo cristão. O problema tem a ver com o melhor de todos os livros: a Bíblia Sagrada.
Cinco séculos atrás, Martinho Lutero, seguido por João Calvino e outro líderes do que se conhece como Reforma Protestante, operou uma enorme cisão na cristandade européia ao separar-se da autoridade da Igreja apelando à autoridade da Escritura. Os reformadores não apenas separaram a Bíblia da Igreja, a ponto de excluir a própria Igreja; eles separaram a fé da razão, a ponto de excluir a própria razão.
O que veio em seguida foi confusão. Protestantes começaram a acreditar que, de algum modo, a doutrina católica não tinha base “escriturística” e, consequentemente, se privaram dos sacramentos:
- O Batismo e a Eucaristia tornaram-se meros símbolos, desprovidos de qualquer força sobrenatural.
- Já não havia mais necessidade nenhuma da Confissão, uma vez que a salvação provém de um único ato de misericórdia na cruz, e Cristo foi então removido da cruz, para que as pessoas não ficassem presas a essa coisa desagradável ou, pior do que isso, viessem a adorar uma imagem esculpida em um crucifixo.
- O casamento entre um homem uma mulher perdeu seu elemento divino e, por conseguinte, o sexo começou a ser algo alheio ao matrimônio, e assim teve início a dissolução da família.
- De guias espirituais encarregados de conduzir as almas para o céu, os padres começaram a ser vistos como agentes do inferno e das trevas.
A separação protestante entre Bíblia e Igreja foi impulsionada pela invenção da imprensa — uma invenção católica em uma sociedade católica, destaca Chesterton, mas que “foi largamente utilizada para encher as livrarias de mentiras contra essa mesma sociedade”.
Os protestantes continuaram a protestar, não só contra a Igreja Católica, mas ainda entre si, na medida em que novos grupos iam-se desmembrando em seitas cada vez mais estreitas com interpretações ainda mais estreitas da Bíblia e daquilo que devia ser o cristianismo. Pureza e justiça foram substituídas por puritanismo e farisaísmo, de modo que, em vez de condenar o mau uso das coisas boas, as boas coisas foram condenadas em si mesmas.
A ênfase calvinista na absoluta soberania de Deus deu origem, sem querer, a uma longa série de filósofos fatalistas, em cujo pensamento não havia lugar para o livre-arbítrio. O que no início era um conceito puramente teológico de predestinação abriu caminho para todo tipo de determinismo, econômico, político, social e psicológico, onde ninguém é mais responsável pelas próprias ações, podendo pôr a culpa em qualquer instância externa que esteja fora de seu controle.
O caos do mundo moderno, diz Chesterton, “não nasceu da cristandade, mas da sua ruptura”.
Ao separarem a Bíblia da Igreja, os protestantes fizeram a Bíblia voltar-se contra a Igreja. Perdeu-se a memória de que foi a Igreja que nos deu a Bíblia. Esqueceu-se do fato de que a Bíblia foi, e ainda é, um documento católico. Ignorou-se, além do mais, que a Bíblia protestante não é mais do que uma redução da Bíblia católica. Os reformadores jogaram fora inúmeros livros, desprezando-os como “apócrifos”, ou seja, de caráter duvidoso. Dúvida: o oposto da fé.
No entanto, foram os estudiosos seculares que disseminaram as dúvidas por todo o restante da Bíblia. Começaram a desmontá-la peça por peça sob o pretexto da crítica textual, e assim os protestantes se deram conta de que a única autoridade por eles reconhecida havia ruído. Nada lhes restou. E muitos deles saíram em debandada.
O irônico de tudo isso é que as mesmas pessoas que alertaram contra a idolatria de escritos sagrados terminaram por criar uma cultura que sofre de uma idolatria de tudo o que vem por escrito. Como diz Chesterton,
Há quase tanta superstição em beijar a Bíblia quanto em consultar o dicionário. O homem moderno, sobretudo o homem da cidade, pensa que tudo o que está impresso passou de alguma maneira por um exame e recebeu um diploma, que é de algum modo verdadeiro em si mesmo… O homem moderno acredita antes na enciclopédia do que na testemunha ocular; dá mais crédito ao que noticia o jornal do que aos olhos de quem presenciou o fato. Ele compra o jornal na manhã seguinte para descobrir o que realmente se passou no evento de que ele mesmo participou na noite anterior.
