I. O problema. — Não será necessário recordar aqui que a Igreja que Cristo fundou é uma verdadeira sociedade, ao mesmo tempo divina e humana, sobrenatural e existente na terra, e cujo fim é a salvação ou felicidade eterna de seus membros.

Em filosofia do direito, distinguem-se duas classes de sociedade: uma perfeita, cujo fim é o bem humano, supremo em seu gênero e que conta com os meios suficientes para consegui-lo ou que, pelo menos, tem direito a exigi-los; outra imperfeita, se carece de algumas destas qualidades. Esta última, como consequência de sua imperfeição, formará parte de outra sociedade de ordem superior, que lhe proporcionará os meios necessários para conseguir o seu fim. Na ordem natural, sabemos que o Estado é uma sociedade perfeita, e toda outra sociedade de ordem familiar, comercial, artística, recreativa etc. são sociedades imperfeitas, dentro do Estado e subordinadas a ele.

Contudo, não se devem confundir os conceitos de sociedade perfeita e imperfeita, de um lado, com os de sociedade completa e incompleta, de outro. Com efeito, chama-se completa a sociedade que procura diretamente o bem total do homem, tanto espiritual como temporal; ao passo que se chama incompleta a sociedade que atende só a um destes aspectos. A família, por exemplo, é uma sociedade completa, embora imperfeita; o Estado, por sua vez, é uma sociedade perfeita, mas incompleta, já que, diretamente, procura apenas o bem material de seus membros. 

Toda sociedade perfeita, por sua própria definição, é uma sociedade independente e exclui, portanto, toda subordinação direta, isto é, aquela subordinação que se dá quando uma sociedade é regida por outra dentro da esfera própria de seu fim. Por ter tal subordinação direta, um município ou uma família não são sociedades independentes dentro do Estado.

Supostas essas noções básicas, indispensáveis para compreender o problema que nos propusemos, cabe agora perguntar: é a Igreja uma sociedade perfeita e absolutamente independente?

II. Orientação histórica.1) Doutrinas errôneas. — A quem se lembra de qual é o fim altíssimo da Igreja (de que falamos noutro artigo), superior evidentemente a qualquer fim terreno, parecerá óbvio dar uma resposta afirmativa à pergunta que nos fizemos acima. No entanto, poucas verdades terão sido negadas com tanta frequência ao longo da história como esta. Primeiramente, quiseram na prática fazer caso omisso dela aqueles imperadores cristãos que, herdeiros dos antigos imperadores pagãos, chefes absolutos tanto no campo civil como no religioso, continuavam intervindo nos assuntos religiosos e tentavam subordinar a Igreja ao Estado. 

Assim agiram muitos imperadores bizantinos no Oriente, e no Ocidente, desde a Idade Média, alguns dos novos imperadores e reis cristãos. Preparado assim o ambiente, Marsílio de Pádua formulou a doutrina segundo a qual o imperador estaria acima do Papa: “Tudo o que na Igreja é temporal está submetido ao imperador, e este pode tomá-lo como coisa sua. Ao imperador, pois, cabe corrigir o Papa, investi-lo do pontificado, destituí-lo e castigá-lo. Toda a Igreja em conjunto não pode, por conseguinte, castigar um homem com pena coativa, se não lhe concede este poder o imperador” (cf. D 595-500). Estas proposições, condenadas pelo Papa João XXII em 1327, foram extraídas do livro Defensor pacis, verdadeira carta magna da doutrina que afirma a hegemonia do Estado sobre a Igreja, e na qual irão se inspirar todos os erros que, através dos séculos, forem surgindo nesta matéria.

