Em seu incomparável livro sobre Santo Tomás de Aquino, G. K. Chesterton mostra que o Doutor Angélico não apenas defendeu a realidade da Encarnação como mostrou suas implicações. A Encarnação uniu o Céu e a terra, mas também uniu o corpo e a alma de uma nova maneira. A presença divina preencheu algo criado, tornando-o sagrado não por um momento, mas para todo o sempre. Mesmo sem a Encarnação podemos compreender que um homem não é um homem sem corpo, assim como tampouco o é sem alma. “Um cadáver não é um homem, mas um fantasma tampouco.” Tendemos a pensar na alma como algo eterno e no corpo como algo temporal. Afinal, corpos sem vida se decompõem. Mas um determinado corpo não se decompôs. Quando o próprio Deus assumiu a carne humana algo novo aconteceu, algo a que Chesterton chama “o mais surpreendente dos dogmas: a ressurreição do corpo”.

Jesus Cristo ressuscitou fisicamente dos mortos. Seu corpo reuniu-se à sua alma. Depois, ascendeu em corpo ao Céu. Cristo é o “primogênito dentre os mortos”, de acordo com São Paulo. Isso quer dizer que devemos segui-lo na ressurreição. Significa que nossos corpos também são sagrados e também ressuscitarão dos mortos para se reunir com nossas almas. Esse é o dogma da Igreja Católica desde sua fundação.

Sejamos francos: o mundo moderno rejeita completamente esse dogma. Sejamos ainda mais francos: a maioria dos católicos provavelmente não reflete sobre o sentido desse dogma. Sejamos francos uma última vez: nós também não. Como diz Chesterton: é um dogma demasiado surpreendente.

A rejeição da tradição, seja pelo mundo ou pelos membros da Igreja, pode ser completa e deliberada ou passiva e irrefletida. Geralmente, ocorre o segundo caso, já que somos levados a desenvolver uma letargia intelectual por influência da tonalidade monótona que dá a falsa noção de progresso. O velho é ruim, o novo é bom. Rejeitemos o que é velho, acolhamos o que é novo. As coisas vão sempre melhorar; então, sigamos o fluxo. Esse senso de “progresso” é uma combinação de otimismo negligente com um determinismo ainda mais negligente. Porém, se pusermos nosso cérebro para funcionar e realmente refletirmos sobre o que estamos rejeitando, compreenderemos as implicações da filosofia que aceitamos inconscientemente. A filosofia do progresso não é apenas um ódio à tradição; é também a ideia de que, inevitavelmente, tudo está melhorando por si só. Ela é usada como justificativa para a má conduta, para considerá-la inevitável e também como um sinal de progresso.

Mas a história não é um relato de progresso. É o relato da Queda e da Salvação, da tentativa de recuperar algo que perdemos. É por isso que Chesterton diz que todos os poemas já escritos poderiam ser compilados num único volume com o título de Paraíso Perdido.

Nós perdemos algo e temos de recuperá-lo. A filosofia da Salvação é completamente diferente da filosofia do Progresso. Queremos restaurar algo que foi perdido? Queremos preservar algo que é bom? Ou queremos persistir num estado de amnésia, vandalismo e cremação (isto é, esquecendo, destruindo e queimando o passado, em vez de enterrá-lo)?

É neste ponto que temos de encarar o surpreendente dogma da ressurreição do corpo. Chesterton previu que a insistência moderna na ideia de higiene (uma ideia “progressista”) traria de volta o hábito pagão da cremação. A cremação realmente está de volta [1]. É um ataque à tradição cristã. Significa queimar as coisas e assim esquecê-las. Não deixa de ser irônico o fato de uma geração que parece idolatrar a saúde e o físico não ter, em última análise, respeito algum pelo corpo. Queimamos o corpo porque não cremos na ressurreição dos mortos. Chesterton diz: “Nós traímos os mortos”.

A cremação moderna é pior que a pagã porque é clínica e fria, caso prefiram usar esses termos. É completamente utilitária e desprovida de cerimônia. Chesterton a sintetiza em seu poema The Song of the Strange Ascetic, “A Canção do Estranho Asceta”:

Se eu fosse um pagão,
minha pira no alto poria
e, em um vermelho turbilhão,
rugindo ao céu iria;
mas é Higgins o pagão
e homem mais rico que eu:
a ele meteram no fogão
como a torta que não comeu [2].

A Igreja Católica desestimula (mas não proíbe) a cremação, porque cremos não apenas no respeito pelo corpo, mas em sua ressurreição. Se a cremação for necessária (como exceção, não como regra), a Igreja ensina que os restos mortais não devem ser espalhados, mas enterrados juntos. Obviamente, um Deus todo-poderoso pode ressuscitar o corpo independentemente de seu estado; mas destruir de forma deliberada os restos mortais é tentar o Senhor, é insistir na ideia de que nossos caminhos são melhores que os dEle.

A moda atual de espalhar as cinzas é também uma tentativa de esquecer a morte. Um túmulo nos faz lembrar dela. Faz com que nos preparemos para nossa própria morte, o que nos ajuda a viver uma vida melhor. Mas nos faz pensar principalmente na ressurreição. O mais glorioso túmulo na terra é o que está vazio em Jerusalém.

Notas

  1. Original em inglês: “If I had been a Heathen/I’d have piled my pyre on high/And in a great red whirlwind/Gone roaring to the sky/But Higgins is a Heathen/And a richer man than I/And they put him in an oven/Just as if he were a pie”.
  2. Essa reflexão pascal foi escrita em 2016, muito antes da recente pandemia do novo coronavírus (2019-2020). As críticas aqui feitas à prática da cremação não pretendem abarcar, portanto, as circunstâncias específicas em que nos encontramos. Para um estudo mais profundo do que ensina a Igreja a esse respeito (e uma possível discussão sobre a oportunidade da cremação agora), v. Congregação para a Doutrina da Fé, Instrução Ad resurgendum cum Christo, 15 de agosto de 2016, n. 4: “Onde por razões de tipo higiênico, econômico ou social se escolhe a cremação [...], a Igreja não vê razões doutrinais para impedir tal práxis [...]. A Igreja continua a preferir a sepultura dos corpos uma vez que assim se evidencia uma estima maior pelos defuntos; todavia, a cremação não é proibida, ‘a não ser que tenha sido preferida por razões contrárias à doutrina cristã’” (Nota da Equipe CNP).

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