Tudo isso pôs a Bíblia numa situação mais do que curiosa. Chesterton resumiu bem o problema há quase cem anos, mas a sua análise permanece ainda muito precisa. Ele está certo, de modo particular, ao dizer que “a ignorância sobre essas coisas está crescendo”.
Em primeiro lugar, há os fundamentalistas, que recorrem à Bíblia sem a menor consideração pela autoridade que, na verdade, fixou o cânon bíblico. Trata-se, segundo Chesterton, “de uma mitologia, segundo a qual o elefante se apoia sobre o casco da tartaruga, e a tartaruga, por sua vez, não se apóia em coisa nenhuma”.
Há, em segundo lugar, os setores mais laxistas, que são no fundo bastante estritos, para quem só algumas passagens da Bíblia podem ser ensinadas em público, ao passo que todo o restante é inapropriado.
Em terceiro lugar, há os modernistas, que acusam a Igreja Católica de ter feito na “idade das trevas” aquilo que os laxistas têm feito agora: selecionar arbitrariamente certos trechos da Bíblia e esconder o resto do povo. (Esta é a acusação à Igreja que se faz, por exemplo, no conhecido “O Código da Vinci”.) A Igreja, diz Chesterton, “tem sido acusada de esconder a Bíblia; mas, ainda que isso fosse verdade, seria algo muito menos surpreendente do que a fez a Reforma, que teve grande êxito em esconder tudo o mais”. O protestantismo foi muito bem sucedido em esconder da civilização ocidental a sua própria história.
E há, por outro lado, a única Igreja que manteve íntegra a Bíblia, enriquecendo com seus textos a liturgia, cantando dia após dia as suas orações, aplicando sua sabedoria atemporal a estes tempos. É a mesma Igreja que teve o cuidado de preservar outros documentos antigos que não só atestam a veracidade das Escrituras, mas ainda demonstram qual a diferença entre um texto inspirado e outro não. A Igreja Católica, que ainda ensina tudo o que está contido nas Escrituras, pode indicar em que parte da Bíblia se encontra o fundamento de cada um de seus ensinamentos:
- o Batismo é um nascer de novo (cf. Jo 3, 5);
- o vínculo matrimonial é indissolúvel (cf. Mc 10, 11) e reflexo da união entre Cristo e sua esposa, a Igreja (cf. Ap 19, 7);
- é necessário confessarmos nossos pecados (cf. Tg 5, 16) a um sacerdote (cf. Mt 8, 4);
- Jesus fundou uma Igreja, constituiu o seu primeiro chefe (cf. Mt 16, 18), conferiu a seus Apóstolos a autoridade de perdoar os pecados (cf. Jo 20, 23) e disse que, ao menos que lhe comamos o corpo e o sangue, não teremos em nós vida alguma (cf. Jo 6, 53).
Isto nos traz de volta ao ecumenismo no despertar da Reforma. Ainda temos o grande dever de apelar ao amor a Deus e ao seu Filho que temos em comum com nossos amigos protestantes; mas temos também a responsabilidade de fazê-los olhar com honestidade para a Bíblia e para o conjunto da história, para o que realmente aconteceu quando os reformadores separaram a Bíblia da Igreja.
Não se trata de uma missão impossível. Eu mesmo já a vi ser cumprida com sucesso. Foi um católico fiel, amoroso e sem medo de dizer a verdade que, com paciência, me levou da igreja batista para a Igreja una, santa, católica e apostólica. Ele primeiro apelou àquilo que tínhamos em comum; em seguida, fez-me cair na conta daquilo que me estava faltando. Ele conseguiu fazê-lo porque já havia percorrido o mesmo caminho. O seu nome era G. K. Chesterton.
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