Assim pensaram também os protestantes alemães do séc. XVI, com o seu célebre axioma: “Cuius regio, eius et religio” (quer dizer, a religião da cada território há-de ser a do seu senhor); o anglicanismo, com aquele artigo de fé anglicana, vigente desde 1552: “O rei de Inglaterra é a suprema cabeça da Igreja Anglicana depois de Cristo”; o regalismo e o galicanismo, que, apesar de terem surgido antes mesmo de Marsílio de Pádua nas lutas de Felipe, o Belo, contra Bonifácio VIII, chegaram ao apogeu com Edmundo Richer (1560-1631) e depois, em maior ou menor grau, influenciaram grandes homens do clero francês, como Bossuet, e deram origem aos artigos do clero galicano, declarados nulos por Alexandre VIII (cf. D 1322-1326). 

As teorias galicanas sobre a sujeição mais ou menos total da Igreja ao Estado se renovaram na Alemanha e na Áustria algum tempo depois com o febronianismo, sistema propugnado no livro De Statu Ecclesiae, que Nicolás Hontheim publicou sob o pseudônimo de Justino Febrônio, e o josefinismo, nome proveniente de José II, imperador da Áustria, que quis intervir em todos os assuntos da Igreja, coisa que lhe valeu o título de “o imperador sacristão”. 

Em nossos dias, ideias errôneas sobre a sujeição da Igreja ao Estado foram ressuscitadas nos sistemas totalitários do séc. XX, o nacional-socialismo e o comunismo, contra os quais o Papa Pio XI escreveu duas encíclicas: Mit brennender Sorge (de 14 de março de 1937) e Divini Redemptoris (de 19 de março de 1937).

2) Doutrina católica. — À medida que foram aparecendo as diversas doutrinas que atacam a independência da Igreja e querem sujeitá-la ao Estado, os Sumos Pontífices tiveram o bom cuidado de fazer resplandecer toda a verdade nesta matéria. Assim, Bonifácio VIII, na bula Unam Sanctam, define que “é necessário para a salvação de toda criatura humana submeter-se ao Romano Pontífice” (D 469). E João XXII condenou, como vimos, as teorias de Marsílio de Pádua (cf. D 495-497).

O Concílio de Trento definiu a plena independência da hierarquia eclesiástica de qualquer potestade humana (cf. D 960.967). Pio VI condenou os erros do falso Sínodo de Pistóia, que limitavam o poder da Igreja (cf. D 1504).

Mais recentemente, Pio IX levantou sua voz vigilante contra as teorias liberais e laicistas que propugnam a subordinação da Igreja ao Estado ou as que defendem como ideal a completa separação entre as duas potestades. No Syllabus, encontramos uma longa lista de proposições condenadas sobre este ponto em particular (cf. D 1719.20.28.39.41-45.51-55). Leão XIII escreveu diversas encíclicas sobre esta matéria, sendo a mais importante delas a Immortale Dei.

Pio XII, na encíclica Mystici Corporis, chamou também à Igreja sociedade perfeita e pronunciou dois discursos de grande transcendência para enfocar o difícil problema das relações entre Igreja e Estado, tendo em conta o estado atual das coisas.

III. Valoração teológica. — Deve-se considerar como, no mínimo, teologicamente certo que a Igreja é uma sociedade perfeita e absolutamente independente. 

1) Ensinamento bíblico. — De toda a doutrina evangélica, consta claramente que:

  1. A Igreja tem como fim a salvação sobrenatural dos homens. Recordem-se, por exemplo, os textos do Novo Testamento com que demonstramos noutra ocasião que o fim da Igreja é dar continuidade à missão de Cristo, e que a missão de Cristo é, pois, a salvação dos homens. Ora, este fim é evidentemente o mais perfeito e supremo que pode haver, superior a qualquer outro fim e, portanto, de tal natureza que todos os outros fins devem estar subordinados a ele, e a nenhum outro.
  2. Para conseguir este fim, Cristo deu à sua Igreja todos os meios necessários nos plenos poderes de ensinar, reger e santificar. Ensinar a lei evangélica, lei da mais alta perfeição (recordem-se, por exemplo, os capítulos 5 a 7 de S. Mateus) e, portanto, a mais apta para chegar ao fim sobrenatural de unir o homem a Deus; e isto com a absoluta garantia de ensinar a verdade, graças à prerrogativa da infalibilidade (cf. Mt 28, 20; Mc 16, 16; Jo 14, 13.16s. etc.). Reger, de modo que tudo o que a Igreja ou sua autoridade suprema atar ou desatar na terra ficará atado ou desatado, isto é, plenamente ratificado no céu (cf. Mt 16, 18; 18, 18). Santificar por meio dos sacramentos, que dão ou aumentam o penhor seguro da vida eterna, quer dizer, a graça santificante (cf. Jo 3, 5; 6, 48-59; 20, 22s.).

Pois bem, tais meios são suficientíssimos, por si mesmos, para conseguir o fim sobrenatural da salvação eterna, e se algo impede de fato que os homens cheguem à consecução deste fim, isto não é certamente devido a algo que falta à Igreja, provida da assistência divina até o fim do mundo, mas à deficiência do homem, que com sua liberdade põe obstáculos à ação salvífica da Igreja. 

A Igreja, além disso, é absolutamente independente, porque a sua autoridade suprema, nem por razão de seu fim nem por razão de um fim mais alto que fosse necessário alcançar, não está subordinada a nenhuma outra autoridade, como é evidente, suposto o que dissemos antes a respeito do fim sobrenatural da Igreja. Ademais, Jesus Cristo, ao fundar a Igreja como sociedade, a constituiu com completa independência de toda outra sociedade humana, como se vê claramente no modo como Ele escolheu os Apóstolos e a S. Pedro, constituindo-os hierarcas de sua Igreja, dando-lhes sua autoridade divina: “Como meu Pai me enviou, assim também eu vos envio a vós” (Jo 20, 21); “Todo poder me foi dado no céu e na terra. Ide, pois, e fazei discípulos a todos os povos” (Mt 28, 29), e profetizando-lhes repetidas vezes que eles encontrariam nos poderes civis apenas oposição e perseguições: “Entregar-vos-ão aos sinedritas e em suas sinagogas vos açoitarão; sereis levados por minha causa diante de governantes e reis, para que sirva de testemunho a eles e aos gentios” (Mt 10, 17s.); “Se me perseguiram a mim, também a vós hão-de perseguir” (Jo 15, 20).

Depois da Ascensão de Cristo aos céus, os Apóstolos, ao estenderem a Igreja por todo o mundo, o fazem com plena independência das potestades civis; mais ainda, com oposição aberta das mesmas: “Julgai-o vós mesmos”, diziam os Apóstolos às autoridades judaicas de Jerusalém, “se é justo diante de Deus obedecermos a vós mais do que a Deus. Não podemos deixar de falar das coisas que temos visto e ouvido” (At 4, 19s.; cf. 4, 5-31; 5, 17-42; 12, 1-24).

2) A voz da Tradição. — A perfeita independência da Igreja ante toda intromissão da autoridade civil é defendida acerrimamente por ela ao longo de toda a sua existência, de tal maneira que a história deste ponto em particular coincide com a história de todas as perseguições que a Igreja vem sofrendo, desde os tempos do Império Romano até os nossos dias. Contentemo-nos agora com somente alguns textos de dois grandes campeões da fé e da independência da Igreja, um do Oriente e outro do Ocidente. Escreve S. Atanásio: “Desde quando uma sentença da Igreja tem de receber autoridade do imperador?… São Paulo teve amigos entre os da casa de César, mas não os admitiu como companheiros de suas decisões” (História dos arianos, 52: PG 25, 726). E Ósio de Córdoba escreveu a Constâncio Augusto: “A ti confiou Deus o império; a nós, as coisas da Igreja: nem a nós é lícito ter poder na terra, nem a ti, imperador, tê-la sobre o que é sagrado” (A Constâncio Augusto: PL 8, 1327-29).

Notas

  • Este artigo é uma tradução levemente adaptada de F. de Vizmanos e I. Riudor, Teología fundamental para seglares. Madrid: BAC, 1963, pp. 828-832, nn. 673-680. 

O que achou desse conteúdo?

1
0
Mais recentes
Mais antigos